18 Setembro 2020
François Dubet, um dos intelectuais social-democratas mais importantes do mundo, considera que os economistas venceram os sociólogos e que essa derrota foi determinante para a hegemonia da meritocracia, a fragmentação sem representações políticas, as sociedades desiguais e uma crise da educação que ainda não encontra direção.
A entrevista é de Jorge Fontevecchia, publicada por Perfil, 11-09-2020. A tradução é do Cepat.
Quais serão as consequências educacionais do longo período de quarentena para os estudantes?
O confinamento aumentou as desigualdades. Inclusive, pode ser causa da evasão escolar. Mas somente agora podemos compreender realmente o que acontece. Se novamente for necessário fechar escolas, teremos grandes dificuldades. É o primeiro tipo de dificuldades. Quando a escola fecha, as famílias precisam cuidar das crianças, muda a dinâmica familiar. Mas o maior desafio será as consequências econômicas da crise para os jovens. Gerações inteiras de estudantes enfrentarão um mercado de trabalho que não será capaz de acomodá-los. Haverá um forte aumento da desigualdade escolar. O número de jovens pobres e vulneráveis aumentará. As consequências econômicas da crise podem ser maiores que os efeitos escolares.
Em seus textos, você adverte que o modelo de igualdade de oportunidades pode se tornar um discurso hegemônico.
Quando se toma a história das sociedades industriais europeias, a ideia de justiça social consistia em reduzir as desigualdades entre as classes sociais. A tendência era para que os pobres fossem menos pobres e os ricos menos ricos. Era a “economia socialista”, a social-democracia, o socialismo. Contudo, nos últimos trinta anos, vemos outra concepção da justiça social, a da igualdade de oportunidades. Em essência, a sociedade justa seria a sociedade na qual todos os indivíduos tenham as mesmas chances. E de acordo com o seu mérito, possam ascender socialmente.
É um modelo que não é questionável, mas resulta muito mais liberal. O objetivo é produzir desigualdades justas baseadas apenas no mérito. De alguma maneira, é um modelo esportivo, no qual vence o melhor. Assim, ao menos nos Estados Unidos, América do Norte e Europa, tornou-se um esquema de injustiças. Esse modelo da igualdade de oportunidades tem certa crueldade. A igualdade de oportunidades em si é algo bom, mas pode justificar a posição daqueles que fracassaram. É mais cruel e competitivo que o antigo modelo de igualdade social, que não deve ser abandonado, ainda que já não concebamos uma sociedade completamente igualitária.
Por que defende o “modelo das posições”, compreendendo que atenua as distâncias entre os diferentes estratos sociais?
Uma sociedade em que as desigualdades sejam reduzidas é mais habitável, mais pacífica, com melhor coesão social e com menos criminalidade. É uma sociedade mais pacífica do que uma muito desigual. As desigualdades fazem com que as sociedades sejam difíceis, tensas, agressivas. É preciso certo grau de igualdade social. Este objetivo hoje em dia tende a ser abandonado em razão do modelo de igualdade de oportunidades e da concorrência contínua.
Quando se tem uma sociedade relativamente igualitária em termos de posição social, quando a distância entre os mais ricos e os mais pobres não é muito grande, também surge a igualdade de oportunidades, mais ainda do que nessas sociedades desiguais que a pregam. Nos países escandinavos ou na França, há muita mobilidade social e mais igualdade de oportunidades que nos Estados Unidos. Os Estados Unidos acreditam que as desigualdades são justas, porque são o resultado da competência dos indivíduos.
Como a justiça social deve ser repensada no século XXI, tema de um de seus livros?
Presenciamos o fim das sociedades industriais nacionais. Especialmente do ponto de vista da velha Europa. As sociedades tinham empresas com chefes, trabalhadores, sindicatos. Eram, ao mesmo tempo, sociedades muito homogêneas, cultural e nacionalmente. Esse modelo está desaparecendo. A desigualdade se transformou. As antigas desigualdades de classe tendem a desaparecer. O que não significa que a desigualdade seja mais frágil, mas, sim, que agora é de natureza diferente. Estamos em sociedades cada vez mais multiculturais. O grande conflito dos Estados Unidos é entre os brancos e as minorias, entre os homens e as mulheres, não mais entre os trabalhadores e os empregadores.
Continuo convencido de que o mérito e a competência devem ser desenvolvidos, porque é bom para as pessoas e para as economias. Mas acredito que precisamos tornar as sociedades menos desiguais. Acrescentaria que as sociedades menos desiguais são mais ecológicas, são mais feministas, são basicamente mais habitáveis. Devemos nos opor ao modelo hegemônico que diz que a justiça é a concorrência leal, a que permite que vença o melhor. É uma concepção darwiniana da justiça social. Continuo apegado ao que uma vez se chamou de social-democracia: a maneira de combinar a igualdade social e a eficiência econômica.
A escola reproduz a injustiça social?
A escola busca coesão social. Foi concebida como um instrumento de justiça social. E hoje descobrimos que se transformou em uma máquina de classificação de jovens e alunos. Em geral, faz isso de acordo com a sua origem social. É muito decepcionante, porque nela haviam sido colocados sonhos de igualdade, justiça e emancipação. Em sua maior parte, a escola não cumpriu com a promessa de igualar.
Antecipa as injustiças que acontecerão depois, no âmbito trabalhista?
É claro. As desigualdades sociais determinam as desigualdades educacionais e as desigualdades escolares determinarão as desigualdades sociais. Diplomar-se, formar-se, é crucial para ter acesso a empregos qualificados. O título de algumas universidades tem influência. Existe um círculo vicioso que faz com que as desigualdades escolares sejam produto de desigualdades sociais e, por sua vez, justifiquem novas desigualdades sociais. Em muitos países europeus, mas também na Argentina, Chile, as famílias lutam pelo acesso às melhores escolas.
Por que para as classes mais baixas, de fato, a escola não alimenta mais a esperança de progresso social?
As classes populares compreenderam que não poderiam vencer na competição que certa escolaridade implica. Há uma decepção com isto, ainda que existam indivíduos exitosos. Contudo, na média, as pessoas perceberam que não havia uma solução para isso. Em países como a França, também há desencanto porque a escola humilha os estudantes. Se falham, é porque não são inteligentes. É culpa deles. Não têm valores. Na França e em outros países, há ressentimento contra a escola porque a escola não apenas reproduz desigualdades, como também as justifica, explicando que os derrotados merecem o seu fracasso.
Em seu livro “El declive de la institución” (2006), argumenta que a crise que as instituições atravessam é intrínseca às contradições da modernidade. A pós-modernidade permitiria institucionalidades mais democráticas?
Aqui, cabe uma reflexão diferente da que se refere à desigualdade. Seria necessário recorrer a Max Weber e sua ideia de desencantamento do mundo e o sagrado. As escolas públicas, mesmo as escolas progressistas, democráticas, foram pensadas como igrejas, como algo sagrado. Encarnaram valores universais que transmitiram aos professores. Os professores eram como sacerdotes da nação, da razão, da modernidade. Com a modernidade, as escolas estão abertas às sociedades. A autoridade da cultura escolar se fragilizou.
Um jovem de hoje passa muito mais tempo diante de seu computador, de seu tablet, de seu telefone, que na escola, independentemente de sua condição social. A influência cultural da escola caiu muito. É possível perceber que os professores perderam grande parte de sua autoridade. A velha escola entrou em uma crise simbólica. Temos que reconstruir uma instituição escolar. É necessário reconstruí-la, provavelmente a partir de uma perspectiva democrática em nível institucional. A escola deve ser capaz de capacitar as pessoas e os cidadãos em um espaço escolar democrático, no qual as crianças aprendam a viver juntos, em uma escola que as permita crescer.
Dirigiu a preparação do relatório “Colégio do Ano 2000” para o ministro da Educação Escolar, em 1999.
Não teve muita influência. A única coisa que conseguiu foi manter, na França, o princípio da escolarização comum até os 16 anos. A direita e a esquerda se opunham. O relatório ajudou a manter a ideia de uma só universidade. É bem sabido que os países com escolarização comum até os 16 anos são mais eficazes.
Qual é o valor dos títulos?
Vive-se uma época de grandes mudanças. O acesso aos postos de trabalho mais influentes e altamente qualificados aumenta o valor de certos diplomas. Um diploma é cada vez mais essencial para ter uma profissão qualificada e de prestígio. A ausência de uma titulação se tornou uma espécie de tragédia para as pessoas. Ao mesmo tempo, cada vez são mais os jovens que se formam. E isto também é uma fonte de desigualdades. Ao mesmo tempo, ocorre certa desvalorização dos títulos, especialmente os intermediários. E, em paralelo, há uma inflação de títulos. Cada vez são necessários mais para se obter o mesmo que antes com um só título era suficiente.
Para os estudantes das universidades de massas, os diplomas perdem valor. Isto é uma fonte de decepções. Investe-se muito em estudar e nem sempre faz sentido. Claro que sempre é melhor ter um diploma do que não ter. Com a crise do coronavírus, a da Covid-19, as coisas serão muito mais difíceis, porque muitos jovens ficarão na universidade e no ensino médio para obter diplomas sem ter a oportunidade de trabalho que esperam. Pode-se intuir que virá uma época de convulsão.
Na França, é possível um socialismo liberal ou um liberalismo de esquerda. Por que em países subdesenvolvidos, como a Argentina, o liberalismo é cooptado pela direita e o socialismo pelo nacionalismo?
Não é fácil responder essa pergunta. As sociedades francesas, inglesas, alemães e italianas experimentaram um processo de integração em torno da lógica industrial. Em 1960, na França, 40% dos cidadãos eram trabalhadores, 20%, camponeses, 20%, empregados. A economia absorveu a todos, de maneira desigual, mas a todos. As forças políticas resultantes foram uma direita liberal social, e uma esquerda social-democrata.
Se pensamos em sociedades que se industrializaram muito mais tarde e que são muito mais dependentes das forças econômicas centrais, o que quando eu era jovem denominávamos imperialismo, vemos que 40% de sua população trabalha no setor informal. Não são assalariados ao modo clássico. E também há uma burguesia com reflexos aristocráticos.
Sendo assim, a direita se encarna com muita facilidade em uma burguesia muito liberal e exportadora. E a esquerda dependia menos dos trabalhadores do que da capacidade de reunir as pessoas ao redor da ideia de nação. É o que faz com que tenha existido grandes movimentos populistas na América Latina, mas não no sentido pejorativo da Argentina. As classes médias empobrecidas das cidades se uniam como povo.
Nas sociedades dominantes e sociedades imperiais, sociedades como os impérios coloniais, foi possível esta organização. Mas vemos que essas sociedades estão se fragmentando. Perdem sua organização original. Há 40 anos, pensava que a Europa seria o futuro de países como Argentina ou Chile. Hoje, pergunto-me se o Chile e a Argentina são o futuro da Europa, que está se dissolvendo.
Por que preferimos a desigualdade? (ainda que digamos o contrário), que é o título de seu livro de 2015?
Houve uma transformação na desigualdade. Não acredito que a desigualdade tenha explodido. A sociedade francesa não parece muito mais desigual que ontem. O que mudou é que há uma individualização das desigualdades. As desigualdades foram uma experiência coletiva, de classe social. Hoje, é uma experiência individual. Sou desigual como mulher, como graduado, como morador em uma cidade ou província, como jovem ou como velho.
Na prática, os indivíduos defendem essa desigualdade. Por exemplo, na escolha da escola, as famílias de classe média optam por alternativas desiguais para seus filhos. Escolhemos a desigualdade no consumo, somos desiguais também na intimidade. Com a individualização das desigualdades, todos estão em guerra com todos e todos preferem a desigualdade para si. Preserva-se o desejo de igualdade, mas há uma ambivalência diante da desigualdade.
Qual é a sua opinião a respeito “do véu da ignorância”, proposto por John Rawls, em sua Teoria da Justiça?
John Rawls não descreve a vida social, que é o que faz uma filosofia da justiça. Basicamente, analisa a ficção de justiça: a de uma sociedade em que as decisões serão tomadas com base no indivíduo menos favorecido. Todas as teorias da justiça se baseiam em ficções. Quando digo que todos os homens nascem livres e iguais, também é uma ficção. A particularidade de Rawls é um paradoxo: foi um pensador da social-democracia que teve êxito quando a social-democracia desmoronou. A política é justa enquanto beneficie os menos favorecidos. É claro, não é um pensador comunista. Também não é um liberal puro. A escola mais justa seria aquela na qual os estudantes mais frágeis tivessem a melhor situação possível.
O véu da ignorância é optar pela posição do mais desfavorecido como critério de justiça básica. No fundo é uma ideia muito simples de justiça: diz que a política econômica é boa caso desenvolva a riqueza primeiro e, em segundo lugar, melhore a situação dos menos privilegiados. Obviamente, é o contrário de uma teoria revolucionária, por um lado, e também o oposto ao liberalismo mais louco que conhecemos.
O paradoxo de Rawls é que foi o teórico dos grandes partidos de esquerda escandinavos e europeus, e que teve êxito quando esses partidos perderam um pouco o seu poder. É o que filósofos como Georg Hegel definiam como a Coruja de Minerva, “uma ave que inicia o voo ao cair do crepúsculo”.
Em alguma conferência você disse: “As únicas desigualdades justas são as que têm a ver com o nosso mérito, com o nosso desempenho pessoal”. Como definiria o mérito de maneira geral?
Não existe um conceito geral para mérito. Não é uma ideia universal. Devem ter mérito aqueles que tiveram êxito econômico, aqueles que ganharam uma competição esportiva, os que fazem um trabalho científico, os médicos que curaram seus pacientes. Mas deveríamos refletir em relação ao que damos crédito, de fato. Poderíamos nos fazer a pergunta filosófica: Mozart tem mérito por ser Mozart? Talvez, não. Aí está o Mozart, talvez não tenha mérito. O que torna o mérito perigoso é quando se transforma em uma visão hegemônica, quando o mérito econômico esmaga todas as outras formas de mérito. É chocante quando dizemos que o mérito acadêmico se converte em todo o mérito e que aqueles que têm o diploma devem ter poder e dinheiro.
Uma sociedade justa é uma sociedade que aceita que há várias formas de mérito. E que o mérito é essencialmente instável e plural. Foi o que vimos muito bem na França, durante a pandemia. Percebemos que as pessoas mais indispensáveis para a vida social eram aquelas que até então pensávamos que não tinham muito mérito: as enfermeiras, os caixas de supermercado, as pessoas que recolhem o lixo. Foram os que mantiveram a sociedade. O mérito é um princípio extremamente perigoso, pois não sabemos se merecemos o seu crédito. Maradona tem mérito ou sorte? Não sei. Parece-me que tem muita sorte.
A desigualdade se justifica socialmente em função do mérito. Mas existe porque cumpre outros objetivos sociais relacionados com a divisão do trabalho, a organização da produção e a ordem social. É o que aconteceu com as castas em sociedades arcaicas.
Pode-se temer que isso se repita, porque se enxerga castas em formação. Mas ainda estamos em sociedades onde há muita mobilidade social. Ao longo de sua vida, uma pessoa pode se mover muito na escala social. Não significa que os pobres serão necessariamente muito ricos, mas a mobilidade persiste. Hoje, existe muita incerteza e angústia, porque vivemos mudanças extremas e brutais. Bastar ver como mudou a ideia de família em um país como a França. Em 1960, quase não havia filhos nascidos fora do casamento. Hoje, 60 anos depois, a maioria das crianças nascem fora dessa instituição. Os pais se casam depois de ter filhos. Acontece o mesmo nas classes médias na Argentina. Se você toma a prática religiosa, percebe um colapso. Mudam os padrões de consumo. É preciso prestar uma atenção especial à reprodução das desigualdades, mas isso não significa que as sociedades não mudem. Existe angústia frente à violência das transformações sociais.
Alain Touraine foi o seu orientador no doutorado. Em 1965, escreveu “América del Sur: un proletariado nuevo” junto com Gino Germani, o precursor da sociologia argentina. Que ideias de Touraine permanecem vigentes em pleno século XXI?
Gosto muito de Alain Touraine. Mas falar de um novo proletariado descreve um pouco o clima da época, quando a intelectualidade latino-americana aderiu às teses de André Gunder Franck sobre o desenvolvimento do imperialismo, que as sociedades latino-americanas são completamente dependentes dos Estados Unidos. Resta algo disso, mas são sociedades que se modernizaram muito. São sociedades com fases de desenvolvimento muito fortes e também quedas muito fortes. E com regimes políticos extremamente variáveis. Algumas ditaduras foram comandadas pelos Estados Unidos, outras se explicam por outros motivos.
As sociedades latino-americanas não podem ser descritas simplesmente como sociedades proletárias. Penso em uma sociedade que conheço um pouco melhor que a argentina: o Chile. Suas taxas de educação e matrículas são consideráveis. A hegemonia ianque parece se fragilizar.
Existe uma nova sociologia, após maio de 1968, e a partir dos movimentos sociais?
É bastante fácil se confundir, ao menos do ponto de vista da Europa. Antes, movimento social era o movimento operário. Havia partidos burgueses de um lado e de esquerda do outro. Era um mundo claro. Contudo, há alguns anos, a classe operária diminuiu, em um processo muito diferente ao dos movimentos sociais. Podemos fazer uma longa lista deles. O crescimento do feminismo é fenomenal. A isso se somam os movimentos ambientalistas, os de defesa das minorias.
Na sociedade industrial havia dois lados: a burguesia e o proletariado. Hoje, ninguém pode descrever a sociedade dessa maneira. Há movimentos de direitos sobre a sexualidade, sobre as mulheres, sobre o meio ambiente. O problema hoje é a expressão política destes movimentos. Parece haver dois lados. Um dos diversos movimentos sociais, e outro de uma política que não os representa mais. As sociedades viáveis são aquelas em que os movimentos sociais encontram expressão política ou tradução política. Caso não possuam tradução política, existe risco de violência, de crise permanente. É um problema quando a política não representa genuinamente os movimentos.
Desse modo, o proletariado estadunidense apoia Donald Trump. Os proletários ingleses votaram no Brexit. O proletariado francês e italiano que votava na esquerda se volta para a direita ou extrema direita. Os movimentos são grandes, mas não têm expressão política. Uma separação excessiva da vida política e social é um perigo para as sociedades democráticas.
A pandemia e o teletrabalho deram um golpe de misericórdia nos sindicatos?
A grande aposta de hoje é encontrar formas de expressão sindical para formas de trabalho que não são as que conhecíamos em Buenos Aires ou Paris, tempos atrás. Não se trata mais de operários que vão à mesma fábrica ou de milhões de empregados dentro das mesmas oficinas. Mudou a forma de trabalho e o grande risco é a solidão dos trabalhadores. É que o trabalhador já não é membro de um coletivo e se encontra em uma situação de fragilidade considerável. Aqui, o argumento da igualdade de oportunidades acentua ainda mais esta lógica de deixar os trabalhadores sozinhos.
A crise de representação dos partidos se deve ao fato de a sociedade não ser mais de classes?
É a mesma questão. Abandona-se a sociedade de classe tradicional, representada política e socialmente. Temos uma divisão considerável de interesses sociais. E aparecem realidades surpreendentes sobre as eleições que são colocadas em temas como a insegurança ou o racismo contra os negros. Coisas que necessitam de seu próprio processo, da mesma maneira que os sindicatos e os partidos tiveram que se construir ao longo da sociedade industrial. Acredito que hoje o papel dos ativistas políticos, jornalistas e intelectuais é o de reconstruir uma visão racional e organizada da vida social para que encontre expressão política. Parece-me uma questão vital.
O feminismo é a última revolução?
Está claro que o feminismo provavelmente seja a mais significativa força transformadora que enxergamos na ação política. Não podemos mais pensar na ação política, sem pensar em categorias feministas. Não são simplesmente as categorias de igualdade entre homens e mulheres. Pensar a questão de gênero é distinguir como são estabelecidas as atividades, as ideias e os intercâmbios culturais. É uma verdadeira revolução. É desagradável para os homens, mas é uma evolução e nada a deterá.
Contudo, não estou seguro de que seja a última revolução. Há uma revolução que provavelmente seja mais pesada e com consequências ainda mais fortes. Hoje, sabemos que não podemos fazer nada com o planeta e que devemos mudar os registros históricos. Sempre vivemos, seja na Argentina ou na França, com a ideia de que a natureza era infinita, que podíamos fazer o que quiséssemos, que os recursos nunca acabariam, mas acabou. Essa visão mudará completamente nossa sociedade. Devemos recorrer às expressões políticas para resolver estes problemas. Caso contrário, podemos ter guerras e situações violentas.
Quando se fala da ciência do futuro, fala-se de que avançamos para uma só ciência exata, que é a física e uma só ciência humana, que é a sociologia. Você escreveu um belo livro que contém uma pergunta que formulo: de fato, para que serve um sociólogo?
Os sociólogos foram muito úteis quando estabeleciam a ideia de sociedade. Os cidadãos puderam ver que a vida social era uma espécie de sistema organizado. A sociedade mudou e aí surge um temor: seu lugar é ocupado pelos economistas. Se são os economistas que nos explicam, hoje, os sistemas em que vivemos, gostaria que os sociólogos critiquem as desigualdades. Os sociólogos devem se reencontrar com uma vocação que tinham para nos explicar como funciona a vida social em um sistema que não pode fazer nada e que tem responsabilidade. Preocupa-me que os economistas tenham triunfado intelectualmente, que tenham vencido a partida intelectual.
Você dedica o seu livro, “Lo que nos une”, a como viver juntos a partir de um reconhecimento positivo da diferença. Recentemente, na França, iniciou o julgamento dos atentados à revista “Charlie Hebdo”, de 2015. Persiste um clima de terror diante do islamismo?
Foi um momento de choque extraordinário. Hoje, em Paris, vemos as pessoas que realizaram os atentados. É extremamente doloroso. Não é uma questão de tolerância. Não se deve discutir de modo algum se devemos viver juntos ou não. A questão é o que temos em comum. O que tem em comum os pensadores livres, os comunistas, os muçulmanos, os judeus? A questão das diferenças está resolvida. Mas se não somos capazes de saber o que temos em comum, as diferenças se tornam perigosas e insuportáveis.
As coisas iam relativamente bem quando as sociedades tinham a capacidade de estabelecer padrões universais e dizer às pessoas que podiam manter sua cultura ou sua singularidade, tão logo aderissem a este modelo universal. Contudo, se esse modelo universal não consegue se impor, todas as diferenças se convertem em desigualdades insuportáveis.
A pergunta não é o que é tolerável do Islã ou outras religiões. Não se trata de insistir nas diferenças, que basicamente existem. Há muito em comum entre culturais e comunidades que podem perfeitamente conviver. O terrorismo surge do temor de integração às sociedades industriais. Quando tínhamos sociedades relativamente integradas, os imigrantes puderam se manter com sua própria identidade. O risco, mais uma vez, é o da fragmentação das sociedades.
Com o coronavírus, acelera-se aquilo que considerávamos da “sociedade”, que já não pode ser reduzida a um sistema, ou um modo de produção, e a um Estado-nação?
As nações persistem. Não acredito que a Argentina irá desaparecer, que o Brasil irá desaparecer, que a França irá desaparecer. O que está em jogo intelectualmente é que os países não são mais sociedades. Estamos em sistemas completamente globalizados. Diante desta situação, estamos diante do perigo de nos fechar cada vez mais, mas sabemos que saída da situação se dá por meio de uma resposta global. Somos tão interdependentes que só podemos superar esta e outras crises dentro de um sistema globalizado. A questão é se este sistema pode ser regulamentado. Hoje, com o crescente conflito entre a China e os Estados Unidos, com líderes políticos que não dão sinais de saúde mental, pode-se ficar muito preocupado. Vivemos em um mundo global interdependente. É o que demonstra esta conversa.
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“O divórcio entre movimentos sociais e partidos políticos é um grande risco para as democracias”. Entrevista com François Dubet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU