09 Fevereiro 2023
“Quando a mudança está fora de controle, resta apenas sonhar com a grandeza do passado”, diz François Dubet, sociólogo francês de 76 anos e ex-diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, sobre a forma de pensar que levou um grupo de eleitores a optar por Trump, Le Pen e Bolsonaro.
Para o autor de O tempo das paixões tristes e La Préférence pour l'inégalité, o populismo de extrema-direita responde ao sucesso do imaginário de uma sociedade que desapareceu e que muitos olham com saudade. O sucesso de uma sociedade industrial que é percebida por esses setores como “ordeira e protetora”.
A entrevista é de Ayelén Oliva, publicada por El Diario, 09-02-2023. A tradução é do Cepat.
A identidade de classe, surgida no auge da sociedade industrial, deixou de ser a forma como se organiza a representação política?
O paradoxo atual é que, ao mesmo tempo que crescem as desigualdades, apagam-se as classes sociais. Este mecanismo se deve à transformação no trabalho, ao retrocesso dos “redutos operários” e à expansão do consumo de massas. O capitalismo fragiliza as classes e multiplica as desigualdades.
Se antes todas as desigualdades convergiam no seio das classes sociais, hoje, as desigualdades se multiplicam e os indivíduos se sentem desiguais em função de uma multiplicidade de fatores e dimensões. Enquanto antes a vida política nas sociedades industriais era dominada pelo voto de classe e a oposição à esquerda ou direita, agora, é claro que o eleitorado popular oscila entre o populismo de direita e a abstenção.
Por outro lado, os partidos de centro, social-democratas e ambientalistas contam com o apoio dos eleitores com maior formação, dos centros urbanos. É como se a divisão de classes tivesse sido substituída pela oposição entre ganhadores e perdedores da globalização.
Argumenta que a desigualdade baseada na classe social era injusta, mas também estável e previsível. Agora, como a desigualdade é percebida?
Essencialmente, na sociedade de classes, as desigualdades são reproduzidas na forma de destino: os filhos de operários e burgueses se tornam operários e burgueses porque é um destino injusto, mas pelo qual os indivíduos não são responsáveis.
Hoje, a produção das desigualdades foi transferida aos indivíduos em nome da igualdade de oportunidades. Na escola, em particular, todos têm o direito e o dever de ascender na sociedade, há mais mulheres empregadas e a igualdade meritocrática de oportunidades se tornou nosso princípio dominante de justiça.
Na sociedade de classes, a justiça social consistia em reduzir as desigualdades nas condições de vida em favor dos explorados. Hoje em dia, a justiça social consiste, sobretudo, em lutar contra a discriminação, porque em uma sociedade justa todos deveriam ocupar uma posição social em função unicamente de seus méritos. Nesse sentido, o ideal de justiça é o de uma competição esportiva perfeitamente justa.
Por que o ‘outro pobre’ e o ‘outro trabalhador’ se tornam inimigos?
Quando as desigualdades são múltiplas e singulares, quando todos participam de uma competição meritocrática, os vencedores dessa competição pensam que nada devem aos vencidos. Acusam aqueles que têm ainda menos méritos do que eles para salvaguardar a sua dignidade e sua “honra”.
Neste caso, o inimigo é quem que está acima deles, mas também quem está abaixo deles: os pobres, os desempregados, os estrangeiros. Isto explica, em grande medida, a guinada do voto popular para o populismo e o nacionalismo de direita. Para os “branquinhos”, os inimigos não são tanto os capitalistas, mas os discriminados que obtêm direitos: imigrantes, mulheres, minorias sexuais.
Como as emoções negativas – ou as tristes paixões – se traduzem em programas políticos?
Penso que as paixões tristes criam um estilo, mas não um programa político. O estilo é bem conhecido: o ódio do “povo” contra tudo o que “não é o povo”, ou seja, os estrangeiros, as elites, os ricos, os meios de comunicação “oficiais”. Esses “inimigos do povo” fazem parte de um complô, em vez de se situarem como verdadeiros adversários sociais, pois estão sempre ocultos.
As paixões tristes também são encarnadas por um líder, de direita ou de esquerda, que encarna a “ira do povo”. Contudo, o estilo populista das paixões tristes não conduz necessariamente a um programa político, porque o próprio povo está dividido e nenhuma política pode satisfazer tantas exigências, muitas vezes contraditórias.
Por outro lado, o mundo não desaparece e, uma vez no poder, há populismos de esquerda e de direita, socialistas e pró-capitalistas, mais ou menos racistas. Polônia, Itália, Hungria, os Estados Unidos de Trump, a Inglaterra pós-Brexit, o Brasil de Bolsonaro, a Venezuela de Maduro, todos têm estilos comuns, mas não políticas comuns.
A indignação é um traço desta época?
Parece-me que a indignação provém de que se sentir desprezado é a emoção política elementar desta época. Quanto mais singulares somos, mais invisíveis nos sentimos, quanto mais discriminados e estigmatizados, mais nos sentimos desprezados.
De certa forma, todos somos desprezados e podemos desprezar todo mundo. Essa emoção é compreendida na medida em que os indivíduos não se sentem representados pelas igrejas, partidos e sindicatos.
Contudo, a indignação também procede de uma revolução nos repertórios da ação coletiva. Na sociedade de classes, a passagem à palavra pública era mediada por partidos, associações, jornais, sindicatos, ativistas. Essas mediações “esfriavam” a ira. Hoje, as tecnologias da informação e comunicação e a internet permitem o acesso ao discurso público sem mediação e sem filtros.
A combinação de um progresso democrático com uma explosão de indignação pode criar mobilizações como vimos com o Tea Party, nos Estados Unidos, os pentecostais, no Brasil, e os Coletes Amarelos, na França.
Como analisa o crescimento da extrema direita na França?
O populismo de extrema direita está aumentando em todos os lugares, mesmo em países que parecem mais imunes a ele, como os escandinavos. Esses partidos, como o Reagrupamento Nacional, na França, não têm um programa real, mas provocam a ira do povo, dando nome aos inimigos, sem se preocupar com a coerência.
Em grande medida, esse sucesso se baseia no imaginário de uma sociedade que desapareceu e da qual muitos sentem saudades. Uma sociedade industrial soberana, uma sociedade nacional homogênea, uma sociedade em que a família e a escola tradicional reinam, uma sociedade percebida como ordeira e protetora.
Obviamente, esse apelo ao passado é uma nostalgia poderosa, uma sociedade idealizada que nunca mais voltará. Quando a mudança está fora de controle, só resta sonhar com a grandeza do passado.
Considera que os partidos trabalhistas se veem obrigados a redefinir seu sujeito político?
É claro que todos os partidos de esquerda estão em profunda crise e lutam para representar desigualdades múltiplas e contraditórias. Veem-se forçados a combinar seus ideais de justiça com as limitações econômicas e, em muitos casos, defendem, sobretudo, os valores democráticos contra as tendências autoritárias.
Embora celebre as vitórias eleitorais contra Trump e Bolsonaro, não estou seguro de que os partidos trabalhistas recuperem rapidamente uma base popular e classista. Se a isto acrescentamos que as questões ecológicas exigirão sacrifícios, penso que a recomposição dos partidos de esquerda e dos sindicatos levará muito tempo: mudamos de época histórica.
O trabalhador está mais precarizado, mais, menos organizado do que há algumas décadas. Como as mudanças no mundo do trabalho impactam na representação política?
Na França, o trabalho é o grande esquecido das lutas sociais, só nos preocupamos com o emprego e o desemprego. O conflito francês pela reforma da previdência mostra que não debatemos as condições em que trabalhamos, o cansaço, a administração e a precariedade.
Além disso, os trabalhadores se veem abandonados porque sentem que as condições de trabalho se deterioraram, que a autonomia no trabalho é uma artimanha de dominação, enquanto os indivíduos continuam querendo um trabalho que os satisfaça.
Então, penso que temos que voltar ao trabalho no sentido de que uma vida bem-sucedida também é uma vida de trabalho feliz. Deste ponto de vista, não devemos abandonar os ideais da antiga sociedade de classes em que os trabalhadores opunham a dignidade do trabalho à exploração capitalista.
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“O capitalismo fragiliza as classes e multiplica as desigualdades”. Entrevista com François Dubet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU