08 Dezembro 2022
“A ricota” e “O Evangelho segundo Mateus”: como duas obras tão diferentes no nível da sua inspiração religiosa podem ser a expressão de um mesmo autor em um arco temporal tão breve? É uma pergunta que muitos se fizeram no passado, forçando os dois filmes, em nome de uma suposta e irrenunciável coerência, em esquemas interpretativos falaciosos.
O comentário é do padre italiano Dario E. Viganò, vice-chanceler da Pontifícia Academia das Ciências e da Pontifícia Academia das Ciências Sociais e ex-diretor do Centro Televisivo Vaticano.
O artigo é publicado por Il Sole 24 Ore, 04-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Le cronache di S. Matteo. Il film amato e accantonato di Pier Paolo Pasolini”, distante da retórica da celebração, é um livro que aborda, por meio dos instrumentos dos estudos históricos e da escavação documental, uma rigorosa pesquisa sobre um tema polêmico.
Com uma leitura original e, em certo sentido, na contramão sobre a figura de Pasolini e sobre o seu cinema religioso, o volume lança luz sobre um filme misterioso, mas de importância crucial, entre “A ricota” e “O Evangelho segundo Mateus”.
A pesquisa de Tomaso Subini gira em torno da descoberta de que o “filme dentro do filme” de “A ricota”, ou seja, aquele dirigido pelo diretor interpretado por Orson Welles, tinha um título: “As crônicas de São Mateus”. Trata-se de um dado que Pasolini manteve escondido, por prudência e para proteger “O Evangelho segundo São Mateus”, mas, no entanto, historicamente verificável: durante as filmagens de “A ricota”, de fato, era conhecido da equipe e dos jornalistas presentes no set que aquele “filme dentro do filme” chamava-se exatamente como o filme que, como se descobriria em seguida, Pasolini já havia concebido naquela data e no qual já estava pensando seriamente.
O livro de Subini explica por que, em um certo ponto, Pasolini deixou de lado “As crônicas de São Mateus”, um filme intelectualmente sofisticado e ideologicamente subversivo, para realizar, por sua vez, “O Evangelho segundo São Mateus”, um filme absolutamente ortodoxo, apresentado na Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza em 1964 e que recebeu o maior reconhecimento do mundo católico para o cinema religioso: o prêmio OCIC (Organisation Catholique Internationale du Cinéma, fundada em 1928 por ocasião do congresso internacional dos católicos envolvidos com o cinema).
Embora o volume seja pequeno e se proponha com uma linguagem simples, oferecendo-se a uma leitura ágil e instigante, a matéria de que ele trata, no entanto, é complexa e entrelaça nada menos do que três filmes envolvendo múltiplos sujeitos e numerosas instituições. A história narrada se interroga, em síntese, sobre o caminho que leva Pasolini da clamorosa condenação por ter difamado a religião do Estado com “A ricota” à conquista do prestigiado prêmio OCIC, poucos meses depois, na Mostra de Veneza com “O Evangelho segundo São Mateus”.
A questão levantada pela pesquisa é como duas obras tão diferentes no nível da sua inspiração religiosa podem ser a expressão de um mesmo autor em um arco temporal tão breve: é uma pergunta que muitos se fizeram no passado, forçando os dois filmes, em nome de uma suposta e irrenunciável coerência, em esquemas interpretativos falaciosos.
Subini se confronta, acima de tudo, com aqueles que, projetando “O Evangelho segundo São Mateus” sobre “A ricota”, defendem a ideia de um Pasolini cristãmente inspirado sempre e de todos os modos: contra tal posição, Subini demonstra, inserindo a análise do filme no seu contexto meticulosamente reconstruído, que “A ricota” é um filme programaticamente anticatólico, ou seja, um filme que persegue deliberadamente o vilipêndio dos símbolos cristãos (a coroa, a cruz, os santos, Jesus) no seu projeto estético.
A partir desse ponto de vista, também se compreende melhor que, em tal contexto histórico e cultural, o processo contra o filme se apoiava, de fato, em uma sólida base probatória.
Porém, Subini também se confronta com aqueles que, com uma operação contrária, projetando “A ricota” sobre “O Evangelho segundo São Mateus”, defendem a ideia de um Pasolini religiosamente inspirado, mas sempre subversivo: contra tal posição, Subini demonstra, alinhando uma documentação conhecida apenas em parte – ou seja, o quanto Pasolini estava bem disposto em relação ao mundo católico –, o quanto ele fez para atender às expectativas daqueles que o premiaram em Veneza.
Não se deve esquecer, por exemplo, da sua ida em audiência ao patriarca de Veneza para solicitar o seu indispensável placet para o prêmio e o fato de aceitar acrescentar uma sequência excluída da edição final para responder a uma condição imposta pelo júri da OCIC.
Não devemos buscar uma coerência a todo o custo – essa é a tese de Subini –, mas explicar a incoerência, a partir da constatação de que, no complexo jogo travado entre 1962 e 1964 entre o diretor e o mundo católico, ambos precisavam um do outro. De um lado, há um autor cuja poética escandalosa o obriga constantemente a ser processado e nem sempre com resultados positivos: a condenação por “A ricota” é uma experiência traumática que assusta Pasolini e sugere-lhe uma correção de rota tão repentina quanto surpreendente, representada precisamente pelo “Evangelho segundo São Mateus”.
Por outro lado, existem as instituições católicas engajadas no apostolado cinematográfico: um variado mundo de sujeitos (incluindo o Centro Católico Cinematográfico e a Pro Civitate Christiana), que estão recuando em relação às posições hegemônicas dos anos 1950, e por esse motivo buscam uma redenção em nível cultural e captam em Pasolini uma oportunidade preciosa.
Capa do livro "Le cronache di S. Matteo. Il film amato e accantonato di Pier Paolo Pasolini" de Tomaso Subini. Foto: divulgação
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O que desune (ou une) Pasolini ao mundo católico. Artigo de Dario Viganò - Instituto Humanitas Unisinos - IHU