29 Janeiro 2023
“A atual onda reacionária é um projeto de setores das classes dominantes para restabelecer a corroída estabilidade do capitalismo. Pretendem conseguir essa recomposição generalizando as agressões contra os setores mais desprotegidos da sociedade”, escreve Claudio Katz, professor de economia na Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Rebelión, 27-01-2022. A tradução é do Cepat.
A nova direita é muito diferente do fascismo clássico, que irrompeu na primeira metade do século passado, diante da ameaça da revolução socialista, em um cenário de guerras interimperialistas. O perigo de uma insurreição operária contra a tirania do capitalismo uniu as classes dominantes, que defenderam brutalmente seus privilégios contra os trabalhadores.
O fascismo foi um instrumento inusual, no marco de grandes ações políticas de assalariados e conflagrações bélicas sem precedentes entre as principais potências (Riley, 2018). Por essa razão, incluiu modalidades ideológicas extremas de absolutização da nação e repúdio ao progresso, à modernidade e ao iluminismo.
Nenhum desses condicionamentos está presente hoje. Na segunda década do século XXI, não se vislumbram ameaças bolcheviques, nem exigências de imediata contrarrevolução. Reaparecem as tensões bélicas, mas sem guerras generalizadas entre blocos concorrentes. As motivações que originaram o fascismo clássico não são observadas na situação atual.
É um erro frequente comparar a ultradireita em voga com seus antecessores do século passado. Mais do que o fascismo daquela época, até o momento desponta um protofascismo potencial, que só poderia caber na modalidade anterior, caso os traços desse modelo fossem generalizados (Palheta, 2018).
Essa guinada implicaria a massificação da violência, por meio de milícias paramilitares análogas aos grupos marrons do passado. A hostilidade contra as minorias se transformaria em matanças, as advertências contra os opositores se transformariam em assassinatos e os discursos agressivos se transformariam em ações selvagens. Essa direção é uma possibilidade, o que significaria a conversão das atuais formações em forças fascistas.
Essa passagem também implicaria a abolição do status legal atual, por meio de um incisivo aumento do autoritarismo estatal. Enquanto as organizações de ultradireita atuarem no marco institucional, no máximo manterão um perfil neofascista, ainda longe da virulenta modalidade clássica. Uma reorganização totalitária exigiria, além disso, mudanças drásticas nas lideranças e nos movimentos que sustentam o atual curso reacionário.
Uma dinâmica de fascistização exigiria maior apoio popular, inimigos internos mais identificados e uma linguagem de forte violência contra os opositores (Louçã, 2018). Essa concretização implicaria a total amputação da democracia (Davidson, 2010). O fascismo não é uma mera ditadura, nem uma simples gestão autoritária. Introduz um modelo político marcado pelo uso metódico do porrete e a consequente formação de um regime totalitário.
Essa caracterização do fenômeno centrada no sistema político é mais precisa do que a apresentação genérica do fascismo como uma época ou uma ideologia do capitalismo. Também é mais acertada do que sua avaliação como uma configuração contraposta ao neoliberalismo. Essas dimensões constituem, na melhor das hipóteses, complementos do sistema político que singulariza o fascismo.
Os liberais tendem a fugir dessa caracterização específica, apresentando o fascismo como um discurso ou um programa de transgressão das normas republicanas. Com essa caracterização simplificada, desqualificam seus rivais, denunciando fascistas por todas as partes.
Essa ampliação tem sido muito comum nos Estados Unidos para justificar o alinhamento com o Partido Democrata contra os Republicanos. Com esse olhar, Trump foi rejeitado demandando a conveniência de apoiar Biden (Fraser, 2019). O mesmo multiuso do termo fascista serve em outros países para aprovar alianças com o establishment burguês. A verdadeira batalha contra o fascismo nunca passou por essas trilhas.
Contudo, também é verdade que a atual ultradireita incuba os germes do fascismo. Por essa razão, não é sensato evitar o adjetivo, argumentando a ausência dos elos que faltam para completar esse status. Nunca é demais a denúncia frontal das correntes reacionárias, que podem empurrar a sociedade para o cenário monstruoso do século XX. Os acréscimos “pós”, “neo” e “proto” ajudam a especificar o alcance ou a proximidade desse perigo.
Atualmente, a extrema direita já marca a agenda de muitos países e governos. Ao relativizar (ou naturalizar) esse avanço, dissolve-se seu perigo. A evolução destes processos segue aberta e tende a desembocar em dinâmicas conservadoras tradicionais, mas não está excluída uma atribulada renovação do velho fascismo.
Convém se distanciar das teses que restringem o fascismo a um drama exclusivo da metade do século passado. Também não é correto supor que só irromperia em resposta a um perigo revolucionário socialista. Este processo virulento é gerado periodicamente pelo capitalismo para resistir ao descontentamento provocado pela própria dinâmica desigual, empobrecedora e convulsiva desse sistema.
Os sujeitos sociais que protagonizam essa reação podem sofrer mutações com os mesmos parâmetros de suas vítimas. A pequena burguesia que enfrentou o proletariado fabril, durante a Alemanha nazista, não constitui um protótipo imutável para qualquer época ou país. O fascismo é um processo político que não segue parâmetros imutáveis. O registro dessa variabilidade é particularmente importante para avaliar sua dinâmica na América Latina.
A potencial confluência fascista da ultradireita não é um perigo restrito aos Estados Unidos ou à Europa. É também uma ameaça para a periferia. O que aconteceu no mundo árabe oferece um indício desse desenlace. A grande revolta democrática encarnada pela Primavera da década passada foi esmagada de forma sangrenta por ditaduras e monarquias, que contaram com o auxílio de formações fascistas.
Essas milícias empreenderam uma ação contrarrevolucionária atroz. Utilizaram a bandeira religiosa para realizar matanças que esmagaram todas as expressões de laicismo, tolerância e convivência democrática. Essa resposta feroz a um levante juvenil que se espalhou por todo o Oriente Médio, confirmou que o derramamento de sangue com conotações fascistas é factível em qualquer canto do planeta. Não requer a preexistência de um inimigo socialista ou de um proletariado industrial organizado.
O mesmo critério se aplica à América Latina. O fascismo também não está excluído desta região pelo caráter periférico. A velha negação dessa possibilidade, devido à distância econômico-social que a separa das regiões do centro, assenta-se em pressupostos errôneos. Considera que Hitler e Mussolini nunca tiveram seguidores no Terceiro Mundo devido ao caráter intrinsecamente imperialistas dessa modalidade.
No entanto, esquece-se que essa vertente reacionária adotou formas de fascismo dependente, quando as classes dominantes da periferia enfrentaram grandes ameaças à sua dominação. A diferença cronológica entre os dois cenários não modifica essas semelhanças. Os picos do fascismo na periferia foram registrados durante a Guerra Fria e não em 1930-45.
Esse deslocamento das respostas regressivas virulentas foi consistente com a mutação geográfica dos levantes populares e incluiu massacres da mesma dimensão que os registrados na Europa. Basta lembrar, por exemplo, que o esmagamento do comunismo na Indonésia custou um milhão de mortos.
A dimensão dessas matanças seguiu a pauta dos grandes genocídios dos últimos séculos. Essas aniquilações começaram com a conquista do Novo Mundo, consolidaram-se com a devastação da África e continuaram com os holocaustos vitorianos da Ásia, que acabaram repercutindo no próprio território europeu.
Esta sucessão de extermínios também não é suficiente para explicar o fenômeno contemporâneo do fascismo. Este processo traumático obedeceu a circunstâncias e confrontos políticos específicos que os pensadores liberais nunca conseguiram compreender (Traverso, 2019).
Essa tradição teórica interpretou mal principalmente o que aconteceu na América Latina. Apresentou os movimentos nacionalistas e as lideranças populares em conflito nas metrópoles, como Perón, por exemplo, na esteira do fascismo. Utilizou argumentos formais de semelhança discursiva e superdimensionou episódios diplomáticos menores para reproduzir denúncias enviesadas estadunidenses contra os governos que enfrentavam sua dominação. Essa resistência soberana nunca teve parentescos com o fascismo.
A proximidade do fascismo na periferia esteve presente em outro campo. Irrompeu na América Latina com os regimes contrarrevolucionários que tentaram destruir os projetos da esquerda. Vários teóricos da dependência investigaram as peculiaridades dessa reação brutal (Martins, 2022).
O pinochetismo avançou no Chile apoiado por uma base social antioperária ofuscada pelo fanatismo anticomunista. Mas, assim como Franco, na Espanha, e Salazar, em Portugal, a ditadura transandina não forjou um sistema político comparável ao esquema de Hitler ou Mussolini.
Na Colômbia, o uribismo também sustentou um regime oligárquico assentado, durante décadas, no assassinato metódico de militantes sociais. Contudo, nunca completou a reconversão totalitária do regime político que o fascismo pressupõe.
Na experiência mais recente de Bolsonaro, esse fracasso foi maior e não conseguiu traduzir a verborragia reacionária do militar maluco em um sistema fascista. O ex-capitão conseguiu certo seguimento de setores populares, mas não a liderança de todo o arco político burguês. Favoreceu o aumento da violência, sem conseguir sua generalização, e retrocedeu nas tentativas de substituir o sistema institucional por um poder totalitário. O exército o apoiou, mas nunca aceitou se envolver em aventuras de maior alcance. A gestão desastrosa da pandemia e a derrota que sofreu com a libertação de Lula acabaram com todos os resquícios para sua conversão em ditador.
O fascismo constitui também um perigo no atual cenário regional e é importante evitar subestimar essa possibilidade. A fragilidade da esquerda e um refluxo das lutas operárias não dissolvem essa eventualidade. Às vezes, o descaso com esse horizonte adota a sofisticada modalidade de substituir o termo fascista por vagas alusões ao bonapartismo.
Mais problemática ainda é a banalização do fenômeno, por meio de sua identificação com outros tipos de desventuras. O fascismo não é equivalente ao extrativismo e muito menos a formas duradouras da violência machista. Forma uma modalidade de gestão política do Estado para recompor a dominação da classe capitalista com métodos de extrema virulência.
É importante situar o problema neste plano, para encarar a luta contra o fascismo com táticas e estratégias adaptadas a cada país. No universo genérico de uma desventura gerada pelo declínio do capitalismo, a regressão civilizatória e o império da irracionalidade, não há como explicitar políticas antifascistas oportunas e bem-sucedidas.
A caracterização da atual ultradireita como fascista compete com sua identificação com o populismo, mas o uso deste termo é particularmente inconsistente na América Latina. Nesta região, as referências ao populismo foram identificadas, durante a segunda metade do século XX, com governos que conferiam avanços sociais (Löwy, 2019). O perfil que a social-democracia encarnou na Europa se relacionou, no Novo Mundo, com os regimes que favoreceram maior soberania e aumentos da renda popular. Assemelhar a atual ultradireita com qualquer um desses antecessores é uma grande contradição.
Contudo, a principal confusão que essa identificação introduz é a mistura de lideranças progressistas e reacionárias na indistinta marca do populismo. Na Europa, essa combinação coloca no mesmo balaio Mélenchon e Meloni, Corbyn e Len Pen e Pablo Iglesias e Orbán. Na América Latina, a mesma salada junta Maduro com Bolsonaro, Evo Morales com Kast e Díaz Canel com Milei. As deficiências dessa mistura ficam evidentes. A imprensa liberal tende a insistir em tais identificações absurdas e relações excêntricas.
Em vez de reiterar essa incondizente mistura, é mais correto retomar o barômetro político básico que contrapõe a direita à esquerda, para situar cada força. Os dois polos se distinguem claramente, sem nenhuma necessidade de incorporar o acréscimo de populista. Com essa orientação, fica bem visível que a esquerda radical é a principal antagonista da ultradireita. O conceito habitual de populismo anula essa distinção ao supor que os dois extremos foram dissolvidos em alguma forma de “ocaso das ideologias”.
As noções de esquerda e direita foram utilizadas acertadamente, durante séculos. Distinguem direções relacionadas à igualdade social de rumos favoráveis aos privilégios dos opressores. Com esse ordenamento, é possível apreender quais são os interesses sociais em jogo em cada conflito. É muito fácil notar que Fidel Castro atuou à esquerda de Menem, mas é impossível determinar o quão populista foi a administração de cada um.
A diferenciação política entre esquerda e direita surgiu com a revolução francesa e persiste até hoje, porque subsiste o regime social que consolida essa distinção. Enquanto o capitalismo persistir, haverá formações de esquerda e de direita se enfrentando pela primazia de avanços ou retrocessos sociais (Katz, 2008: 59-60).
A especificidade da nova direita pode ser percebida com acréscimos tradicionais (ultra, extrema) ou com complementos mais inovadores (2.0). Seja qual for o nome escolhido, o essencial é destacar seu posicionamento no campo da reação. O populismo é um termo que só traz confusões.
O conceito de populismo foi adotado com grande entusiasmo por muitos analistas que destacam o cunho “antissistêmico” dessa corrente, sua contraposição aos políticos convencionais e sua desconsideração à institucionalidade.
Contudo, nenhuma dessas características define as correntes que participam da atual onda reacionária. Seus conflitos com o sistema político são dados secundários, em comparação a seu propósito central de transformar o descontentamento atual em um assédio sistemático aos desamparados. Esse objetivo regressivo de confrontar a classe média (e parte dos assalariados) com os setores mais desprotegidos não tem o menor parentesco com o populismo.
Os liberais usam o termo para desqualificar qualquer posição crítica ao individualismo, ao mercado e à república. No entanto, a nova direita não é alheia e nem inimiga desses paradigmas. Simplesmente, ganhou terreno com um discurso que contesta a atribulada realidade contemporânea que o neoliberalismo patrocina. Também não está fora do regime institucional quando questiona com grande demagogia os partidos políticos dominantes.
Os liberais equiparam os direitistas às forças vindas do polo oposto da esquerda. Estimam que o populismo une as duas vertentes em uma posição semelhante. Dessa forma, apresentam dois conglomerados contrapostos como se fossem complementares. Anulam a avaliação dos conteúdos em disputa e enfatizam aspectos menores de estilo ou retórica. Seguindo esse caminho analítico, não há a menor possibilidade de esclarecer qualquer traço relevante da nova direita.
Os meios de comunicação hegemônicos generalizam essa visão, que superficialmente desqualifica o populismo para relegitimar o neoliberalismo. Desse ponto de vista, realçam a centralidade de um termo particularmente vago, que mistura diferentes significados históricos derivados de raízes diferentes.
Em sua velha definição estadunidense ou russa, o populismo se referia a projetos de protagonismo popular ou a exaltações do comportamento saudável e amistoso das populações rurais, que tinham sido maltratadas (e corrompidas) durante sua conversão em assalariados urbanos. O populismo reivindicava essa pureza inicial e propunha recriá-la como força transformadora da sociedade.
O discurso direitista atual reúne algumas facetas dessa nostalgia, mas modifica seu significado regenerativo, comunitário e amigável. Utiliza-o para desenvolver uma contraposição às minorias perseguidas. Costuma exaltar a classe trabalhadora castigada pela globalização e a desindustrialização, atribuindo essa degradação à presença dos imigrantes (Traverso, 2016). Nenhum eco significativo dos velhos propósitos de irmandade está presente na nova definição ultradireitista.
A difamação liberal do populismo também motivou uma simétrica visão elogiosa. Essa visão defende a validade desse conceito para representar os setores oprimidos da sociedade. Ressalta particularmente a consistência dessa noção em nações com uma estrutura constitucional frágil (Venezuela) ou uma longa tradição institucional (Argentina). Também reivindica o papel de seus líderes e justifica todas as variantes que observa dessa modalidade (Laclau, 2006). Este delineamento pró-populista é o avesso da crítica socioliberal e não fornece pistas para esclarecer a marca atual da nova direita.
Para compreender o sentido desse espaço, é necessário investigar as raízes sociais de sua ação política. A atual onda reacionária é um projeto de setores das classes dominantes para restabelecer a corroída estabilidade do capitalismo. Pretendem conseguir essa recomposição generalizando as agressões contra os setores mais desprotegidos da sociedade.
Essa atenção ao substrato de classe da ultradireita desaparece no universo ambíguo das observações sobre o populismo que seus defensores enaltecem. Rejeitam a avaliação dos interesses em jogo, porque desconhecem o protagonismo das classes sociais, ponderando a centralidade alternativa de uma variedade indistinta de sujeitos com identidades contingentes, que alcançam a centralidade por meio de seus discursos.
Desse ponto de vista, é impossível registrar quais são os interesses sociais subjacentes nas disputas de cada cenário político. Não há como compreender a razão pela qual a ultradireita irrompe atualmente e quais são as forças econômicas que sustentam sua presença. Essa ótica questiona os próprios discursos, sem oferecer explicações sobre a forma como se articulam com suas determinações sociais. Devido a essas imprecisões, também não conseguem esclarecer o sentido da ideologia reacionária vigente (Anderson, 2015).
A análise da ultradireita deve enriquecer a luta contra essa corrente. A avaliação desse espaço visa alcançar a derrota ou neutralização de uma força que atenta contra a democracia e as conquistas populares.
Na América Latina, a experiência recente mostra resultados muito diferentes, quando prevalecem respostas determinadas ou reações hesitantes. No primeiro caso, está a batalha do governo venezuelano contra o golpismo, que a um enorme custo econômico e social conseguiu subjugar as guarimbas dos grupos reacionários.
Uma atitude do mesmo tipo aparece na Bolívia, com a prisão de Camacho. Em vez de aceitar passivamente as provocações dos grupos neofascistas, o governo tomou a ofensiva e lançou uma ousada operação para conter um inimigo implacável. A derrota do golpe fracassado no Brasil, com as prisões dos envolvidos, julgamentos dos responsáveis e investigação do financiamento se inscreve na mesma direção.
Essas posições contundentes permitiram frear a enxurrada reacionária, em contraposição às atitudes conciliatórias que facilitaram a escalada golpista contra Lugo, no Paraguai, e contra Dilma, no Brasil. Castillo repetiu a mesma conduta no Peru, abrindo caminho para uma sangrenta ação civil-militar.
Essas vacilações constituem uma séria advertência para os países onde a direita tenta incursões mortíferas. É o caso da Argentina. A consumação da fracassada tentativa de assassinato de Cristina teria gerado consequências inimagináveis.
Essa agressão provocou uma grande reação democrática de manifestações imediatas. Porém, o próprio governo desencorajou essa resposta e promoveu apenas rejeições pontuais com figuras conservadoras. Na grande experiência de lutas democráticas desse país, as posições consequentes são coroadas com esclarecimentos (Mariano Ferreyra, Kostecki-Santillán) e as atitudes de resignação levam à impunidade (AMIA, Embaixada de Israel e Rio Tercero).
E já foram verificados muitos nexos dos fracassados assassinos de Cristina com organizações quase fascistas. Se predominar um caminho de mobilização, essas cumplicidades virão à tona. Mas se prevalecer o curso contrário, a direita voltará a lucrar com a confusão reinante (como aconteceu com o suicídio de Nisman).
Finalmente, a experiência chilena ilustra como as vacilações do partido governista facilitam a vertiginosa recomposição de uma direita encorajada. Após três anos de sucessivas derrotas, essa força conseguiu impor a rejeição nas urnas ao projeto de reforma constitucional. Usufruiu da confusão, inação e capitulações do governo. Recompôs sua presença diante de um mandatário que desativou o protesto e ignorou suas promessas eleitorais.
Na América Latina, já são observadas, portanto, várias experiências bem-sucedidas e fracassadas de confronto com a ultradireita. Esse setor reacionário apenas desponta e a prioridade é esmagá-lo antes que possa assentar sua prédica (Colussi, 2022).
A autoridade da esquerda depende de sua capacidade de mostrar firmeza, diante de um inimigo determinado a acabar com os avanços sociais. A experiência recente da Europa ilustra os efeitos autodestrutivos de fugir da batalha olhando de lado (Febbro, 2022).
O terreno principal dessa luta é a mobilização de rua contra um inimigo que também atua nesse terreno. A ingênua crença de que este âmbito pertence à esquerda foi definitivamente refutada pela presença ativa de seus adversários em passeatas e manifestações.
Em alguns casos, essa intervenção precedeu a pandemia (Brasil) e em outros ganhou intensidade com o surgimento dos negacionistas (Argentina). O protagonismo dessas formações cresceu no confronto com os governos progressistas (Bolívia, México) e na rejeição às revoltas populares (Chile, Colômbia, Peru).
Esta disputa pela proeminência das ruas nos obriga a avaliar com cautela o rumo progressista ou regressivo das mobilizações que abundam na região. As convocações com bandeiras explicitamente socialistas ou direitistas são tão incomuns quanto atos com perfis políticos acabados. Caracterizar o conteúdo de cada evento é vital para distinguir as ações progressistas de sua antítese reacionária.
Não há nenhuma receita para acertar nessa avaliação, nem mesmo constatando a composição social dos participantes de cada evento. O barômetro da esquerda e da direita fornece o instrumento básico para tirar alguma conclusão. Não basta registrar a legitimidade das demandas em jogo. Também é preciso observar quem as dirige. A direita costuma incentivar a irritação popular contra os governos progressistas, ao mesmo tempo em que repudia qualquer luta pelas mesmas aspirações, quando prevalece uma administração conservadora.
Contudo, também é verdade que muitos governos de origem popular recorrem ao fantasma da conspiração direitista para justificar políticas contrárias aos trabalhadores. Esse tipo de dilema não pode ser resolvido com um manual e cada caso requer uma avaliação específica, partindo de uma caracterização do progressismo atual. Abordaremos essa avaliação em nosso próximo texto.
Riley, Dylan (2018). ¿Qué es Trump? New Left Review 114 enero – febrero 2018.
Palheta, Ugo (2018). Nuestro tiempo no es inmune al cáncer fascista”, kritica, 20 diciembre, 2018. Disponível aqui.
Louçã, Francisco (2018). El populismo fascista no ha hecho más que empezar. 24-10-2018. Disponível aqui.
Davidson, Neil (2010),. “From deflected permanente revolution to the law of uneven and combined development”, International Socialist, n 128, autumn 2010.
Fraser, Nancy (2019). ¿Podemos entender el populismo sin llamarlo fascista?, 11-04-2019. Disponível aqui.
Traverso, Enzo (2019). Interpretar la era de la violencia global Viento Sur, 23-04-2019.
Martins, Carlos Eduardo (2022). O ressurgimento do fascismo no mundo contemporâneo: história, conceito e prospective, Intellèctus, Ano XXI, n.2, 2022. DOI: 10.12957/intellectus.2022.71657
Löwy, Michael (2019). La extrema derecha: Un fenómeno global, 19-01-2019. Disponível aqui.
Katz, Claudio (2008). Las disyuntivas de la izquierda en América Latina, Ediciones Luxemburg, Buenos Aires.
Traverso, Enzo (2016). Espectros del fascismo. Pensar las derechas radicales en el siglo XXI, 2016. Disponível aqui.
Laclau Ernesto (2006). “La deriva populista y la centroizquierda latinoamericana”. Nueva Sociedad, n 205, septiembre-octubre 2006, Buenos Aires.
Anderson, Perry (2015). Los herederos de Gramsci New Left Review 100 sep-oct 2015.
Colussi, Marcelo (2022). Latinoamérica y las nuevas izquierdas. Disponível aqui.
Febbro, Eduardo (2022). El dilema de la izquierda. Disponível aqui.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Fascismo, populismo ou ultradireita? Artigo de Claudio Katz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU