20 Setembro 2016
Em 411 o Imperador Honório convocou grande número bispos (incluindo Agostinho), na cidade africana, com o objetivo de estabelecer a paz entre católicos e donatistas.
"Um livro, como uma criança, precisa de tempo para nascer. Livros escritos às pressas inspiram desconfiança em relação ao autor". Este - que é um dos pensamentos e fantasias de Heinrich Heine - poderia ser tomado como lema para o texto que vamos apresentar. Uma obra, na verdade, que só podemos evocar, tanto ela é imponente e fruto de gestação longa. Para compô-la, o estudioso, Alessandro Rossi, certamente gastou em mapas, documentos e bibliografias, anos de investigação, esperando ao mesmo tempo que não aconteça ao seu trabalho final, que se aplique o lema do historiador inglês, do século XVII, Thomas Fuller, que "a cultura ganhou, sobretudo, daqueles livros que os editores perderam". Com nosso registro - que, repetimos, é bem outra coisa do que uma revisão - queremos não só ajudar um pouco a corajosa editora, mas também mostrar, pela primeira vez, o modelo exemplar da mais refinada pesquisa histórico-crítica, esperando desta forma despertar o interesse de algum estudioso e, especialmente, de intrigar os amantes ou fãs daqueles séculos, em que o debate teológico era também um sofisticado confronto cultural, e até político.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, publicada por Il Sole 24 Ore, 11-09-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Sim, porque estamos diante de uma bem precisa coleção de atas de uma conferência (em latim, collatio, ou seja, uma disputa de implicações institucionais, tanto eclesiásticas como políticas: de fato, a promovê-la, ou melhor, impô-la, tinha sido nada menos que o Imperador do Ocidente, Honório, filho de Teodósio, conhecido por ter transferido a capital para Ravenna, e a presidi-la tinha sido delegado um juiz imperial, Marcellino. Estamos - como escreve Rossi – “em uma Cartago de clima quente não só pelo verão subtropical, mas também pela presença de quase todo o episcopado Africano”, conturbado por um cisma centenário, originado no início do século IV pela dissidência do bispo de Cartago, Donato. Agora estamos em 1º de julho de 411, e a conferência se estenderá de modo cerrado, por três dias, cujos debates - que verão como protagonista Santo Agostinho, bispo de Hipona – foram conservados, exatamente, num códice único, o Parisinus 1546, do século IX.
O "donatismo" floresceu em terreno ensanguentado, das perseguições de Domiciano e Maximiliano, e que se atestava em posições rigoristas, sobretudo com relação aos lapsos, isto é, aos cristãos que tinham abjurado, sob o peso da repressão pagã, e aos traidores, bispos e fiéis fracos, prontos a entregar aos perseguidores as Escrituras para que as votassem às chamas. Deste evento específico configurou-se, no entanto, um sistema doutrinal dotado de identidade ideológica, litúrgica, pastoral e comunitária em equitativa polêmica com a Igreja Católica espalhada noutros lugares. Na base havia, portanto, uma diferente concepção eclesiológica, de molde mais rígido e apologético, acompanhada do corolário da negação da validade dos sacramentos "católicos" e de uma antitética visão das relações com o mundo, a sociedade e as instituições.
Aquele de Cartago não era um Concílio, nem um Sínodo, mas um confronto doutrinal e pastoral destinado a colocar um ponto final no cisma que dividiu as comunidades cristãs da África e, sobretudo, incomodava o poder político imperial. À convocação aderiram quase seiscentos bispos, apesar de que os representantes com direito à palavra eram apenas quatorze. Rossi dedica amplo espaço da introdução, em primeiro lugar, à “lenta oficina da conferência", além do mais, aberta a partir de enervantes operações de controle da identidade dos bispos presentes, tanto donatistas, quanto católicos. Recompõe-se, assim, o quadro contextual histórico, identificam-se os modelos precedentes de enfrentamento das crises eclesiais (pense-se em Ambrósio e nos arianos), reconstroem-se os documentos preparatórios, delineiam-se os procedimentos e as estratégias dos debates e assim por diante.
No fim, a análise dos eventos da conferência, pontuados pelas atas dos três dias de debate. O estudioso recorre frequentemente a imagens coloridas para definir o procedimento e a relativa gestão de Marcellino, o delegado imperial: “di tacco e di punta”, isto é, com aceleração e frenagem, fingindo-se surdo, ou seja, usando de mal-entendidos pilotados, o jogo de grupo, as armadilhas preparadas para a ordem do dia, o controle da opinião pública. No final, a sentença elaborada, numa noite, por Marcellino, provocando perplexidade nos donatistas e a jucunda ironia de S. Agostinho: "O caso foi concluído durante a noite, mas para terminar a noite do erro; à noite a sentença foi pronunciada, mas é refulgente o brilho da verdade". O mesmo Padre da Igreja comporá um Compêndio desta conferência que Rossi oferece, em apêndice, com registros oficiais. Com tal ferramenta Agostino ajudava seja seus colegas bispos a combater os donatistas, seja os fiéis a estarem cientes da vitória alcançada pela Igreja universal, convencido da fraqueza teológica e até mesmo da malícia dos adversários.
O bispo de Hipona estenderá também um tratado específico Contro i donatisti, dando lugar a uma poderosa operação midiática que, no final, recolheu seus frutos. Na verdade, aos bispos donatistas presentes ao tribunal nas termas cartaginesas de Gargilio - onde o encontro ocorreu - "deve ser reconhecida uma notável capacidade de testemunhar sua compreensão dos eventos, minando a eficácia do projeto Católico, divulgando os Atos de todos elementos que permitiriam, num futuro que esperavam não muito distante, recolocar em causa o resultado da conferência", pensando, assim, frustrar o projeto do episcopado católico. A leitura das atas resulta, por isso, interessante porque permite quase entrar em contato direto dentro desta grande aula do tribunal e ouvir - no latim original e na versão italiana de Rossi - as vozes, argumentos, brigas e até mesmo os chutes, ora com golpes de flores, mas outras vezes com ataque de espada. Basta este exemplo do implacável Agostinho, depois de uma longa intervenção do bispo donatista Emérito: "Que resposta curta! Quanto se fala, quando não se sabe o que se pode dizer".
Das mais de 1100 páginas desta obra, o mapa é, obviamente, muito mais rico e complexo deste nosso diagrama modesto e esquemático. Aqueles que quiserem se aproximar do texto integral, encontrarão, de fato, um extraordinário horizonte de fermentos ideais, de controvérsias sanguíneas, de questões delicadas e sempre abertas, como a relação fé e política, mas também a descrição documentada das razões da tradição puritana e daquelas da abertura inovadora, do rigor e do realismo, da identidade local e do horizonte universal global e homogêneo. Deve-se, porém, reconhecer que a irrupção dos Vândalos e o declínio do próprio cristianismo no Norte da África, estenderão uma espécie de sudário, seja sobre a Igreja donatista, seja sobre a Católica, abrindo espaço para o sucessivo embate das lábaros do Islã.
Referência
ROSSI, Alessandro. (Ed.) La Conferenza di Cartagine 411. in Letture cristiane del primo millennio. n. 54, Milano: Paoline, p. 1155.
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A "paz" de Cartago - Instituto Humanitas Unisinos - IHU