13 Mai 2022
"O que parece é que cada um escolhe a si mesmo, sua própria realização, seu próprio bem-estar, seu próprio sucesso. O desaparecimento do superego produz logicamente um ego super: hipertrófico, engordado, voraz, que não visa nada além de si mesmo. O resultado é a falta de vínculos sólidos com os outros e o esfacelamento daquela estrutura que nossos pais latinos chamavam de societas porque consistia em um conjunto de 'sócios'. É daí que vem o sentimento de desintegração moral de que Putin falou de forma propagandística, mas também percebido existencialmente por muitos de nós."
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 12-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "o destino de nossa sociedade chamada Ocidente depende estritamente da capacidade de reencontrar um ideal comum pelo qual viver que seja maior que o interesse do indivíduo e que nos torne novamente um conjunto de sócios, mas desta vez livres de toda opressão. Não sei se conseguiremos, mas sei que só será possível investindo na cultura e no processo de educação. E eu sei que temos que fazer isso de forma massiva e urgente, porque nosso destino está em jogo".
Em seu discurso para o desfile solene na Praça Vermelha de Moscou há alguns dias, o presidente russo Vladimir Putin qualificou a condição do Ocidente como "degradação moral". Deixo de lado a óbvia objeção de que ele é o último a poder falar sobre moral após a tempestade de sangue desencadeada sobre a Ucrânia (aliás, consequência lógica de anos de violências, corrupções, venenos, assassinatos, invasões) e me concentro na questão levantada: tem fundamento falar do Ocidente em termos de "degradação moral"? Muitos já o fizeram; por exemplo, os islâmicos da Al-Qaeda e do Isis, os ideólogos da pureza hindus na Índia de Narendra Modi e em outros países, incluindo a China, é claro.
Para uma grande parte do mundo, nós, ocidentais, parecemos laxistas, moralmente desagregados, muitas vezes depravados.
Ora, que em nossas sociedades existem indivíduos e estruturas econômicas imorais nós o sabemos. Não mais, no entanto, do que em outras sociedades. Aliás, se olharmos para a proteção dos direitos humanos, igualdade de gênero, acolhimento, inclusão, transparência administrativa, liberdade de imprensa e de manifestação e outros indicadores desse tipo, inclino-me a considerar as nossas sociedades eticamente superiores, e não de pouco, em comparação com aqueles que acusam o Ocidente de imoralidade, sociedades em que a corrupção é endêmica, a liberdade um sonho, a igualdade de gênero inexistente. Como explicar então a acusação de degradação moral feita por Putin e muitos outros contra o Ocidente? É só propaganda?
A chave, em minha opinião, está nas palavras pronunciadas em 6 de março pelo Patriarca Kirill, quando afirmou sobre nós que "para entrar no clube daqueles países é necessário organizar uma parada do Orgulho Gay". Ou seja, a chave é a nossa liberdade sexual. Ou melhor: é a liberdade e ponto, da qual a sexualidade talvez seja a manifestação mais óbvia. Portanto, o jogo é jogado sobre a liberdade.
Liberdade significa em primeiro lugar libertação e pode-se dizer que nos libertamos daqueles vínculos instituídos ao longo dos séculos que, ao uniformizar e muitas vezes oprimir os indivíduos (homo ou hetero), faziam com que a sociedade parecesse externamente coesa, como hoje parecem mais coesas em relação a nós muitas sociedades não-ocidentais. Sem esses vínculos, a nossa sociedade parece caótica e desagregada. Mas atenção: aqueles valores que unificavam a sociedade eram muitas vezes afirmados mantendo uma vinculação ao impedir a autodeterminação em nível sexual, religioso e político.
O rígido controle sobre a sexualidade e o pensamento tem sido o fundamento sobre o qual, durante séculos, a estrutura social construiu sua compacidade: é o chamado superego identificado por Freud e entendido como aquilo que controla o ego e o enquadra, muitas vezes oprimindo-o, para fazê-lo desfilar compactamente nas praças do mundo, seja a Praça Vermelha, a Praça São Pedro ou outra qualquer. Não é por acaso que a falar de degradação sejam os fundamentalistas católicos, inimigos da modernidade e saudosos dos bons tempos da Inquisição e das procissões em que toda a cidade desfilava ordenada para celebrar a trindade política "Deus, Pátria, Família". Em suma, é principalmente por causa da liberdade sexual e de pensamento, que o Ocidente parece moralmente desagregado para o resto do mundo.
O problema, no entanto, é que parece desagregado também para muitos de nós. Por quê? Porque é evidente que a libertação daqueles vínculos que mantinham a sociedade coesa à força produziu e ainda produz desordem e desorientação. O ponto decisivo então consiste no discernimento daquele valor absoluto para nós que chamamos de liberdade. Em que consiste exatamente?
A liberdade é um processo. Não é um estado, é uma série de estados, quatro para ser preciso, conectados entre si de acordo com uma dinâmica específica.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que cada um de nós sempre procede de uma condição de servidão porque não nascemos livres, só podemos nos tornar livres e não é ponto pacífico conseguir isso. É por isso que se fala sobretudo em "liberdade do", no sentido de "libertação". Pois bem, penso que adquirimos juridicamente este primeiro estágio do processo de liberdade, tendo conquistado a libertação do controle representado no plano familiar pelo pater famílias e, no plano social, pela censura da Igreja e do Estado, muitas vezes coordenados entre si (o fenômeno é chamado de cesaropapismo e a dupla Putin-Kirill é um exemplo perfeito). Livres dos fardos que oprimiam o indivíduo em sua afetividade e em seu pensamento, nós estamos experimentando, não sem sofrimento, aquela condição de que Jesus falava, dizendo que o homem é mais importante que o sábado (cf. Mc 2,27): é isso, nós nos libertamos dos vários tipos de sábados.
Mas este é apenas o primeiro estágio da liberdade.
O segundo pode ser definido como "liberdade de", como possibilidade de escolha, e acredito que essa é a condição em que nos encontramos: livres das tutelas do passado, hoje podemos escolher. Mas o que de fato escolhemos? O que parece é que cada um escolhe a si mesmo, sua própria realização, seu próprio bem-estar, seu próprio sucesso. O desaparecimento do superego produz logicamente um ego super: hipertrófico, engordado, voraz, que não visa nada além de si mesmo. O resultado é a falta de vínculos sólidos com os outros e o esfacelamento daquela estrutura que nossos pais latinos chamavam de societas porque consistia em um conjunto de "sócios". É daí que vem o sentimento de desintegração moral de que Putin falou de forma propagandística, mas também percebido existencialmente por muitos de nós.
Para superar essa condição é necessário atingir o terceiro estágio da liberdade, que pode ser descrito como “liberdade para”, ou seja, o momento em que a liberdade individual vislumbra algo mais importante do que si mesmo e a isso se dedica livremente. Esse "algo" pode ser chamado de várias maneiras, por exemplo, justiça, verdade, amor, divindade, beleza, bem comum. É essencial que a liberdade seja despendida livremente para outro de si, porque só assim pode reproduzir a lei da vida que é a relação e a sociedade pode voltar a ser o que seu nome indica e não uma massa amorfa de estranhos competindo uns com os outros.
A sexualidade é o lugar onde a pessoa diz “eu sou minha”, como reivindicavam as feministas.
Mas é também o lugar onde a pessoa, se ama, diz ao outro: "Eu sou sua". E está feliz em poder dizer isso. Aliás, penso que cada um de nós vive para poder dizer e ouvir essas palavras. É o fenômeno do amor, que experimentamos na vida individual e que deveríamos conseguir realizar também na vida social, reencontrando um ideal maior do que o nosso interesse ao qual dizer "eu sou seu", "eu sou sua", e tornando novamente possível a reconstrução da sociedade como um "conjunto de sócios”. Assim se chega ao quarto e último estágio do processo da liberdade, ou seja, a "liberdade com".
Um século atrás, Max Weber em sua famosa conferência sobre a ciência como profissão convidava a "olhar nos olhos o destino do próprio tempo". Estes dias obrigam-nos a fazê-lo. Em minha opinião, o destino de nossa sociedade chamada Ocidente depende estritamente da capacidade de reencontrar um ideal comum pelo qual viver que seja maior que o interesse do indivíduo e que nos torne novamente um conjunto de sócios, mas desta vez livres de toda opressão. Não sei se conseguiremos, mas sei que só será possível investindo na cultura e no processo de educação. E eu sei que temos que fazer isso de forma massiva e urgente, porque nosso destino está em jogo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Ocidente e a “degradação moral”. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU