25 Novembro 2022
“É um bom sinal que Polanyi seja a figura a que até mesmo alguns economistas recorrem, atualmente, para entender os ciclos do capitalismo e suas vicissitudes. O próximo passo é lidar com as implicações radicais de sua insistência na primazia da política”, escreve Sheri Berman, professora de ciência política no Barnard College, na Universidade Columbia, em artigo publicado por Nueva Sociedad, Novembro/2022. A tradução é do Cepat.
As décadas de triunfalismo capitalista que se seguiram ao colapso do comunismo soviético chegaram ao seu fim com a crise financeira de 2007-2009. Desde então, cresceu o reconhecimento das desvantagens do capitalismo.
Atualmente, é alvo do ataque de uma esquerda socialista revitalizada e de partes de uma direita populista em crescimento. Até pilares do sistema como a Bloomberg, o Conselho de Relações Exteriores e a McKinsey oferecem regularmente debates sobre “o futuro do capitalismo”, o que supõe que está em questão.
Um claro reflexo da mutável avaliação do capitalismo é a economia como profissão. No início do século XXI, conforme afirmou um influente estudo, o neoliberalismo era essencialmente hegemônico e, portanto, os economistas demonstravam otimismo em relação à capacidade da economia em prosperar praticamente sem restrições. Contudo, mais ou menos a partir da última década, estudiosos como Thomas Piketty, Emmanuel Saez, Gabriel Zucman, Mariana Mazzucato, Adam Tooze, Anne Case e Angus Deaton passaram para o primeiro plano do debate ressaltando as falhas do capitalismo, tanto econômicas quanto sociais.
Adentra essas águas J. Bradford DeLong, influente professor de economia nos Estados Unidos, ex-secretário-geral adjunto do Tesouro e autor de um blog sobre economia muito lido. Seu livro Slouching Towards Utopia: An Economic History of the Twentieth Century oferece uma interpretação do desenvolvimento do capitalismo que reflete até que ponto os economistas contemporâneos lidam com suas vicissitudes. No entanto, a obra também deixa claro como é difícil entender essas coisas, caso se observe apenas o capitalismo.
DeLong constrói Slouching Towards Utopia em torno da afirmação de que o século XX foi “o primeiro século em que a história foi predominantemente uma questão de ciência econômica: a economia foi a arena dominante onde os eventos se deram (…) e as mudanças econômicas a força impulsionadora por trás de outras mudanças”. Essa perspectiva, que pode ser chamada de “primazia da economia”, leva DeLong a periodizar a história moderna de uma forma particular.
Argumenta que iniciou uma nova era, em 1870, quando a globalização, o laboratório de pesquisa industrial e a empresa moderna abriram a “porta” para o desenvolvimento capitalista, permitindo à humanidade começar a “avançar lentamente rumo à utopia”. Essa era, que DeLong (ecoando Giovanni Arrighi) chama de “longo século XX”, terminou em 2010, quando a crise financeira lançou dúvidas sobre se o capitalismo ainda era uma força que impulsionava o progresso.
Para ilustrar como o capitalismo mudou e se desenvolveu durante esse período, DeLong recorre a dois importantes pensadores: Friedrich Hayek (1899-1992) e Karl Polanyi (1886-1964). Ambos tinham visões totalmente diferentes do capitalismo.
Hayek foi, claro, um paladino do capitalismo de “livre mercado”, com o argumento de que gerava mais liberdade e progresso do que qualquer outro sistema ou, nas palavras de DeLong, que poderia aproximar mais a humanidade da utopia. A fé de Hayek era tão forte que considerava que as intervenções políticas para alcançar os resultados que o capitalismo não gerava espontaneamente não só eram ineficientes, como também significavam uma ladeira escorregadia em direção ao totalitarismo.
Ao contrário, Polanyi era um crítico ferrenho, defendendo que o capitalismo, deixado solto, minava valores como a justiça e a equidade, que eram as principais razões da existência humana. De fato, Polanyi acreditava que as forças socialmente destrutivas e desumanizadoras liberadas por um capitalismo descontrolado causariam uma reação negativa, e era isto o que levava ao espectro do totalitarismo.
DeLong divide o “longo século XX” em cinco períodos, cada um ilustrando conceitos de Hayek ou Polanyi, ou de ambos.
O primeiro é 1870-1914. Pela primeira vez na história, o crescimento econômico começou a superar sistematicamente o aumento da população, tirou a humanidade da extrema pobreza que havia sido o seu terreno até então e gerou um progresso médico, tecnológico e cultural inimaginável. Essa revolução econômica também ajudou a romper as hierarquias de status social e os sistemas políticos oligárquicos que haviam limitado previamente a liberdade humana. Durante esse período, conforme argumentaria Hayek, o capitalismo sem dúvida ajudou a humanidade a “avançar lentamente rumo à utopia”.
Não obstante, isso trouxe aspectos negativos. Surgiram novas desigualdades entre as áreas urbanas e rurais e entre as classes média e trabalhadoras em expansão, sendo estas submetidas a condições abomináveis de vida e trabalho. Comunidades e valores tradicionais entraram em colapso, o que deixou muitos sem redes de segurança e gerou uma ampla alienação social. A migração interna (do campo para a cidade) e a externa explodiram, forçando muitos a se adaptarem a condições de vida absolutamente novas, como também a conviver com pessoas totalmente diferentes.
Conforme Polanyi analisou, o período seguinte (1914-1945) observou uma reação negativa. Entre o final do século XIX e o início do século XX, cresceram os movimentos nacionalistas alimentados pelo medo e a raiva que eram gerados pela mudança acelerada, contribuindo para a catástrofe da Primeira Guerra Mundial. As décadas do entreguerras trouxeram uma série de problemas econômicos: alto desemprego, enorme inflação e, claro, a Grande Depressão.
A solução “hayekiana” ou economicamente ortodoxa para esses problemas - laissez-faire e austeridade - foi, como afirma DeLong, “completamente insana” e “piorou as coisas”. O sofrimento causado pelo capitalismo, combinado com o fracasso das figuras e partidos do establishment em administrá-lo de forma eficaz, contribuiu para aumentar o apoio aos extremistas de esquerda (comunistas) e direita (fascistas e nacional-socialistas) que prometiam “solucionar” os problemas do capitalismo e criar um mundo “melhor”.
Disciplinado pelas lições dos anos do entreguerras, o Ocidente entrou em um novo período após 1945, caracterizado por DeLong como um “casamento forçado entre Polanyi e Hayek, abençoado por Keynes”. O capitalismo ressurgiu, contrariamente aos desejos de seus mais ferrenhos críticos, mas de modo temperado pela interferência do Estado para evitar suas desvantagens, o que também decepcionou os defensores do “livre mercado”.
Se entre 1870 e 1914 a humanidade tinha avançado lentamente rumo à utopia, durante a era social-democrata do pós-guerra correu rumo a ela. Nas décadas posteriores a 1945, as economias ocidentais cresceram mais rápido do que nunca, ao passo que a desigualdade, o conflito de classes e o extremismo diminuíram.
Apesar de seus sucessos, esta era social-democrata também chegou ao seu fim. As dificuldades econômicas que começaram nos anos 1970 ofereceram uma brecha para os ataques “hayekianos” ao sistema, e o desaparecimento do comunismo após 1989 encorajou a direita. Dessa forma, começou um novo período neoliberal em que o pêndulo oscilou novamente a Hayek e a um papel mais relevante dos mercados, e se afastou da ênfase polanyiana ou mesmo keynesiana da importância da intervenção estatal para proteger os cidadãos das consequências negativas do capitalismo.
Os resultados no Ocidente foram um crescimento tíbio, o aumento da desigualdade, a estagnação da produtividade e a iniciativa empresarial, e uma crise financeira que levou este período ao seu fim. (O mundo em desenvolvimento teve uma experiência diferente durante essas décadas: o capitalismo gerou enormes lucros e um progresso semelhante ao vivido pelo Ocidente, entre 1870 e 1914.)
Isso nos leva ao quinto período de DeLong, o contemporâneo, caracterizado por uma reação polanyiana às consequências negativas da era neoliberal. Durante a última década, aproximadamente, o Ocidente experimentou o crescimento do descontentamento social e do extremismo político, bem como um questionamento generalizado sobre se o capitalismo ainda pode ajudar a humanidade a avançar lentamente rumo à utopia.
As análises que identificam as forças econômicas como o motor da história nos lembram a centralidade do capitalismo para a Modernidade. Contudo, essa perspectiva desconsidera partes importantes da história.
O relato de DeLong sobre o “longo século XX” estabelece um diálogo direto com o do grande historiador europeu Eric Hobsbawm, cuja obra A Era dos Extremos recebeu como subtítulo O breve século XX - 1914-1991. A periodização de Hobsbawm foi determinada por sua crença de que a história contemporânea se definia mais pelos acontecimentos políticos – o surgimento e a queda do totalitarismo, em particular o comunismo soviético – do que pelos econômicos. Da mesma forma, Polanyi não era apenas um crítico do capitalismo, mas um reinterpretador radical: insistia que suas origens e desenvolvimento só poderiam ser compreendidos com as lentes da “primazia da política”.
Polanyi argumentava que o capitalismo não surgiu de forma espontânea, nem foi em última análise a consequência dos fatores (globalização, laboratórios de pesquisa, empresas modernas) ressaltados por DeLong. Ao contrário, Polanyi afirmava que as decisões políticas e as mudanças foram necessárias para que ocorresse a transição para o capitalismo, bem como para impedir que o capitalismo minasse a estabilidade social.
Ao lado de outros historiadores econômicos, como Fernand Braudel, Polanyi entendia que mercados e capitalismo não eram a mesma coisa. Os mercados são mecanismos de troca de bens que existem ao longo da história. Já o capitalismo só emergiu nos séculos XVIII e XIX, quando os governantes europeus começaram a eliminar as restrições e a criar as condições para que a pesquisa, o livre comércio e as empresas prosperassem. (A China, por exemplo, pode ter tido o sistema de mercado mais amplo do mundo, no início da época moderna. No entanto, seus governantes restringiram áreas cruciais da atividade econômica, obstaculizando o surgimento do capitalismo, a partir do qual, ao contrário, a Europa se transformou no centro global de poder.
E não só o surgimento, mas também o desenvolvimento do capitalismo foi determinado pela política. O que torna claro uma abordagem ao estilo Polanyi sobre a “primazia da política” é que quando o capitalismo operava quase sem o controle da autoridade política, como durante 1870-1914 e a era neoliberal, não só gerava crises econômicas, como também um amplo descontentamento social e extremismo político. Somente quando as instituições políticas afirmaram seu poder para resistir aos aspectos negativos do capitalismo, com mais sucesso na Europa Ocidental, após 1945, e nos Estados Unidos, no início dos anos 1930, com o New Deal, é que não só o capitalismo pôde prosperar, como também a estabilidade social e a democracia.
Consequentemente, o desafio atual para o capitalismo ocidental também é fundamentalmente político, mais do que econômico. Para que mais uma vez o capitalismo possa ser uma força que ajude a humanidade a “avançar lentamente rumo à utopia” é necessário que as autoridades políticas se mostrem dispostas e capazes de implementar políticas que permitam maximizar os aspectos positivos, enquanto protegem seus cidadãos de suas desvantagens.
É um bom sinal que Polanyi seja a figura a que até mesmo alguns economistas recorrem, atualmente, para entender os ciclos do capitalismo e suas vicissitudes. O próximo passo é lidar com as implicações radicais de sua insistência na primazia da política.
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Colocar a economia sob o controle da política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU