08 Julho 2023
O texto abaixo é fruto de um dos “Cantieri di Betania”, animados pela Rede Caminho Sinodal da Igreja Italiana. “Cantieri di Betania” é a iniciativa que caracterizou o segundo ano do Caminho Sinodal da Igreja na Itália.
O tema da celebração eucarística foi objeto de atenção na consulta realizada em toda a Igreja, em 2021 e 2022, para o Sínodo dos Bispos. Suas questões críticas (homilia, distância da vivência, linguagem...) encontraram eco na síntese “Alarga o espaço da tua tenda”, elaborada pela Secretaria Geral do Sínodo. O Grupo Sinodal de Viandanti também tinha abordado e enviado sua contribuição sobre o núcleo temático “Celebrar”, um dos dez propostos para consulta (ver aqui, em italiano).
O trabalho deste “Cantieri”, compartilhado por muitas realidades além de Viandanti, continua o debate sobre esse tema central para a vida da Igreja e tenta fazer algumas propostas positivas para superar os inegáveis pontos críticos.
O texto original é acompanhado ainda por um anexo com oito testemunhos de experiências celebrativas em pequenas comunidades, que pode ser lido aqui, em italiano.
O texto é publicado por Viandanti, 26-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O trecho dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) – gostamos de pensar em Cléopas com sua esposa, Maria, segundo o que lemos em Jo 19,25 – poderia ser um ícone para repensar e renovar a “ceia do Senhor” de uma forma mais fiel ao Evangelho.
Ao longo do caminho, no momento de desânimo e decepção enquanto se caminha na direção equivocada, chega inesperadamente a Palavra, que se faz próxima. As ações de Jesus nessa narrativa são o primeiro passo da Liturgia da Palavra. [...] Liturgia da Palavra e homilia para aquecer o coração, fazer mudar de direção, realizar a metanoia. Palavra e homilia para a vida como “lâmpadas para os nossos passos”.
Depois, parar na hospedaria, lugar do cotidiano, da alegria da mesa.
Fazer um banquete juntos para reconhecer a presença amorosa de Jesus ao partir o pão da vida a ser compartilhado com todas e todos. A alegria do vinho como em Caná, para dar esperança.
O coração que arde nos envia em missão na vida, por outro caminho (como os Magos), para anunciar a bela notícia do Evangelho a todas e todos.
“Fazei isto em memória de mim” significa a celebração da vida partida e doada às outras, aos outros. Celebrar em casa significa que cada uma e cada um traz um pedaço de sua vida, que se torna pão partido, partilhado.
A partir daí recomeça-se para reconhecer, como sinal dos tempos, que aquelas pessoas que não “vão à missa”, mas vivem com paixão sua existência doada, celebram mesmo assim, de modo autêntico, a eucaristia dominical e são discípulas e discípulas do Mestre.
A partir daí recomeça-se com algumas propostas para uma celebração eucarística mais participativa e renovada, na linguagem e nos gestos. São propostas que brotam da nossa consciência e responsabilidade de ser povo de Deus.
A diversidade de terminologias constitui uma riqueza de significados que não valeria a pena perder simplesmente insistindo em um deles.
Fração do pão – Entre os cinco pães e os dois peixes para os cinco mil que estavam às margens do lago de Tiberíades, a última ceia em Jerusalém e a ceia de Emaús, há uma continuidade marcada pelo gesto da fração do pão. Um gesto capaz de expressar a paixão de uma vida inteira, uma vida justamente partida para a partilha de todas e todos. Um gesto que passou a identificar a própria pessoa do Senhor.
Ceia do Senhor – É Paulo quem recomenda à Igreja de Corinto que salvaguarde a dignidade da Ceia do Senhor. Trata-se de uma verdadeira celebração litúrgica da comunidade de Corinto, e por isso é importante constatar que, na Igreja apostólica, já existia aquela celebração, chamada por Paulo precisamente de Ceia do Senhor, que, ao contrário da Ceia pascal judaica, era celebrada não apenas uma vez por ano, mas todos os domingos, e que a tradição não tardaria em identificar na eucaristia.
Eucaristia – Já na Didaquê, a celebração em que se parte o pão aparece com o nome de Eucaristia, que logo se tornou a denominação mais comum e mais caracterizadora da celebração, e que expressa sua origem judaico-cristã. De fato, Eucaristia é a transposição grega do termo hebraico berakah e é usada para nomear todo o rito a partir do elemento mais decisivo e específico dele, a oração de ação de graças, e o conecta ao conteúdo original da oração de Jesus.
Missa – A palavra latina “missa” é o resultado de uma evolução complexa que se concluiu no início do século VI, quando a última palavra que encerrava a ação litúrgica deu nome a toda a celebração. Segundo uma tradução, “Ite, missa est” significaria: “Vão, é a despedida”; outra interpretação possível entende que “(a eucaristia) foi enviada”, com uma referência, portanto, ao horizonte missionário aberto por toda celebração eucarística.
A contínua desafeição com a participação dominical tem muitos motivos bem conhecidos de todas e todos. Queremos evidenciar a quase total estaticidade e imobilidade do povo de Deus, reduzido a mero espectador de um rito gerido e regido pelo padre.
Realizamos na Igreja uma espécie de ressacralização do sacerdócio, dessacralizado precisamente pelo anúncio profético de Jesus de Nazaré, único sacerdote, obrigando, assim, a participação do povo de Deus em âmbitos muito restritos. Cremos que é necessário reiterar a dignidade do povo das batizadas e dos batizados como sujeitos de pleno direito da memória do Senhor que se celebra na páscoa semanal. O sujeito celebrante é a assembleia como comunidade sacerdotal (cf. 1Pd 2,9).
Também acreditamos que é necessário repensar o papel e o serviço do presbítero: a presidência é erroneamente vista como um movimento de cima para baixo, e a participação é apresentada como uma concessão de uma plenitude do ministério que vem do padre. A presidência não está acima do povo de Deus nem fora dele, mas no povo de Deus e a seu serviço.
A urgente conversão envolve o desafio de problematizar o próprio conceito de chamado ao presbiterado como parte de uma nova compreensão geral do conceito de vocação. Bastaria considerar que ainda hoje, na liturgia da ordenação, faz-se referência explícita a uma eleição e um apelo da comunidade, e não está prevista de forma alguma uma espécie de “autoproposição” do candidato.
A partir dessa consciência, deriva uma série de propostas que consideramos urgentes a fim de pôr em prática uma linguagem que seja expressão do mistério e que, ao mesmo tempo, seja capaz de chegar ao coração e à mente do povo de Deus.
Nas palavras dos sinóticos e de Paulo, a morte de Jesus é um gesto de oblação amorosa: ele deu sua vida como dom de amor. Nos textos litúrgicos atuais, em vez disso, repete-se de forma quase obsessiva a terminologia “sacrificial”, a ponto de se acrescentarem às palavras sobre o pão: “oferecido em sacrifício por vós” [no Missal em italiano; em português, o presbítero diz: “que será entregue por vós”]. Palavras que, porém, não estão escritas no Evangelho, onde se diz apenas: “Isto é o meu corpo dado por vós”. Na fórmula da consagração que é usada na Itália, fazemos Jesus dizer algo que ele certamente nunca disse. A ideia teológica do “sacrifício” está ausente dos textos de Mateus, Marcos, Lucas e 1Coríntios.
Além disso, orações, prefácios e orações eucarísticas recorrem a uma linguagem hoje incompreensível para a maioria, ditada por uma teologia antiga e já superada. Pedimos que eles se inspirem nas leituras do dia e bebam da riqueza espiritual da Palavra de Deus. O tempo litúrgico não deveria ser uma alternativa à vida. Em vez disso, é preciso uma leitura sapiencial da contemporaneidade.
Na “nova edição” do Missal, na segunda oração eucarística, depois de recordar presbíteros e diáconos, teria sido importante acrescentar a menção ao povo de Deus, que aqui é completamente esquecido.
É preciso recuperar a beleza e o poder dos sinais, que são o alfabeto da liturgia, literalmente “obra do povo de Deus”: as velas de cera, que dão luz, aquecem e se consomem; um pão que seja pão de verdade: um pão inteiro, amassado e assado em casa, partido e partilhado. E depois o vinho, proveniente da mesa do povo de Deus: vinho que é memória da paixão e sinal de abundância, de festa. Perdemos completamente a dimensão de ceia da eucaristia: ela nasceu para ser uma memória cotidiana, doméstica, convivial, tornou-se gesto sacral, como em algumas formas de adoração eucarística. Pôr a mesa da ceia durante a celebração eucarística seria uma forma para nos reapropriamos de seu significado secular e universal.
O canto também é um sinal de grande impacto, e nem sempre o valorizamos da melhor forma: as várias vozes que se unem em harmonia são a primeira forma de comunhão. O canto deveria ser um instrumento privilegiado para favorecer a participação ativa da assembleia celebrante, mas, muitas vezes, pelo contrário, a animação litúrgica não leva isso em consideração.
Em algumas dioceses, há músicos contemporâneos convidados a compor cantos em latim, incompreensíveis para a assembleia: como se o mistério da eucaristia tivesse a ver com o fato de não entender o que se está cantando ou escutando!
Não se entende por que o órgão deve ser considerado um instrumento litúrgico por excelência: certamente é o menos bíblico e o menos evangélico, em comparação com os instrumentos de corda ou de sopro!
As nossas celebrações são dramaticamente estáticas: mortificamos a nossa corporeidade, por uma ideia implícita ainda maniqueísta segundo a qual é o espírito que entra na igreja, e o corpo pode ficar do lado de fora, ou pelo menos causar o menor incômodo possível. Olhamos para as liturgias de outras latitudes, na África ou na América ameríndia, com a nostalgia de quem perdeu a profunda conexão consigo mesmo: a dança litúrgica, mas também até uma gestualidade menos tímida poderia fazer com que as eucaristias voltassem a ser celebrações do dinamismo da vida. A projeção de imagens ou a utilização de linguagens diferentes da verbal também podem ser úteis.
A própria arquitetura das nossas igrejas, sempre frontal, com a rigidez dos bancos que impedem todo movimento, não é sinal de partilha, daquela circularidade que deveria caracterizar o encontro de cristãs e cristãos, que tornam Jesus presente entre eles, e que deveria ter a mesa ao centro, e não o altar. Com efeito, parece que nas celebrações eucarísticas se deseja dilatar a distância, a separação entre assembleia e presidente, ainda percebido como o “sacerdote” da era pré-cristã: os paramentos litúrgicos suntuosos e altissonantes vão nessa mesma direção. […]
Sabe-se que as mudanças na Igreja, mas não só, sempre ocorrem porque alguém começa a dar um primeiro passo, a fazer um gesto, a sair das linhas do “sempre se fez assim”.
Sem querermos ser presunçosos, o adágio do Pe. Milani poderia ser reescrito assim: a obediência nem sempre é uma virtude. Onde por obediência entendemos a conservação e o apego às nossas tradições recíprocas, e não tanto a obediência ao mandamento de Jesus (“Fazei isto em memória de mim”), que, em vez disso, deveria ser uma referência estável.
Se hoje algumas discípulas e alguns discípulos de Cristo sentem o desejo ou, melhor, a necessidade urgente de se sentarem juntos à Ceia do Senhor, e não só acolher à própria mesa a outra e o outro que pertencem a uma confissão cristã diferente, pois bem, esse nos parece ser um daqueles sinais do Espírito fecundos de futuro que, acima de tudo, repropõe a fidelidade ao mandato de Jesus, que não excluiu ninguém da sua mesa, nem mesmo Judas – já pensamos que não há eucaristia se Judas estiver ausente? –, mas que também implica uma certa desobediência aos nossos costumes.
O desejo de Cristo é muito maior do que a diversidade que acumulamos ao longo do tempo e que hoje correm o risco de incrustar a beleza do dom recebido. Essa é uma urgência e uma necessidade que vêm não só do fato de sermos discípulas e discípulos apaixonados pela unidade e desejosos de plena comunhão, mas que derivam do senso de responsabilidade por aquilo que o mundo pede: paz (pão doado), justiça (pão partido) e cuidado da casa comum (pão como fruto do trabalho que respeita o ambiente).
Acolhida – Nas portas da igreja, haja uma acolhida pessoal por parte do presidente ou de uma ministra ou ministro da acolhida. Antes do início, dê-se uma breve informação sobre o período do ano litúrgico, sobre as leituras, sobre os cantos. [...] Nas assembleias menos numerosas, poderia ser significativo partir da vida, da vivência pessoal e comunitária, compartilhando as alegrias e as dores da semana.
Homilia – O monopólio clerical da homilia é a questão principal: é bem pouco preparada, prolixa, genérica, moralista, sem possibilidade de intervenção por parte da assembleia celebrante (o Papa Francisco, que disse o melhor sobre a homilia na Evangelii gaudium, nn. 145-179, sugere que ela deve ter “não mais do que dez minutos”); não raro é pedante, fora do tempo e do espaço...
É razoável que a pregação seja preparada durante a semana por um grupo de paroquianas e paroquianos que queira refletir sobre o Evangelho, do qual o padre depois seja o porta-voz (dando, obviamente, sua contribuição) durante a homilia. Em algumas paróquias, a homilia do padre já é seguida de outras breves intervenções programadas de leigas e leigos; seria bom que isso se tornasse uma prática generalizada. […]
Invocações penitenciais – É preferível adiar o pedido de perdão para depois da escuta das Escrituras, de modo que a assembleia tome consciência da distância pessoal e social em relação à palavra de Deus.
Oração universal dos fiéis – Não se utilizem preces lidas nos folhetos da missa, idênticas para todas as dioceses. Evite-se dar indicações a Deus. Expressem-se sentimentos e desejos que tenham relação com o momento e o lugar em que as orações são explicitadas, de um ponto de vista local e global: pessoas, atividades, alegrias e sofrimentos da paróquia, da cidade, do mundo. As orações poderiam ser espontâneas e/ou preparadas durante a semana por um grupo de paroquianas e paroquianos. Poderiam ser recolhidas para o domingo seguinte em um livro presente na igreja durante a semana, no qual qualquer pessoa possa escrever.
Credo – O Credo usual niceno-constantinopolitano pode ser substituído por outros “Credos” (existem alguns muito bonitos). O Credo previsto e lido a uma só voz reflete agora os conteúdos de disputas teológicas dos primeiros séculos e não transmite o relato vivo hoje da “boa notícia” de Jesus.
Ofertório – Além do pão e do vinho, sejam depositados ao pé do altar objetos que expressem uma mensagem, um sentimento, um propósito (poesias e orações recolhidas durante a semana, flores, cartazes, alimentos, além da habitual coleta de dinheiro que deveria ser feita na primeira parte da missa).
Abraço da paz – Que não seja silencioso. Cada um se habitue a dizer “a paz esteja contigo” ou uma expressão equivalente. Depois do “jejum de contatos” imposto pela pandemia, é uma alegria poder trocar um aperto de mão ou, melhor ainda, um abraço e um beijo de paz.
Comunhão – Seja distribuída sob as duas espécies, pelo menos várias vezes ao ano. Que o “sabor” da partícula seja de pão, e não de nada, como agora: seria importante preparar o pão em casa e parti-lo durante a consagração, para que cada uma e cada um receba um pedaço, parte do todo.
Depois da comunhão – Seria desejável que a assembleia expressasse em conjunto uma oração cujo texto se inspire na Palavra ouvida.
Anúncios finais – Que sejam a várias vozes, não apenas a do presidente, e não digam respeito apenas às atividades da paróquia, mas também às da sociedade civil que participa da paróquia. Que seja uma oportunidade para informar periodicamente sobre o orçamento da paróquia.
Despedida e bênção – Que o presidente relance o conteúdo do Evangelho como mandato para a vida da semana. É importante que o presidente se sinta parte da assembleia e diga que a bênção desça sobre “nós”, e não sobre “vocês”.
O texto foi partilhado pelas seguintes realidades que participam da “Rede Caminho Sinodal da Igreja Italiana”:
Adista, C3Dem (Costituzione, Concilio e Cittadinanza – Per una rete tra cattolici e democratici), Cammini di Speranza, CIF – Centro italiano femminile – Lombardia, Cipax – Centro interconfessionale per la Pace, Comunità Cristiane di Base italiane, Comunità ecclesiale di Sant’Angelo – Milano, Coordinamento 9 marzo – Milano, Decapoli – Laboratorio di pensiero sull’evangelizzazione e i cambiamenti nella Chiesa, Donne per la Chiesa, Fraternità Arché, Il Faro, Il Gibbo, La Tenda di Gionata, Noi siamo Chiesa, Noi siamo il cambiamento, Ordine della Sororità, Pax Christi, Per una Chiesa diversa, Ponti da costruire, Pretioperai, Progetto Adulti Cristiani LGBT, Progetto Giovani Cristiani LGBT, Rete 3VolteGenitori, Viandanti.
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Repensar a missa, na fidelidade ao Evangelho e ao hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU