19 Abril 2023
Em Sestri Levante, na Itália, no âmbito da Escola de Formação Teológica, o teólogo italiano Andrea Grillo proferiu uma conferência na noite do dia 4 de abril dentro do curso intitulado “Clericalismo, doença da Igreja”.
A partir das anotações daquela noite, Grillo escreveu este breve texto de reflexão, publicado por Come Se Non, 14-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "O Concílio Vaticano II e hoje omagistério de Francisco pedem à teologia que elabore categorias eclesiais novas, também e talvez sobretudo no âmbito sacramental e ministerial, em que as lógicas feudais do ordo e do cerimonial ainda confundem de forma demasiado grosseira o ancien régime com a fé cristã, a diferença social com a transcendência de Deus, e a representação formal de um único “sacerdote” com a ação ritual de todo o povo de Deus, entendido como comunidade sacerdotal".
“... esse nome de ‘clerical’ é sinônimo de ‘perfeito católico’, segundo a religião, e de ‘perfeito cavalheiro’, segundo a civilização” (La Civiltà Cattolica, 1875, I clericali secondo i liberali, p. 20)
“O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o povo de Deus (cf. Lumen gentium, nn. 9-14), e não só a poucos eleitos e iluminados” (Francisco, Carta ao cardeal Ouellet, presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, 2016).
O que está em jogo no clericalismo? Eu diria que a questão mais evidente hoje é a de uma Igreja “fechada em si mesma” e incapaz de “saída”. Sair de onde e para onde? Para a Igreja, trata-se de sair de si mesma ou, melhor, de fazer Cristo sair de si mesma, para que possa chegar ao mundo.
No centro, portanto, está uma “sapiência de saída” que a tradição geriu de formas diferenciadas e que hoje nos pede uma forma totalmente nova no modo de refletir e de agir. Porque a “diferença de Deus” não se dá mais na diferença de ordens sociais e de sujeições pessoais. Essa questão cultural e social é central para o nosso problema. Talvez ele consista precisamente no fato de não saber mais distinguir essas variantes (culturais, sociais, antropológicas) entre dois modos diferentes de anunciar “a diferença de Deus”.
Em uma pequena página que o futuro Papa Francisco usou para seu discurso pouco antes de ser eleito, ele diz que a Igreja deve escutar a “batida do Senhor” que está à porta, mas bate para sair, não para entrar: ele quer sair para o mundo! O clericalismo, poderíamos dizer, brota da “captura de Deus” nos fechamentos eclesiais. Faz-se coincidir a diferença de Deus com as diferenciações sociais, burocráticas, formais que a Igreja elaborou legitimamente ao longo dos séculos, mas que devem ser lidas com lucidez, para saber discernir “o que não morre e o que pode morrer” (Dante).
Certamente, a diferença de Deus não se anuncia na “indiferença”. Nem tudo é igual! O Deus que é “amor em excesso” diz uma transgressão e uma diferença. Diríamos, portanto, que a diferença de Deus exige uma nova “não indiferença”. E aqui está o ponto delicado e dolorido. Como fazemos para ser “não indiferentes” sem ser simplesmente antiquados?
Gostaria de percorrer uma breve trajetória em busca de uma definição desse paradoxo. Para fazer isso, após uma premissa histórica sobre o surgimento do termo “clericalismo” (§ 1), tento um primeiro esclarecimento do termo primeiro na história recente e depois na história antiga (§ 2), chegando, enfim, à raiz “sacramental” do clericalismo (§ 3), para depois concluir (§ 4).
Como se anunciava a diferença de Deus, até o século XVIII? Com a subordinação a Deus da ordem social, pensada em sua diferença insuperável entre “ordens”, entre “estados”, entre “classes”, entre “hierarquias”. No mundo tradicional, a estrutura social é imagem de Deus. Funda-se na autoridade (não na liberdade) e na diferença (não na igualdade): nesse mundo, a fraternidade é decisiva para reequilibrar as diferenças impostas pela subordinação e pela desigualdade.
Por isso, o atentado “liberal” e “republicano” à estrutura hierárquica e monárquica do mundo foi percebido (não só pela Igreja, mas também por todo o mundo tradicional) como pecado original da modernidade. No Du Pape, de De Maistre, isso fica muito claro. Por isso, o termo “clericalismo”, que surge depois de meados do século XIX, é cunhado pelo “inimigo” maçom e liberal como uma acusação contra a nostalgia de uma concepção da autoridade confiada ao clero.
A palavra nasceu, portanto, como definição do catolicismo em termos de “resistência radical na defesa do poder temporal”. Por outro lado, a palavra, nascida e percebida como um insulto, é recuperada positivamente, como uma qualidade inevitável do bom católico e do bom cavalheiro (cf. epígrafe da La Civiltà Cattolica de 1875).
O desenvolvimento do tema sofreu em 150 anos uma grande transformação, como atesta D. Menozzi (“Il papato di Francesco in prospettiva storica”, pp. 179-191), chegando a uma virada, preparada por Paulo VI e João Paulo II. É singular o fato de que, nos sete anos de pontificado de Bento XVI, o termo aparece nos discursos oficiais apenas uma vez, enquanto nos primeiros sete anos de pontificado de Francisco (até 2020) o termo já aparece 55 vezes! O clericalismo passa, assim, de uma “defesa dos direitos da autoridade eclesiástica” a uma “doença eclesial”, de uma prerrogativa da Igreja em relação ao mundo a uma perversão interna da identidade social católica.
No entanto, deve-se dizer que o “clericalismo”, mesmo em sua pior acepção, diz uma “abertura ao mundo”: um mundo a ser dominado, a ser julgado, a ser separado, a ser regido, mas um mundo significativo e até decisivo. Não há nada de “autorreferencial” no clericalismo da tradição: esse é o paradoxo. O clericalismo torna-se “autorreferencial” quando se torna defesa do mundo, fechamento ao mundo, separação do mundo. Vejamos melhor essa dinâmica paradoxal.
Comecemos esclarecendo o horizonte. A “diferença” decisiva é aquela entre Deus e o ser humano. Uma diferença que encontra síntese no Filho de Deus, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. A raiz séria do clericalismo está nessa diferença, que é afirmada e defendida por meio da identificação com uma estrutura de ordenamento social e cultural.
O “ordo”, aquilo que hoje chamamos de ministério ordenado, é justamente essa forma clássica de pensamento da diferença de Deus, que se torna princípio de organização social da Igreja. A diferença de Deus cria a diferença social: alguns (poucos) são os guardiões dessa diferença para todos os outros. Por isso, a diferença social conserva a diferença de Deus.
Essa diferença é historicamente mediada pelos “sacerdotes” (mas também pelos reis e pelos profetas), que garantem a diferença e, de algum modo, a administram. A afirmação dessa solução aparece claramente na história da Igreja cristã e católica em particular (mas não só nela).
Sobretudo a partir dos séculos IV e V, a tendência também da Igreja foi elaborar lentamente uma “teoria do clero”, dos “clérigos”, como sujeitos “diferentes”, separados, que conservam a diferença de Deus. O De ecclesiasticis officiis foi o manual para essa formação na diferença testemunhal. Tal custódia ocorria em dois níveis: o “sacramental” (no topo estava o padre-sacerdote) e o “jurisdicional” (no topo estava o bispo). Os dois planos estiveram tão separados por cerca de um milênio que podiam ser divididos. Podia-se ser bispo sem ser padre! Hoje, esquecemos tudo isso, mas, ao lermos o antigo Ceraemoniale Episcoporum, entendemos muito bem do que se trata!
Mas a Igreja cristã, em seus textos instituintes, tem uma visão diferente tanto do sacerdócio quanto do ministério. Há apenas um único sacerdote, que é ao mesmo tempo sacerdote, altar, vítima e Deus, além de rei e profeta! E os ministérios assumem nomes “leigos”, como epíscopo, presbítero e diácono, sem assumir tais determinações sacerdotais. A redescoberta dessas verdades originais, que marca a cultura do protestantismo e depois a cultura comum de todo o cristianismo dos últimos dois séculos, põe em crise a reconstrução clássica e a leitura da ordem social como “garantia” de Deus.
A organização da Igreja em “duas ordens” (clero e leigos) não é um elemento originário da fé cristã. Porém, desenvolveu-se no início da Idade Média e durou até o século XX.
Após uma nova reconstrução da Igreja, desejada pelo Vaticano II, de acordo com a tripartição entre profecia, realeza e sacerdócio (as três diferenças na custódia de Deus), repropor o clero como separação estrutural torna-se objetivamente “clericalismo”: poderíamos dizer que é a reproposição da “diferença de Deus” na forma histórica de uma “diferença de honra”. A história da Igreja e a história da cultura se entrelaçam de modo muito profundo e quase indissolúvel.
Aqui, pode-se recorrer a uma bela distinção feita por Charles Taylor (em seu livro “Il disagio della modernità”), a saber, aquela entre “sociedade da honra” e “sociedade da dignidade”. A primeira se baseia na “diferença”, enquanto a segunda, na “igualdade”. O sujeito é reconhecido na primeira como “diferente”, na segunda, como “igual”. A questão que se coloca à Igreja há 200 anos soa assim: como anunciar o Evangelho em um mundo em que a estrutura social se fundamenta não em uma “diferença”, mas em uma “igualdade”? Significa tentar separar a “Igreja” da “societas inaequalis”, defendida ainda por Pio X em 1906 com estas palavras:
“Daí resulta que essa Igreja é por sua natureza uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade formada por duas categorias de pessoas: os Pastores e o Rebanho, aqueles que ocupam um grau entre os da hierarquia, e a multidão dos fiéis. E essas categorias são tão claramente distintas entre si, que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros para as finalidades sociais; e que a multidão não tem outro dever senão o de se deixar guiar e seguir, como um dócil rebanho, os seus Pastores” (Pio X, Vehementer nos).
Entre as formas de subavaliação do clericalismo, estão as considerações insuficientes de sua realidade: quase como se fossem exageros ocasionais de uma estrutura substancialmente justificada e sadia. A partir do que eu disse, no entanto, pode-se inferir que o clericalismo se aninha em concepções fundamentais (e distorcidas) da natureza da Igreja. Vejamos as principais formas em que se encarna a “resistência” do modelo de pensamento que desliza, eu diria inevitavelmente, no clericalismo:
a) A constituição “separada” da cultura eclesial
A primeira raiz do clericalismo é a pretensão (muito recente) com a qual a Igreja interpreta a si mesma como um “sistema cultural paralelo”. Há uma boa intenção: a de garantir a “diferença de Deus” no mundo tardo-moderno, de defender a diferença da Palavra das palavras dos seres humanos. Mas o caminho é “clerical” porque pretende ser capaz de identificar a diferença (que continua sendo necessária e vital) sem passar pela cultura comum. Esgotando-se em uma cultura “intra muros”, a cultura do antimodernismo é clerical por vocação e por destino. E assim perde a possibilidade de sair ou, melhor, afirma-se justamente no fato de não ter que sair, de modo algum.
b) A compreensão da eucaristia como “ação reservada ao clero”
A segunda raiz, muito mais antiga, é a cultura clerical (em sentido estrito) que diz respeito ao sacramento da eucaristia. Ou seja, a teoria segundo a qual é o bispo ou o padre quem “reza a missa” diante de uma assembleia de espectadores mudos. No desenvolvimento sacramental, a partir da alta Idade Média, a segunda raiz do clericalismo encontra-se nessa separação do “corpo de Cristo”. Essa raiz só pode ser remediada com uma teologia diferente do sacramento da eucaristia, que faça da “actuosa participatio” não apenas um novo ornamento cerimonial, mas sim um elemento substancial da teologia do sacramento.
c) A compreensão do clero como “corpo separado” da Igreja
A terceira raiz, que alimenta tanto a segunda quanto a primeira, é a diferença do “ordo”. O fato de o ministério eclesial assumir uma forma social de “ordo” é a forma ontológica de uma diferença de autoridade pensada segundo as lógicas de uma sociedade sem liberdade e sem igualdade. Isso não significa que a Igreja não possa e não deva ter um ministério sacramental, mas sim que as formas que ela assume absorveram formas culturais e sociais que não conseguem mediar nem a liberdade nem a igualdade. As resistências com que se obstaculiza todo acesso da mulher ao ministério ordenado fazem parte dessa ideia de homo hierarchicus com a qual, durante séculos, confundiu-se uma forma cultural com o Evangelho.
Como é possível “sair” dessas três raízes do clericalismo?
a) a relação Igreja-mundo deve ser entendida sem oposição frontal: a elaboração de diferentes estratégias de anúncio da diferença de Deus em Cristo deve levar em conta a relação pela qual a Igreja é salvação para o mundo, mas o mundo é boa saúde para a Igreja.
b) A eucaristia não é, acima de tudo, ação do sacerdote, mas ação de Cristo e da Igreja: a “participação ativa” tem aqui a sua raiz e o seu terreno de elaboração, que não nega a presidência, mas não lhe permite requerer a experiência do sacramento.
c) Uma releitura do ministério ordenado deve ocorrer em continuidade com os três dons do batismo: munus docendi, munus regendi e munus sanctificandi são qualidades de todo batizado, assim como novos critérios transversais para a compreensão de cada um dos três graus do ministério ordenado.
A perspectiva que faz sair do “clericalismo” é aquela que pode refletir de modo novo sobre quem são os sujeitos dotados de autoridade na Igreja. Como se deve compor a “diferença da autoridade” com a “igualdade na liberdade”? A sociedade da honra tinha respostas claras, mas cultural e socialmente superadas. A sociedade da dignidade é atual, mas ainda tem respostas cansativas, pouco elaboradas, claras demais e sem procedimentos afirmados. Precisamos trabalhar nisso hoje. Sabemos o que não devemos mais fazer. Mas não sabemos bem com o que devemos substituir aquilo que está superado. Aqui está o nosso compreensível embaraço, sobre o qual devemos agir e pensar, propor novos modelos, deixando-nos inspirar, como diz a GS 46, “à luz do Evangelho e da experiência humana”.
Como a Igreja faz para “sair de si mesma”? Há 150 anos, com o termo clericalismo, havia se identificado um antigo “método de saída”, contestado na época, mas primeiro afirmado e pacificamente pressuposto: ele consistia em conservar, a todo o custo, uma autoridade direta, jurídica e administrativa sobre o mundo secular, que a Igreja, assim, achava que continuaria orientando e governando. Mesmo nas visitas pastorais posteriores ao Concílio de Trento, os bispos atuavam como assistentes sociais, administradores, juízes, consultores financeiros e comissários de polícia. Essa opção, que nascia como uma necessária “abertura ao mundo” e que havia caracterizado os séculos a partir do mundo tardo-antigo e o início da Idade Média, transformou-se ao longo do tempo em um fechamento hermético em relação ao mundo, que produzia uma perigosa deriva autorreferencial.
Por isso é tão difícil sair do clericalismo: porque durante séculos foi o modo por excelência da “Igreja em saída”. Para habitar o mundo, a Igreja deve hoje pensá-lo (e pensar a si mesma) como “societas aequalis”. Deus também fala na sociedade da igualdade: não na diferença de status ou na indiferença do relativismo, mas na “não indiferença” da misericórdia.
Eis o desafio profeticamente reformulado primeiro pelo Concílio Vaticano II e hoje pelo magistério de Francisco. Ele pede à teologia que elabore categorias eclesiais novas, também e talvez sobretudo no âmbito sacramental e ministerial, em que as lógicas feudais do ordo e do cerimonial ainda confundem de forma demasiado grosseira o ancien régime com a fé cristã, a diferença social com a transcendência de Deus, e a representação formal de um único “sacerdote” com a ação ritual de todo o povo de Deus, entendido como comunidade sacerdotal.
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O paradoxo do clericalismo: patologia eclesial e formas históricas da “saída”. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU