30 Agosto 2023
"Vivemos em tempos difíceis de ruinas e de dor e, talvez, o Saque de Roma de 410, com a sua escandalosa imprevisibilidade, nos ensine algo importante. Os eventos-chave da história são sempre imprevistos e sempre surpreendem os analistas e até os grandes intelectuais (...). Fatos, estes, que nos induzem a pensar que também o fim da civilização capitalista não é meramente um processo de progressivos desmoronamentos, mas será um evento abrupto e repentino", escreve Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo enviado pelo autor ao IHU.
A crise da Igreja Católica não pode ser interpretada com abordagens autorreferenciais, porque o que está acontecendo tem raízes profundas na crise no Ocidente, que, ao longo do processo da modernidade, experimenta o vácuo e a inconsistência das suas apostas.
E faz esta experiência num mundo em progressiva e irreversível ruina.
A Igreja Católica não é um mero acidente deste processo porque é elemento substancial e hegemônico da história e da mentalidade ocidental. Sem a Igreja não existiria Europa. Acolhido ou não, redescoberto ou secularizado, o cristianismo faz parte do DNA ocidental. Construiu esta civilização com arquiteturas teológicas, filosóficas e políticas, que, apesar de aparentemente vencidas – e também quando se nega a sua influência – continuam alimentando o jeito ocidental de ser e pensar.
Em suma, não podemos encarar a crise da Igreja como se a sua crise não fosse a própria crise do Ocidente. Se formos honestos e verdadeiros, não poderíamos absolver a Igreja, com a justificação que sempre foi filha de seu tempo, condicionada pelos limites objetivos das várias estações da história, porque, pelo contrário, sempre foi, ao longo dos séculos, mater et magistra, protagonista e não mera figurante da história ocidental.
Por isso, tenho dificuldade em aceitar os métodos, compartilhados pela maioria dos clérigos, que, na atualidade, promovem as tentativas de conversão e reforma da Igreja, porque faltaria a radicalidade do reconhecimento do tamanho da crise e das responsabilidades históricas do cristianismo ocidental.
Parece-me sedutor lembrar o Saque de Roma de 410, um evento do passado remoto da história e da reflexão teológica ocidental, sobretudo de grandes intelectuais como São Girolamo e Santo Agostinho. É um evento que nos mostra uma crise de um tamanho surpreendente, inimaginável e terrificante para os homens e as mulheres daquela época: Roma, centro do mundo, conquistadora invencível, é conquistada e humilhada pelos Visigodos de Alarico. Uma tragédia que joga os povos nas trágicas inseguranças da guerra, do empobrecimento, da incerteza com relação ao futuro.
Pedindo, de antemão, desculpas pela presunção e ousadia, apresento a minhas perplexidades a respeito da leitura que, na ‘De civitate Dei’ (426), Santo Agostinho faz desta catástrofe.
Parece-me que, na distinção entre cidadania divina e cidadania diabólica, para Agostinho nunca se trata da distinção entre a Igreja e o Império. Com efeito, para ele, os cidadãos de Deus e os cidadãos do diabo estão presentes em igual modo nos dois campos e são definidos como o joio e o trigo (Mt 13,24-30) destinados a conviver na história até o juízo final.
Em nenhum momento, porém, Agostinho mostra dúvidas com relação à estratégia de negociar com o Império a inclusão do cristianismo como religião licita, que aparece explicitamente, já nos anos 90, com papa Clemente Romano e triunfa, entre 325 e 376, com Constantino e Teodósio, quando não somente fica licito, mas se torna religião oficial do estado. Império e Igreja se transformam em dois aliados indissociáveis, que lutam contra o mal, para construir sociedades onde reine a convivência pacífica e a justiça.
Escolha política esta, que substitui a estação germinal de uma Igreja martirial, perseguida pelo Império, por defender a primazia do único κύριος (Kurios) digno deste nome, o Senhor Jesus de Nazaré, em alternativa radical às pretensões diabólicas do kurios divinizado, o imperador. Com efeito, a estreita ligação entre a lealdade política e a fé religiosa é legado, ainda não esquecido, do Império Romano, em cujo âmbito quem se recusava a obedecer ao culto de adoração dos imperadores, como os cristãos, era considerado inimigo de Roma. Esta aliança entre o poder temporal e religioso é herança não batizável do Império, que, porém, se reproduz, a partir de 325, quando também qualquer ataque à Igreja, incluindo os dos heréticos, é considerado crime a ser julgado pelos tribunais do estado.
A queda do Império Romano do Ocidente, suspende temporariamente esses procedimentos, mas sobra para o futuro – quase uma punição – essa irresolvida dialética entre estado e Igreja. Lembramos como, no século VIII, Carlos Magno reedita o protagonismo imperial diante da Igreja. O ciclo recomeça em 962 com Otão I, que é coroado imperador e encerra-se só em 1122, com a Concordata de Worms, após a Guerra das Investiduras e a Reforma Gregoriana. A “doença” da romanização do Império, apesar da mudança dos termos dos conflitos, não abandona a Europa, de dinastia após dinastia, até a sua última edição, com Francisco II de Habsburgo, Imperador Romano-Germânico de 1792 até sua abdicação, em 1806, após a vitória de Napoleão em Austerlitz.
Relendo a crise mortal do Império, Agostinho, diante das acusações dos politeístas, argumenta, apologeticamente, que a Igreja não é a responsável da calamidade, ao ponto de se apresentar, durante o saque de 410, como protagonista nas negociações com os bárbaros de Alarico para minimizar violência e destruições e tentar salvar o que sobra do Império. O Império, para o bispo de Hipona, cai por causa da corrupção de suas elites, e Deus permite este desastre como um corretivo, porém, não tão definitivo como o cataclisma que cancelou Sodoma e Gomorra da face da terra.
Existe uma ambiguidade não resolvida nesta primeira imensa tentativa de teologizar a história: de um lado se defende a constitutiva necessidade de considerar o estado um componente ontológico e indiscutível da história da humanidade, mas, de outro lado, afirma-se que também no caso de dissolução das instituições, seria a cidade de Deus que triunfaria, a cidade mística, a nova Jerusalém do céu. O acento, nesta afirmação é transcendente e não político. A ambiguidade que me interpela é justamente esta oscilação entre o registro político e o registro escatológico.
O que inspira a perspectiva agostiniana é sem dúvida a definição do imperador Constantino como ἐπίσκοπος των Εκτός (episkopos ton ektós), “bispo daqueles de fora” aliado aos bispos daqueles de dentro, que se reproporá, repetido fielmente até os nossos dias, em todas as edições imperiais, monárquicas e republicanas da aliança da Igreja Católicas com os poderes constituídos.
Esta aliança entre a Igreja e o estado se repropõe, mais tarde, também no protestantismo luterano, indiscutivelmente agostiniano, com a “doutrina dos dois reinos”: o espiritual, a mão direita de Deus, que doa a Palavra para converter os seres humanos, e o secular, a mão esquerda de Deus, que usa a espada para educar, corrigir e punir. E essa espada foi tranquilamente usada para punir os anabatistas rebeldes, na Guerra Camponesa, que foram massacrados na batalha de Frankenhausen (1525).
Percorrendo o longo, milenar, processo histórico das relações entre Igreja e Estado, observamos estações em que a teologia dos dois reinos é contradita pela inimizade do estado, que entra em competição com a Igreja, como, por exemplos, na guerra pelas investiduras (sec. XI e XII) ou, na modernidade, a luta do estado para sair da tutela eclesiástica ou para combater contra o poder temporal da Igreja; o no enfrentamento, em parte ainda inacabado, dos regimes de cristandade europeia ou colonial. Nem sempre as políticas concordatárias funcionam e, como no caso do fascismo italiano, cobram um preço espiritual muito alto, porque esquece-se o Evangelho do Reino e a profecia.
Evidentemente a relação estado-Igreja é ainda uma herança inegável e imprescindível, sujeita a variações ideológicas e políticas de espectro bem amplo e contraditório. Como exemplos, podemos ver como as polarizações políticas presentes na sociedade se espelham na hierarquia eclesiástica: assistimos, assim, à “afinidade” entre papa João Paulo II e Pinochet, a oposição ao Sandinismo e seu apoio à Solidarnosc e Lech Walesa. E, na atualidade, pensamos na inegável simpatia de papa Francisco com o presidente Lula e na distância abismal com relação ao presidente Ortega e ao ascendente político argentino Javier Milei. E estes conflitos, ao mesmo tempo políticos e religiosos, caracterizam a vivência da Igreja como um todo e são o mais escandaloso contratestemunho do Evangelho.
Pelo menos desde 1789, as instituições estatais não são mais consideradas de direito divino, mas expressão da vontade popular ou, na pior das hipóteses, prerrogativa das elites e dos prepotentes. Porém, a Igreja católica continua o jogo teológico-político no xadrez constantiniano.
Também se olharmos para a Rússia de hoje, ficamos surpresos e espantados com a decisão teológico-política da Terceira Roma em apoiar o regime de Putin e a agressão à Ucrânia. Similarmente, “nada de novo de baixo do sol” (Ec 1,9): interpretação moderada, mas herdeira da tradição oriental do cesaropapismo da Ortodoxia.
Diante disto surge em mim uma dúvida: será que esta dialética Igreja-estado seria tão constitutiva da história, que deveríamos adiar, junto com Agostinho, a solução do conflito à dimensão escatológica? Ou, pelo contrário, não teríamos em nossas mãos a possibilidade de mudar a Igreja e mudar o estado?
Vivemos em tempos difíceis de ruinas e de dor e, talvez, o Saque de Roma de 410, com a sua escandalosa imprevisibilidade, nos ensine algo importante. Os eventos-chave da história são sempre imprevistos e sempre surpreendem os analistas e até os grandes intelectuais. Foi assim quando caiu o muro de Berlim, em 1989, e foi assim, quando, logo depois, desmoronou o regime soviético, em 1991. Fatos, estes, que nos induzem a pensar que também o fim da civilização capitalista não é meramente um processo de progressivos desmoronamentos, mas será um evento abrupto e repentino.
Ao qual nós nos devemos preparar.
A postura mais apropriada me parece que deveria ser um radical distanciar-se do deserto da história, voltando à fé das primeiras comunidades, que enfrentaram o kurios imperial, em companhia do único Senhor, o Crucificado-Ressuscitado.
Seria necessário reconhecer os êxitos desastrosos da negociação constantiniana e renegar os temores de São Girolamo diante da crise mortal do Império Romano e não ignorar os antídotos e as terapias para a crise, que alguns pensadores ocidentais, junto com os povos originários, também, nos oferecem. Penso entre todos a Simone Weil, mas também à amplas planícies de reflexão inauguradas pelos subversivos Deleuze e Guattari, profecias que os homens da Igreja têm dificuldades em aceitar, porque condicionados pelas tradicionais concepções filosóficas e teológicas, ainda vigentes, mas incapazes de dar conta de novos diálogos e discernimentos, de entender os profetas, que profetizam no acampamento, mas que interpelam, não escutados, a Tenda da Arca, o Templo, o Palácio, o Mercado.
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A crise da Igreja católica: crise do Ocidente. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU