05 Mai 2023
Utopías digitales é a primeira obra inédita da recém-criada cooperativa editorial Verso Libros. Seu autor é o jornalista Ekaitz Cancela (Barakaldo, 1993), que é também um dos promotores deste novo projeto editorial socialista. Esta obra é a continuação de Despertar del sueño tecnológico. Crónica sobre la derrota de la democracia frente al capital (Akal, 2019).
Com uma prosa mais cuidadosa, o autor busca ser mais propositivo na busca de alternativas tecnopolíticas que favoreçam uma mudança de sistema econômico. Ou como esclarece o subtítulo do livro: imaginar o fim do capitalismo. Esta entrevista é o resumo de duas horas de conversa, em um parque madrilenho, em frente a uma biblioteca e uma universidade pública.
A entrevista é de Fermín Grodira, publicada por La Marea, 04-05-2023. A tradução é do Cepat.
Já se passaram quase quatro anos desde o seu livro anterior. Como o panorama tecnológico e a economia política mudaram neste período?
No meu livro anterior, buscava despertar do sonho tecnológico, fixando-me nos meios de comunicação como protagonistas da distopia tecnológica e de uma lógica econômica plasmada no processo destrutivo do digital. Quase quatro anos depois, a digitalização capitalista já se impôs em muitas esferas distintas às midiáticas.
Não queria refletir neste novo livro em termos muito teóricos sobre como é esse sistema, porque isso já sabemos. Queria colocar-me novas questões, contar histórias sobre como a técnica nos permite superar este sonho e apresentá-la como uma alavanca para imaginar formas de vida alternativas.
Em seu livro anterior, buscava politizar a tecnologia, no atual, explora quais políticas públicas podemos fazer para imaginar o fim do capitalismo.
Em muitos exemplos, analiso o papel dos Estados, mas também indico que são nas margens que habitam nossas capacidades utópicas, anseios emancipatórios e poder criativo. Entendendo a cultura e a sociedade como esses lugares onde é possível desbloquear o engenho coletivo, quase como uma forma de vida que transcende o Estado e o mercado.
Para sair do capitalismo, temos que mobilizar todas as nossas energias revolucionárias e começar a construir imaginários e criar coisas novas. Não basta apenas denunciar o capitalismo.
Considera o “meme” a “expressão máxima da circulação de mercadorias digitais”. Fomos enganados?
O meme é a mostra da autenticidade, de que nossa criatividade antecede o mecanismo impessoal do mercado. Contudo, gostaria de viver em uma sociedade com memes diferentes, que não estivesse dentro de uma polarização política muito clara e que não tivéssemos que fazer memes para participar democraticamente da esfera pública. Que o meme não fosse a única ferramenta nas redes sociais para travar a batalha política contra a ultradireita.
Afirma que “a vida humana foi reduzida a uma troca de dinheiro por experiências genuínas por assinaturas de algumas plataformas”. Não há realmente nada que escape do capitalismo digital?
No primeiro livro, eu diria que não, seguindo a Escola de Frankfurt. Agora, que tudo escapa do capitalismo digital. Compartilhar ou debater um conteúdo nas redes é um impulso genuinamente humano de se comunicar com outras pessoas e de estabelecer vínculos sociais.
A forma como nos comunicamos está fixada pelas regras da plataforma, que nos obriga a pensar em um tuíte de 280 caracteres e precisa extrair de nós informações para consolidar o modelo de negócio das plataformas. Contudo, o ato inventivo estava presente muito antes.
Como as músicas criadas para serem tendência no TikTok.
Todos esses aplicativos querem que você clique, que gere mais feedback. E não me parece ruim que uma plataforma esteja projetada para gerar mais dados. Em alguns casos, pode ser muito útil para encontrarmos problemas e nos coordenarmos socialmente para resolvê-los.
O problema surge quando a única forma de participar ativamente do mais alto estágio de desenvolvimento tecnológico da história é como consumidores que obedecem à publicidade.
Você diz que “as redes sociais reduziram todas as nossas práticas de comunicação a nos expressarmos por meio de retuítes ou curtidas”. Parece-me uma expressão reducionista que ignora as contas fechadas no Instagram ou no Twitter e outras lógicas, talvez minoritárias, que existem nestas redes.
Minhas desculpas por soar reducionista. Relacionarmo-nos com outras pessoas, ainda que em redes privadas, enriquece nossas personalidades e identidades e favorece chegar a conclusões que não alcançaríamos de outra forma. Contudo, nas redes sociais, nosso repertório de botões para nos comunicarmos é ínfimo e são projetados para restringir nossa imaginação dando clique.
Por que uma das poucas funcionalidades das plataformas é dar um like de coração? Porque é a maneira mais eficiente para as empresas coletarem dados que podem processar e vender. Imagino um bairro onde uma multinacional queira abrir uma franquia. Por que não existe uma ferramenta tecnológica que permita aos cidadãos votar se preferem um comércio local ou espaços autogeridos, após lhes mostrar dados relevantes para a tomada de decisão? Por que não há mecanismos de democracia direta e radical para além do botão like?
O Mastodon faz parte dessa construção de uma Internet socialista?
O Mastodon, junto com outras plataformas de código aberto, é um exemplo de que é possível imaginar alternativas e falar de utopias. Minha preocupação é como institucionalizamos essas alternativas, introduzimos na vida cotidiana e desenvolvemos estratégias políticas para expulsar as plataformas comerciais.
As bibliotecas são uma utopia diária.
As bibliotecas são instituições pensadas para que a propriedade privada e o mercado não sejam os padrões que regem o acesso à cultura. Não há nada mais anticapitalista do que uma biblioteca. Nada ilustra melhor uma prática sustentável com o ecossistema vivo do que arquivar conhecimento.
A história é sempre escrita pelos vencedores, mas buscar preservar um patrimônio cultural de uma época para outra é muito mais produtivo do que qualquer lógica atual que impere na Internet. Uma biblioteca não existe para multiplicar e viralizar a produção de lixo, mas para reduzir a poluição cognitiva, embora seja trágico que muitas dessas instituições tenham se reduzido a recolher as absurdas novidades dos grandes grupos editoriais.
Por que Wikipédia, Internet Archive, Sci-Hub e outras iniciativas coletivas cumpririam essa função social de “bibliotecas digitais” e não o Google Acadêmico? O que as diferencia?
Assim como as bibliotecas, esses projetos digitais não têm como vocação colocar barreiras ao conhecimento para ganhar dinheiro, pelo contrário, procuram romper as barreiras materiais que nos separam do conhecimento. Também politizam um sistema predatório de publicação acadêmica que prende as melhores cabeças pensantes da humanidade em um muro de pagamento. Nenhum indivíduo que queira aprender pode se permitir esses custos. Eu nunca teria sido capaz de entender a tecnologia da forma como compreendo no livro sem o Sci-Hub. Por que não podemos institucionalizar experimentos como o Sci-Hub e democratizar o acesso aos bens de conhecimento?
Uma empresa como o Google pode decidir fechar o Google Acadêmico a qualquer momento e nos fazer perder a única forma de acesso à pesquisa científica. Por que as bibliotecas das universidades não buscam criar plataformas alternativas onde se destaque todo o conhecimento que criam? Isso nos permitiria politizar o sistema de produção acadêmica que temos e colocar no debate público se queremos que os acadêmicos produzam mais ou produzam melhor.
Ou seja, o Google comercializa a produção acadêmica.
Não só. O Google também comercializa a palavra e a linguagem. Há estudos que mostram que o modelo de negócios do Google reduziu a riqueza linguística digital. E se isso se aplica ao Google Acadêmico, por que não existem mecanismos algorítmicos que usam outras ferramentas do Google para mostrar resultados de busca mais alinhados aos nossos interesses?
Porque o Google Acadêmico não gera lucros econômicos, mas, sim, legitima a posição do Google na esfera pública por se apresentar como um bem público, legitima-o perante a comunidade acadêmica, permite extrair enormes quantidades de dados e evita que apareça alguém que faça a mesma coisa cobrando. Contudo, o Google Acadêmico não tem uma vocação de biblioteca digital universal.
O mesmo acontece com o Google Books.
Por que não existe algo equivalente mais sofisticado que o Google Books, mas promovido pelo Estado? Quando você quer um livro, pode pedir em uma biblioteca e ele chegará, mas por que se você quer que um livro seja traduzido não consegue, sendo que há muitas pessoas dedicadas a isso e tecnologias que reduzem a parte mais árdua e alienante do trabalho dos tradutores?
Estou falando em criar uma economia digital baseada na linguagem, ainda que socializada, onde boa parte dos profissionais que trabalham no setor editorial se dediquem a organizar o conhecimento, colaborar entre si e pensar em formas de criar valor diferentes ao da troca.
Agregadores de notícias nos quais a comunidade envia e vota em notícias, como Menéame, entrariam nesse ecossistema alternativo?
Como sistema de crédito social alternativo mais baseado na comunidade, soa-me bem. Qual é o problema? Intervém em um dado ecossistema jornalístico, mas não o transforma com alguma intervenção tecnopolítica. Existem problemas prévios para resolver, na esfera midiática, antes de pensar em um agregador de notícias.
Além disso, muitas coisas que funcionam no Menéame são mercadorias rápidas e pouco reflexivas que também se encaixam no Google. Certo, é um bom remendo, mas até você evitar que os meios de comunicação tenham que hiperproduzir e publicar uma quantidade muito grande de lixo para que sejam melhor indexados pelo Google...
De que forma a inteligência artificial pode nos ajudar a gerar cultura e ampliar essa imaginação que você reivindica?
Andrew Scheps, o engenheiro de som que mistura Adele e Red Hot Chili Peppers, dizia em uma entrevista recente que as tecnologias são fundamentais para não desacelerar o processo criativo, mas que a inteligência artificial não pode criar nada de novo. E é verdade. Como conseguir que as tecnologias sejam uma extensão de nossa inteligência? Em uma conferência, Evgeny Morozov dizia que a inteligência humana é artificial por si mesma, pois se serve de instituições culturais para funcionar.
A questão é conseguir fazer com que tecnologias como a inteligência artificial sigam esse caminho. Os primeiros cibernéticos soviéticos sabiam perfeitamente que as máquinas de computação eletrônica que estavam criando não poderiam substituir as tarefas do cérebro humano, pois possuem estruturas qualitativamente diferentes. Uma inteligência artificial não tem a capacidade de espontaneidade que as pessoas têm, muito menos essa criatividade. Por acaso, os aviões e os carros substituíram as pernas humanas?
Como construirmos futuros melhores?
Por meio da aliança entre diferentes disciplinas e perfis: engenheiros, cientistas, ativistas, filósofos e pessoas das humanidades em geral... É um ato coletivo. A capa deste livro é um exemplo disso porque nasce de um trabalho de criação coletiva entre um designer, um engenheiro e um cientista social, se é que eu posso me definir assim.
A imaginação tem que ser coletiva porque a criatividade é social. Para construir o futuro, temos que desbloquear o conceito criativo no proletariado, o que lhe permita sair do fetichismo da mercadoria, e criar plataformas que favoreçam a ação conjunta.
Fala-se, como faz Layla Martínez, do excesso de distopias e da falta de utopias na produção cultural atual. Qual é a sua interpretação?
Temos milhares de exemplos de utopias que funcionam, mas carecemos de ficções que as representem. Recentemente, li o genial livro Imaginación material, de Andrea Soto Calderón, que aborda muito bem uma crise nas imagens que somos capazes de criar sobre o mundo.
Tanto com a crise climática como com a guerra na Ucrânia e a pandemia, criamos imagens que mostram constantemente desolação e nos privam de ferramentas para mudar as coisas. Isto tem a ver com o estado do capitalismo contemporâneo e com o fato de que a imaginação, de alguma forma, foi submetida aos meios de produção.
O sistema capitalista perdeu a capacidade de imaginar. É incapaz de reproduzir algo semelhante ao que foi produzido na fase industrial, e isso se deve, em grande parte, aos limites orgânicos desse metabolismo, como a destruição ecológica, como diria Kohei Saito. O sistema já não cria per se, nem destrói criativamente, se é que alguma vez fez isto, mas se ajusta constantemente, em muitos casos gerando mais problemas.
O neoliberalismo é uma forma de subdesenvolver os arranjos que não são os do mercado, de canalizar a criatividade por meio de mecanismos comerciais que bloqueiam qualquer ato coletivo, como diz Morozov. A crise da imaginação é determinada pela crise do próprio capital e dos problemas da classe dominante para encontrar saídas. Temos que entender a mudança epistêmica que as tecnologias trazem para melhorar nossa posição na luta de classes.
Um exemplo raso nesse sentido é a série Ruptura, que termina a primeira temporada com um processo autoconsciente de pensar em um fora e de realizar a prática de puxar o freio de emergência. Não há tantos exemplos dessa “negação” emancipatória no mundo da arte.
Uma série que alguns consideram utópica e outros distópica.
Ultimamente, só me ocorrem utopias. Não acredito que essa crise da imaginação seja tão real. O primeiro Marx estava mais próximo de qualquer artista como Rosalía do que de Stalin, aquele Marx que entendia que a fonte do sujeito proletário era a criatividade. Acreditamos que a forma como as pessoas são politizadas e se colocam contra o sistema se dá quando são exploradas material e economicamente. Se as pessoas não estão queimando as ruas neste momento, é porque há algo mais.
O sistema capitalista tem outros mecanismos de legitimação e é aí que eu acredito que entra o fracasso na hora de destruí-los. Há outro mecanismo de legitimação do neoliberalismo: a forma como as pessoas vão descobrindo coisas novas, mesmo que seja uma imagem falsa, como fazem as redes sociais e o capitalismo neoliberal, que nos permite continuar tendo uma vida dentro desse sistema.
Se no livro anterior você pecava por pessimismo, neste, às vezes, penso que você superdimensiona as capacidades de uma tecnologia liberta do jugo do capital.
Entendo as tecnologias como a ferramenta que permite que o capitalismo continue operando, mas não busco argumentar que muitos de nossos grandes problemas podem ser solucionados com tecnologia, como, por exemplo, o aquecimento global. De fato, um dos grandes experimentos neoliberais tem a ver com a geoengenharia, que considero tecnosolucionista.
Sim, acredito que a tecnologia pode nos ajudar a mapear problemas, visualizá-los e nos organizar democraticamente para enfrentá-los, mas a tecnologia não pode descobrir soluções para a mudança climática por conta própria. A crise climática é evidentemente um problema capitalista e só pode ser solucionada por algum tipo de via socialista. Acredito em desautomatizar e desprogramar as tecnologias e, ao mesmo tempo, em ressignificar o que é automatizar. No livro, eu não falo de uma utopia de luxo totalmente automatizada, mas de uma alternativa modelada.
Por que propõe modelar em vez de automatizar?
A automação é o paradigma empregado pelo capitalista. Busca substituir tarefas diárias e corriqueiras para aumentar a produtividade, mas em boa medida são processos e trabalhos estúpidos e irracionais que não deveriam existir em nenhum mundo alternativo.
Quando falo em modelar, refiro-me a visualizar diferentes cenários e rotas de ação, especialmente no que se refere ao desenvolvimento e a sustentabilidade. Se não conseguirmos criar modelos que partam de um cenário futuro em que não haja crescimento econômico, seremos incapazes de encontrar um exterior ao capitalismo.
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“A crise da imaginação é determinada pela crise do próprio capital”. Entrevista com Ekaitz Cancela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU