25 Março 2023
Em Roma, os representantes de três grandes religiões começaram a estabelecer princípios básicos para o desenvolvimento da inteligência artificial. Por enquanto, está tudo em nível genérico, mas em breve será preciso decidir o que é legítimo e o que não é.
A reportagem é de Jaime D’Alessandro, publicada por La Repubblica, 22-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um supercomputador, como o definiríamos hoje, levado peça por peça para um mosteiro budista. No meio das montanhas do Himalaia, ele foi depois remontado por dois técnicos que vieram dos Estados Unidos para calcular todos os possíveis nove bilhões de nomes de Deus, conforme solicitado pelos monges.
Os engenheiros estadunidenses ignoravam a verdadeira finalidade do “Projeto Shangri-La”, não imaginavam as consequências de unir profecia e poder das máquinas. Quando Arthur C. Clark publicou “Os nove trilhões de nomes de Deus” em 1953, um breve conto que foi publicado na Itália naquela memorável coleção intitulada “Le meraviglie del possibile”, ele encenou aquilo que poderia acontecer ao unir duas coisas aparentemente opostas: informática e religião.
Setenta anos depois, essa distância se reduziu quase de repente. Isso ocorreu em Roma, no Vaticano, no início de janeiro. O Papa Francisco, na Sala Clementina do Palácio Apostólico, ao lado da Basílica de São Pedro, começou a falar sobre redes neurais:
“Todos estamos cientes de como a inteligência artificial está cada vez mais presente em todos os aspectos da vida cotidiana”, explicou. “Ela incide no nosso modo de compreender o mundo e a nós mesmos (...). Fico feliz em saber que vocês também querem envolver as outras grandes religiões mundiais e os homens e as mulheres de boa vontade para que a algorética, ou seja, a reflexão ética sobre o uso dos algoritmos, esteja cada vez mais presente.”
Algorética, portanto, e não os nove trilhões de nomes de Deus, ou pelo menos ainda não. O Vaticano, e com ele também o Grão-Rabinato de Israel e os representantes religiosos dos Emirados Árabes Unidos, não têm a intenção de usar o ChatGPT e seus semelhantes para alcançar um certo objetivo; pelo contrário, pretendem fazer a sua contribuição para condicionar seu desenvolvimento.
“Essa história nasceu por volta de 2017, do encontro entre nós, a Microsoft e a IBM”, lembra Paolo Benanti, franciscano que cresceu entre controles de videogame e PCs, hoje professor de Ética da Tecnologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. “Entendemos que tínhamos uma visão comum e que, portanto, podíamos unir forças. Uma coisa levou à outra, e assim chegamos ao Rome Call for AI Ethics.”
A primeira declaração de intenções remonta a fevereiro de 2020. Seis princípios para quem desenvolve inteligência artificial, sensatos, mas genéricos, a ponto de ser difícil crer que alguém não os queira ou possa subscrever: transparência, inclusão, responsabilidade, imparcialidade, confiabilidade, segurança e privacidade.
Na época, ele foi assinado pelo próprio Vaticano, pelo governo italiano, pela FAO e por algumas grandes multinacionais de tecnologia, como a Microsoft e a IBM, justamente.
Mas a Fundação Vaticana RenAIssance, que assumiu a operação com o arcebispo Vincenzo Paglia à frente, visa a outra coisa: criar uma grande aliança entre religiões em torno do tema da inteligência artificial. E é esse terreno, tanto diplomático quanto ético, que talvez seja o mais significativo.
Diante do Papa Francisco, em janeiro de 2023, foi realizado um evento inusitado, com a adesão do Fórum pela Paz de Abu Dhabi e da Comissão para o Diálogo Inter-Religioso do Grão-Rabinato de Israel.
Abu Dhabi, embora influente graças a seu poder econômico, representa apenas uma pequena parte do mundo muçulmano sunita. No entanto, sua presença é bastante significativa. Um começo, que também poderia ser seguido pela assinatura da carta por outras almas do sunismo e talvez do xiismo.
“Todo instrumento criado pelo ser humano sempre foi controlado pelo ser humano”, sublinhou o rabino Eliezer Simcha Weisz, expressando assim a preocupação comum de que as inteligências artificiais possam se desviar dessa lei. Um temor sublinhado poucos minutos antes, embora com outras palavras, pelo xeique Abdallah bin Bayyah, presidente do Fórum pela Paz de Abu Dhabi e do Conselho dos Emirados Árabes Unidos para a Shariah Fatwa. As nuances obviamente são diferentes, mas todos convergem no fato de que é preciso começar a estabelecer limites e que as empresas do setor não podem fazer isso sozinhas.
O caminho é longo e cheio de incógnitas. Por exemplo, será necessário chegar a um acordo sobre qual critério adotar para julgar as inteligências artificiais. Segundo alguns, começando pelo presidente da Microsoft, Brad Smith, o único critério é julgá-las a partir daquilo que elas realizam. Segundo outros, porém, é preciso torná-las acessíveis, abertas, para que se possa controlar como chegaram a construir certos conteúdos.
Mas isso vai de encontro à vontade das empresas de hi-tech de defender aquilo que consideram como sua propriedade intelectual. Em suma, toda possível regulamentação terá repercussões importantes em um mundo que floresce com uma série de aplicações que têm seguido em frente, alcançando um público cada vez mais amplo.
“Precisamos de regras para esse setor e também precisamos de uma ética de fundo”, conclui Benanti. “Sabemos muito bem que a ética por si só não basta, ela deve vir acompanhada de leis, da autorregulação de quem cria inteligência artificial e da proteção da privacidade. Mas é um elemento-chave para se começar.”
É o único elemento possível para a Igreja Católica, no fim das contas. Porque em breve serão criadas mesas para regulamentar o desenvolvimento e o emprego da inteligência artificial. E, no Vaticano, para que tenham maior peso, abriram-se primeiro às outras religiões monoteístas e, em julho, pretendem envolver expoentes do xintoísmo e do budismo no Japão, em uma etapa na Ásia que pode não ser a única.
Só é preciso entender até onde é possível ir com a ética e com as alianças. Enquanto se atêm às declarações de intenção, é mais fácil pôr de acordo tantas almas diferentes que têm visões distintas do que é melhor para a humanidade. Outra coisa bem diferente é decidir concretamente o que é lícito e o que não é. E, mais cedo ou mais tarde, será preciso chegar a essa fase, indo além dos vários “white papers” vistos até hoje.
No Centro Judaico de Hamptons, no norte de Nova York, o rabino Joshua Franklin, por exemplo, pediu ao ChatGPT que escrevesse um sermão. Embora não seja como pedir a uma calculadora para listar os possíveis nove trilhões de nomes de Deus, como imaginou Arthur C. Clark, estamos grosso modo nesse caminho: usar inteligência artificial para fins religiosos. Isso apenas para dizer que, muito provavelmente, não serão apenas a Microsoft ou o Google que terão de se autorregulamentar em termos de inteligência artificial.
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Religião e inteligência artificial: quando Francisco fala sobre redes neurais com judeus e muçulmanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU