23 Setembro 2022
“Ao tratar a colonização israelense da Cisjordânia como uma luta defensiva pela liberdade, a Ucrânia valida um ato de agressão de outra potência e, ao fazê-lo, coloca em risco sua própria luta pela liberdade, que é plenamente justificada”, afirma Slavoj Zizek, filósofo esloveno, em artigo publicado por Clarín/Revista Ñ, 21-09-2022. A tradução é do Cepat.
Certa vez eu disse para o meu filho pequeno: “Você pode me passar o sal?” Ele me respondeu: “Claro que posso!” Repeti o pedido e ele me soltou esta: “Você me perguntou se eu podia passar o sal, e eu lhe respondi. Você não me disse que eu devia passá-lo.”
Quem foi mais livre nessa situação: meu filho ou eu? Se entendermos que liberdade significa liberdade de escolha, meu filho foi mais livre, pois tinha uma opção a mais em relação a como interpretar minha pergunta. Podia fazê-lo no sentido literal ou no sentido usual (como um pedido que se faz na forma de uma pergunta por motivos de cortesia). Em vez disso, desisti de ter alternativas e assumi como tácito o sentido convencional.
Agora imaginemos um mundo em que muitas pessoas agissem na vida cotidiana como fez meu filho para tirar sarro de mim. Nunca teríamos certeza do que nossos interlocutores querem dizer e perderíamos muito tempo com interpretações fúteis.
Não é esta uma boa descrição de como tem sido a vida política na última década? Donald Trump e outros populistas da “direita alternativa” aproveitaram o fato de que a política democrática depende de certas regras e costumes tácitos e os violaram sempre que lhes convinha, mas evitando prestar contas, porque nem sempre descumpriram a lei de maneira explícita.
Nos Estados Unidos, os lacaios de Trump no Partido Republicano estão usando uma estratégia semelhante em vista das próximas eleições presidenciais.
De acordo com uma teoria jurídica marginal que eles adotaram, a legislação eleitoral federal contém uma brecha legal que permitiria que as legislaturas estaduais nomeassem seus representantes para o colégio eleitoral, caso a Secretaria de Estado em questão decidisse não validar o resultado da eleição presidencial.
Os negacionistas eleitorais republicanos estão agora tentando obter os cargos necessários para anular a vontade dos eleitores em 2024.
É assim que o Partido Republicano está tentando destruir uma das condições básicas da democracia: que todos os atores políticos falem o mesmo idioma e sigam as mesmas regras. O contrário implica em deixar um país à beira de uma guerra civil (resultado que quase metade dos estadunidenses considera provável).
As mesmas condições se aplicam à política mundial. Para que as relações internacionais funcionem, a condição básica é que todas as partes falem o mesmo idioma quando se referem a conceitos como “liberdade” e “ocupação”.
É claro que a Rússia viola essa condição ao descrever sua guerra de agressão na Ucrânia como uma “operação especial” para “libertar” o país. Mas o governo ucraniano também caiu na armadilha.
Em um discurso no Knesset [Parlamento] israelense em 20 de março de 2022, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky declarou: “Estamos em países diferentes e em condições completamente diferentes. Mas a ameaça é a mesma, para vocês e para nós: a destruição total do povo, do Estado e da cultura. E até dos nomes: Ucrânia e Israel”.
O cientista político palestino Asad Ghanem descreveu o discurso de Zelensky como “uma desgraça para a luta mundial pela liberdade e a libertação, especialmente do povo palestino”. Zelensky “inverteu os papéis de ocupante e ocupado”.
Estou de acordo. E também concordo com Ghanem em que “devemos dar todo apoio possível aos ucranianos em sua resistência à bárbara agressão [da Rússia]”.
Sem o apoio militar do Ocidente, hoje a maior parte da Ucrânia estaria sob ocupação russa, mediante o que destruiria um pilar da paz e da ordem internacional: a integridade territorial.
Infelizmente, o discurso de Zelensky no Knesset não foi um fato isolado.
A Ucrânia apoiou muitas vezes a ocupação israelense. Em 2020, deixou o Comitê das Nações Unidas para o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino; e no mês passado, seu embaixador em Israel, Yevgeny Korniychuk, declarou: “Como um ucraniano cujo país está sob ataque brutal de seu vizinho, compartilho os sentimentos da população israelense”.
Este paralelo entre Israel e Ucrânia está totalmente errado. De qualquer forma, a situação dos ucranianos é mais próxima da situação dos palestinos na Cisjordânia.
É verdade que israelenses e palestinos pelo menos reconhecem a alteridade de seu adversário, enquanto a Rússia afirma que os ucranianos são na realidade russos.
Mas, além do fato de Israel negar a existência de uma nação palestina (como a Rússia faz com a Ucrânia), os palestinos também tiveram um lugar negado no mundo árabe (como os ucranianos em relação à Europa antes da guerra).
Além disso, assim como a Rússia, Israel é uma superpotência militar com armas nucleares que na prática coloniza uma entidade menor e muito mais fraca. E assim como a Rússia nas partes ocupadas da Ucrânia, Israel segue uma política de apartheid.
Os dirigentes israelenses apreciaram o apoio da Ucrânia, mas não retribuíram o favor. Em vez disso, oscilaram entre os dois oponentes, porque Israel precisa que o Kremlin continue a tolerar os ataques militares israelenses contra alvos na Síria.
Mas o apoio total da Ucrânia a Israel deve-se sobretudo ao interesse ideológico dos dirigentes ucranianos em apresentar a sua luta como uma defesa da Europa e da civilização europeia contra um Oriente bárbaro e totalitário.
Esta apresentação é insustentável, porque exige que se esqueça a história da Europa no tocante à escravidão, ao colonialismo, ao fascismo, etc. É crucial que a causa da Ucrânia seja defendida em termos universais, em torno de conceitos compartilhados e de uma interpretação compartilhada de palavras como “ocupação” e “liberdade”.
Reduzir a guerra na Ucrânia a uma luta pela Europa é usar a mesma estrutura de Aleksandr Dugin, o “filósofo da corte” do presidente russo Vladimir Putin, com a diferença que ele traça entre “verdade russa” e “verdade europeia”.
O confinamento do conflito à Europa reforça a propaganda global da Rússia, que apresenta a invasão da Ucrânia como um ato de descolonização, parte da luta contra a dominação neoliberal do Ocidente e um passo necessário para um mundo multipolar.
Ao tratar a colonização israelense da Cisjordânia como uma luta defensiva pela liberdade, a Ucrânia valida um ato de agressão de outra potência e, ao fazê-lo, coloca em risco sua própria luta pela liberdade, que é plenamente justificada.
Mais cedo ou mais tarde, terá que escolher. Será um país realmente europeu que participa do projeto emancipatório universal definido pela Europa? Ou se tornará parte da onda populista da nova direita?
Quando a Ucrânia perguntou ao Ocidente se este poderia lhe fornecer projéteis, o Ocidente não teve o cinismo de responder “é claro que podemos!” e depois não fazer nada.
Os países ocidentais deram uma resposta razoável e enviaram armas para combater os invasores. Mas quando os palestinos pedem apoio, de qualquer tipo, tudo o que recebem são declarações vazias, muitas vezes acompanhadas de demonstrações de solidariedade com aqueles que os oprimem.
Eles pedem o sal, mas quem o recebe é seu adversário.
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A Ucrânia também caiu na armadilha. Artigo de Slavoj Zizek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU