04 Janeiro 2023
"O problema de Ratzinger foi, a meu ver, o medo. Pode ser percebido pelos verbos usados no testamento espiritual, todos na defensiva. E do medo nasce a agressividade. Ele foi um homem sinceramente devotado ao seu Senhor, o grande teólogo francês Yves Congar em seu diário do Concílio o lembra como "razoável, modesto, desinteressado, de boa índole", e acredito que ele tenha sido exatamente assim. Mas o medo é sempre um mau conselheiro", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 03-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O testamento espiritual de Joseph Ratzinger divulgado após sua morte, mas composto em 2006, é muito instrutivo para entender sua alma, eu diria mais precisamente a sua psique, ou seja, aquela dimensão interior em que o pensamento de um ser humano se mistura com as emoções e cria aquela mescla de racionalidade e irracionalidade de que cada um de nós propriamente consiste.
O pequeno texto está dividido em quatro partes: agradecimentos, pedido de perdão, exortações, pedido de oração. Sem desmerecer os agradecimentos e os pedidos, belos do ponto de vista humano, mas previsíveis quanto aos agradecimentos e convencionais quanto aos pedidos, a parte decididamente mais interessante é a terceira: das exortações a todos os católicos. Ao escrever, sabia que esse texto seria lido no dia seguinte ao da sua morte com a máxima atenção por todos, o que significa que, se tinha um ás para jogar, era aquele precisamente o local para o fazer. E, de fato, Ratzinger o jogou.
No começo dirigido apenas aos bávaros: “Não vos deixeis desviar da fé”. Em seguida dirigido a todos e reforçando o convite com dois pontos de exclamação: “Permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir!" Eis aqui a sua maior exortação, o objetivo pelo qual dedicou a sua vida, seu ás: a conservação da fé. Prova disso é que em 2016, quando já havia renunciado ao papado há três anos, em conversa com o jornalista alemão Peter Seewald para aquela que foi a sua última publicação intitulada justamente "Últimas Conversas", afirmou: “Hoje o importante é preservar a fé. Considero isso a função central”.
Mas agora vamos prestar atenção nos verbos usados: não se deixar distrair, ficar, não se deixar confundir, preservar. Quem fala assim? Quem sente que está na presença de uma grave ameaça e tem medo dela. A mensagem conclusiva e sintética de Joseph Ratzinger, portanto, é em sua essência profunda um grito de alarme. Sua razão era a de um homem confiante, mas sua psique, ao contrário, a de um homem assustado.
Do que tinha medo? Pode ser depreendido nas "Últimas conversas" quando afirma que hoje “prevalece uma cultura positivista e agnóstica que se mostra cada vez mais intolerante para com o cristianismo”, com a consequência que “a sociedade ocidental, em todo caso na Europa, não será uma sociedade cristã”. Ideia reafirmada pouco depois: "A descristianização da Europa está avançando, o elemento cristão está desaparecendo cada vez mais do tecido da sociedade".
Mas é necessário continuar a análise do testamento espiritual porque nele Ratzinger entra ainda mais em detalhes e adverte os católicos do perigo em sua opinião mais ameaçador: “Muitas vezes parece que a ciência - as ciências naturais por um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) por outro - são capazes de oferecer resultados irrefutáveis em contraste com a fé católica".
Então a ciência é o perigo? O texto fala de duas formas de ciência: as ciências naturais e as ciências histórico-bíblicas. Para as primeiras, a resposta à questão levantada deve ser não: para Ratzinger a ciência não é um perigo, no máximo algumas "interpretações filosóficas apenas aparentemente ligadas à ciência". Aliás, a ciência pura pode ser até útil à fé, porque “em diálogo com as ciências naturais, a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance das suas afirmações e, portanto, a sua especificidade”. Imagino que aqui Ratzinger estivesse pensando no caso Galileu e no fato de que hoje um episódio desse tipo não seria nem remotamente concebível. Para a fé, portanto, as ciências naturais não são um perigo, mas às vezes até uma ajuda.
A situação é diferente para as ciências bíblicas, sobre as quais aqui estão as palavras precisas de Ratzinger: “Já são sessenta anos que acompanho o caminho da teologia, em particular das ciências bíblicas, e com o suceder-se das diferentes gerações vi desmoronar teses que pareciam indestrutíveis, demonstrando ser simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher etc...), a geração existencialista (Bultmann etc...), a geração marxista”. Causa certo efeito encontrar num testamento espiritual, ao lado dos mais belos agradecimentos a Deus e aos familiares e dos mais íntimos pedidos de perdão e oração, a menção de escolas exegéticas acompanhadas nomes.
Mas é ainda mais impressionante não encontrar nenhuma palavra de apreço para as ciências bíblicas, ao contrário do que aconteceu com as ciências naturais. Sobre elas Ratzinger apenas diz que viu essas teses desmoronarem, quase como se nada restasse do trabalho feito, de modo que nada restaria a não ser confiar-se à leitura tradicional da Bíblia promovida pela Igreja para redescobrir sempre "a razoabilidade da fé" e que "Jesus Cristo é verdadeiramente o caminho, a verdade e a vida". No entanto, as coisas não são assim.
Como as ciências naturais, também as ciências bíblicas deram uma contribuição considerável para aprofundar e purificar a fé, permitindo interpretar os textos bíblicos de maneira adulta. Em 2008, durante o reinado do Papa Bento XVI, o Cardeal Martini, insigne estudioso da Bíblia, publicou um texto que causou impacto, "Diálogos noturnos em Jerusalém", onde chegou a falar de verdadeiras e próprias escolas bíblicas para "tornar os cristãos independentes", porque, em sua opinião, "todo cristão que vive com a Bíblia deveria encontrar respostas pessoais às perguntas fundamentais". Encontrar respostas pessoais. Para Martini, de fato, a Igreja deve ser mais "um contexto que oferece estímulos e apoio, do que um magistério do qual o cristão depende". O objetivo não é a obediência à Igreja continuando a crer como se acreditava nos séculos passados; é antes a liberdade da mente para verificar pessoalmente a "razoabilidade da fé", no caso purificá-la, vivendo assim a vida autêntica de quem é si mesmo e não porta-voz de pensamentos alheios.
A desconfiança de Ratzinger em relação às ciências bíblicas surge de forma clamorosa em sua obra sobre Jesus em três volumes, onde por centenas de páginas desconsidera quase totalmente séculos de exegese científica sobre o texto dos Evangelhos, evita as perguntas incômodas e acaba apresentando uma figura de Jesus nos limites do devocionismo.
E se esse é um problema que diz respeito apenas a ele e à dimensão científica da sua obra, o que diz respeito a todos é a forma como ele, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (cargo que ocupou durante 23 anos) exerceu seu poder disciplinar contra aqueles biblistas e aqueles teólogos que, como almejava o cardeal Martini, pensavam na primeira pessoa ao reelaborar a teologia.
Refiro-me às dezenas e dezenas de teólogos cuja cátedra foi tirada, entre os quais recordo Leonardo Boff, José Maria Castillo, Charles Curran, Jacques Dupuis, Matthew Fox, Ion Sobrino e a condenação post mortem de Anthony De Mello. A teologia da libertação foi perseguida em todas as suas formas e o bispo mártir Oscar Romero teve que esperar pelo Papa Francisco para ser elevado às honras dos altares.
Como escrevi no início, o problema de Ratzinger foi, a meu ver, o medo. Pode ser percebido pelos verbos usados no testamento espiritual, todos na defensiva. E do medo nasce a agressividade. Ele foi um homem sinceramente devotado ao seu Senhor, o grande teólogo francês Yves Congar em seu diário do Concílio o lembra como "razoável, modesto, desinteressado, de boa índole", e acredito que ele tenha sido exatamente assim. Mas o medo é sempre um mau conselheiro.
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No testamento de Bento o medo, mau conselheiro. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU