05 Janeiro 2023
O cristianismo nunca poderá deixar de acolher e de estar ao lado dos últimos, incluindo os mais indefesos como as crianças e sobretudo os idosos. Mas a fonte de onde brota sua energia não poderá ser unicamente o humano, mas sim o humano unido ao divino e o divino unido ao humano.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 27-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No artigo publicado neste jornal no dia de Natal, Michela Murgia acusou de modo bastante duro o catolicismo de ser “a única confissão cristã a infantilizar o seu Deus”. Acho que entendo qual é seu alvo: são aqueles católicos que se comovem diante do presépio cantando “tu desces das estrelas” e logo depois fecham o coração diante daquelas pessoas que buscam acolhida porque vêm do mar. Aqueles católicos que proclamam fervorosamente “Deus, Pátria, Família”, mas apenas com a condição de que se trata do “seu” Deus, da “sua” Pátria, da “sua” Família, revelando assim que, na realidade, o verdadeiro interesse é apenas aquilo que é deles e, portanto, eles mesmos, tornando desse modo o egoísmo o valor absoluto.
Acho que esse é o objetivo de Murgia e eu o compartilho, porque eu também sempre considerei que fazer do catolicismo o guardião da consciência egoísta do Ocidente opulento é uma traição à mensagem evangélica.
Dito isso, porém, o modo como Murgia procede para sustentar sua tese, em minha opinião, apresenta muitos problemas em termos do perfil conteudístico bíblico e também teológico. Argumento minha afirmação partindo dos problemas mais leves, deixando para o fim aquilo que considero realmente grave.
No que diz respeito à exegese bíblica, Murgia escreve que, “nas Escrituras, o relato bíblico do nascimento de Jesus se assemelha mais à trama de um filme dramático”. Trata-se de uma afirmação apenas parcialmente verdadeira, que vale para o relato do nascimento de Jesus apresentado por Mateus, mas não para o de Lucas. Os dois relatos são tão diferentes entre si que impossibilitam a harmonização e levam a concluir que naqueles dias as coisas aconteceram ou como Mateus as narra ou como Lucas as narra (ou de um modo ainda diferente, como eu penso, mas aqui não posso argumentar meu ponto de vista).
Segundo Mateus, a sequência dos eventos foi: anunciação a José, nascimento em casa (porque José e Maria eram de Belém), chegada dos Magos, busca do menino por parte de Herodes para matá-lo, fuga ao Egito, massacre dos inocentes. Um filme verdadeiramente dramático.
Segundo Lucas, por sua vez, a sequência foi: anunciação a Maria, nascimento em um estábulo (porque José e Maria eram de Nazaré e não encontraram lugar nas hospedarias de Belém onde se encontravam momentaneamente devido ao censo), nenhuma ameaça por parte de ninguém, de modo que os pais, em vez de fugirem para o Egito, levam a criança para Jerusalém no templo (a dois passos de Herodes!) para que fosse circuncidado, com um sereno retorno para casa em Nazaré. Um filme nada dramático. Na mente de muitos, inclusive na de Murgia, os dois relatos se fundem e se confundem, com a falta de clareza que daí decorre.
Um segundo problema de ordem teológica e exegética provém desta afirmação de Murgia: “Só os católicos realizaram na pessoa do Cristo encarnado a idealização da infância, construindo em torno de seu nascimento uma retórica de ternura açucarada desprovida de confirmação bíblica”.
Aqui, os erros são dois: que somente os católicos teriam idealizado a infância de Cristo e que tal operação careceria de suporte bíblico. Começo por este último aspecto, afirmando que, na realidade, a ternura em relação à infância tem diversas confirmações bíblicas, entre as quais o mais célebre é esta profecia de Isaías: “Porque nasceu para nós um menino, um filho nos foi dado: sobre o seu ombro está o manto real, e ele se chama Conselheiro Maravilhoso, Deus Forte, Pai para sempre, Príncipe da Paz” (9,5). E o fato de que não foram apenas os católicos que idealizaram a infância de Cristo é demonstrado, por exemplo, pelo “Messias” de Händel, composto por um protestante para fiéis anglicanos em 1741, com textos extraídos da Bíblia do Rei James, incluindo o texto de Isaías citado acima e magnificamente musicado por Händel.
Também não correspondem à verdade estas outras palavras da autora, ou seja, que “nas outras Igrejas de derivação evangélica a devoção por Jesus recém-nascido – por Maria menina, por tabela – é praticamente inexistente”. Na realidade, a devoção ao Menino e à Mãe, além do catolicismo, está muito presente na Ortodoxia, cujo testemunho são tanto os ícones quanto as festas, por exemplo o ícone do nascimento de Jesus e a respectiva festa, o ícone do nascimento de Maria e a respectiva festa, o ícone de Maria introduzida no templo e a respectiva festa. E nunca se deve esquecer o ícone Theotokos de Vladimir, conhecido também como Mãe de Deus da Ternura, pintado em Constantinopla e hoje conservado em Moscou.
Mas é sobretudo o perfil teológico-sistemático do artigo de Murgia que desperta, no mínimo, perplexidade, onde lemos: “Deus se fez como nós para nos fazer como ele, recita o verso de um conhecido cântico do Advento, tão mistificador que quase daríamos razão ao papa emérito Ratzinger, hostil desde cardeal à deriva criativa da música litúrgica pós-conciliar”. A frase descrita desse modo por Murgia e que, com efeito, se encontra em um conhecido canto litúrgico é, na realidade, um dos mais importantes axiomas teológicos de todos os tempos, cunhado por Irineu de Lyon na obra “Contra as heresias”, composta em torno do ano 180 e baluarte da teologia cristã, na qual, em referência a Cristo, se lê: “Ele se fez aquilo que nós somos, para nos fazer aquilo que ele mesmo é” (livro V, prefácio; mas a afirmação se repete sob várias formas em muitas outras páginas).
Afirmar que a frase “Deus se fez como nós para nos fazer como ele” é uma simples música litúrgica pós-conciliar mistificadora do verdadeiro cristianismo (buscando apoio até mesmo em Bento XVI) é realmente algo muito embaraçoso. Pode-se crer ou não na doutrina cristã, mas, se nela se crê, não se pode escrever que o centro dogmático e espiritual do cristianismo é “mistificador”. É como alguém que afirma que, para ele, Bach é o maior musicista de todos os tempos e depois defende que o contraponto e o baixo contínuo são uma mistificação da verdadeira música (ou como alguém que afirma torcer pela Juventus e depois defende que Bettega, Platini e Del Piero não valem nada).
O fato de se fazer como nós por parte de Deus (a humanização) para nos fazer como ele (a divinização) é o coração conceitual do cristianismo e constitui sua diferença específica em relação ao judaísmo, para o qual não é possível nem uma humanização de Deus nem uma divinização do ser humano, porque Deus é e permanecerá sempre “totalmente outro”.
Para o cristianismo, pelo contrário, tudo está em jogo aqui: que Deus se fez como nós para nos fazer como ele. Os Padres da Igreja de língua grega falavam disso em termos de “theosis”; os padres da Igreja de língua latina falavam disso em termos de “deificatio”, e por muitos séculos as místicas e os místicos cristãos testemunharam esse ideal fazendo dele seu propósito de vida.
O humano é o valor absoluto? Sim, mas apenas com a condição de estarmos cientes de que tal afirmação contém também um grande risco: aquele que Friedrich Nietzsche denunciava ao dizer “humano, demasiado humano”. Um cristianismo que se reduza a ser apenas humanidade, ou seja, apenas caritas, acolhida, compromisso com o próximo, com os migrantes, com os diferentes, um cristianismo apenas horizontal, está destinado a se tornar como aquele sal de que falava Jesus, ao dizer que “perde o sabor e não tem outro propósito senão ser jogado fora e pisado pelas pessoas”.
É claro que o cristianismo nunca poderá deixar de acolher e de estar ao lado dos últimos, incluindo os mais indefesos como as crianças e sobretudo os idosos. Mas a fonte de onde brota sua energia não poderá ser unicamente o humano, mas sim o humano unido ao divino e o divino unido ao humano.
Uma última coisa. Não é verdade que apenas o catolicismo, entre as confissões cristãs, idealizou a criança tornando-a uma das mais preciosas manifestações do divino, mas é verdade que o catolicismo fez tal operação de modo admirável, sobretudo após Francisco de Assis, que, em 1223, em Greccio, inventou o presépio para tal fim. Desse modo, ele pretendia honrar seu mestre, que um dia, muitos séculos antes, aos discípulos que lhe haviam perguntado quem seria o maior no reino dos céus, respondeu chamando para si uma criança e dizendo: “Em verdade, eu lhes digo: se vocês não se converterem e não se tornarem como crianças, nunca entrarão no reino dos céus”. Depois, concluía: “Por isso, quem se abaixa e se torna como essa criança, esse é o maior no reino dos céus”.
O específico do pensamento de Jesus é a harmonia entre o humano e o divino, entre o grande e o pequeno, entre o adulto e a criança. Nessa harmonia consiste o cristianismo e, a meu ver, também a alma da nossa civilização chamada de Ocidente. Decadente e detestável em muitos aspectos, ela continua sendo sempre o lugar mais atento da Terra aos direitos humanos, uma atenção que vem do fato de ter acreditado durante séculos que Deus se fez como nós para nos fazer como ele.
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Entre humano e divino, eis o verdadeiro filho de Deus. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU