“Há um preocupante aumento da desigualdade dentro dos países”. Entrevista com Klaus Schwab

Rio de Janeiro (Fonte: Pixabay)

23 Março 2021

 

Conversa com Klaus Schwab, fundador e presidente-executivo do Fórum Econômico Mundial, que convida a reinventar o capitalismo das partes interessadas pelo bem da sociedade, das pessoas e do planeta.

 

A entrevista é de Project Syndicate, publicada por El Tiempo, 20-03-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Em 2018, você destacou a importância do diálogo de boa-fé ou a 'capacidade de ver o mundo através dos olhos de outras pessoas, especialmente daquelas com quem não concordamos'. Três anos depois, partidários do presidente Donald Trump invadiram o Capitólio dos Estados Unidos para interromper a certificação de uma eleição que acreditavam, sem evidência, serem roubadas. O que o diálogo de boa-fé pode alcançar em tais circunstâncias? As assembleias cidadãs, que você defendeu em 2019, estão à altura da tarefa ou é preciso pensar em outros mecanismos?

 

O diálogo de boa-fé só pode ocorrer dentro de certos limites normativos. Em uma democracia, esses limites incluem o respeito à Constituição, os líderes eleitos, a aplicação da lei e a integridade física e segurança de todas as pessoas. Mas acredito que as assembleias de cidadãos podem contribuir para superar algumas das profundas divisões que são observadas em muitos países.

 

Assim como a inclusão de um jurado de pares pode ajudar a mitigar o risco de uma justiça politizada, as assembleias de cidadãos podem conferir aos debates públicos sobre temas controversos ou polêmicos um sentido de equidade, atuando como um freio ao ceticismo e cinismo, que hoje são tão frequentes. Afinal, uma assembleia de cidadãos deveria, por definição, incluir representantes de todos os segmentos da sociedade.

Além disso, devem incluir uma fase de aprendizagem, durante a qual os participantes adquirem uma compreensão mais profunda do tema em questão, antes do início da discussão. Não obstante, a melhor maneira de salvar as divisões sociais e políticas é garantir que todos os membros de uma sociedade tenham a oportunidade de progredir e prosperar.

 

Se um sistema continua oferecendo essa oportunidade só para alguns, será difícil aliviar o descontentamento, independente do quanto forem sólidas nossas ferramentas para o diálogo. Por isso, defendo o capitalismo das partes interessadas, um sistema econômico que concede a máxima prioridade ao progresso a longo prazo da sociedade em seu conjunto.

 

Em seu novo livro, com Peter Vanham, ‘Stakeholder Capitalism: a global economy that works for progress, people and planet’ [Capitalismo das partes interessadas: uma economia global que trabalha para o progresso, as pessoas e o planeta], vocês avançam em uma visão integral do modelo, aplicando lições das melhores práticas em lugares muito diferentes, como China e Dinamarca ou Etiópia e Nova Zelândia. Quais políticas considera particularmente convincentes?

 

Em nível de governança, chama a minha atenção o marco de padrões de qualidade de vida da Nova Zelândia, que representa a perspectiva do Estado sobre o que realmente importa para o bem-estar dos neozelandeses, agora e no futuro. No centro deste marco, que ajudou a dar forma ao orçamento de bem-estar, apresentado pela primeira vez pelo governo da primeira-ministra Jacinda Ardern, em 2019, está a convicção de que o PIB é uma medida inadequada para o bem-estar. Para medir o bem-estar de uma sociedade ao longo do tempo, inclusive entre gerações, precisamos de um conjunto mais amplo de indicadores.

 

Este marco de normas de qualidade de vida também aplica uma definição ampla do capital: não só é o capital financeiro, ou seja, dinheiro, mas também capital humano, social e natural. Com esta compreensão multifacetada do capital, fica impossível ignorar o valor do investimento em áreas como a educação, a formação profissional e o meio ambiente. Este é apenas um dos modelos inspiradores e sensatos que discutimos em nosso livro.

 

Em 2019, escreveu que para sustentar e defender os princípios do ‘capitalismo das partes interessadas’, as empresas precisarão de novas métricas. E no ano passado, o Conselho Empresarial do Fórum Econômico Mundial as divulgou. Considera que a recente agitação no mercado de ações, que parece ter rompido qualquer vínculo significativo entre os preços das ações e os fundamentos, estimulará as corporações a olhar para além do mercado de ações? E em termos mais gerais, que lições ficam do caso da GameStop?

 

Existe um consenso cada vez maior entre executivos e investidores de que as empresas devem se concentrar mais na criação de valor, a longo prazo, e menos na maximização de lucros, a curto prazo. Por exemplo, em sua carta anual aos diretores executivos, Larry Fink, da Blackrock, ressaltou cada vez mais a importância fundamental da sustentabilidade nas decisões de investimento.

 

Além disso, em 2019, a Mesa-Redonda de Negócios dos Estados Unidos adotou o capitalismo das partes interessadas. E, em janeiro, 61 empresas (entre elas, a Ecopetrol) se comprometeram a implementar as Métricas do capitalismo das partes interessadas do Fórum Econômico Mundial que você menciona. Estas incluem a medição e divulgação de dados sobre uma ampla gama de objetivos ambientais, sociais e de governança corporativa, em vez de apenas lucros.

 

Tais mudanças são muito mais representativas do que os giros a curto prazo do mercado de ações. Agora, o caso da GameStop é mais uma questão de regulamentação. E em qualquer sistema capitalista, garantir que os mercados financeiros estejam bem regulamentados é uma questão de vital importância, entre outras, para a credibilidade do sistema. Porque se muitas pessoas perdem a fé na equidade do sistema ou duvidam de que realmente está regulamentado, este corre o risco de se tornar disfuncional.

 

Em fins de 2020, você escreveu que o fim da pandemia de covid-19, que as vacinas prometem acelerar, pode ser um dos pilares sobre os quais construir uma nova ‘filosofia de governo’ e reformar as instituições. No entanto, o nacionalismo das vacinas e as regras de propriedade intelectual (que os Estados Unidos e outros se negam a renunciar) expõem sérias dúvidas...

 

Primeiro, quero reconhecer o triunfo do desenvolvimento das vacinas contra a covid-19. Nunca antes na história da humanidade foram concebidas, desenvolvidas, testadas, distribuídas e administradas vacinas para um novo patógeno, em uma escala tão grande, em tão pouco tempo. E a cooperação internacional, junto com as associações público-privadas, foi central para isso.

A vacina Pfizer-BioNTech foi desenvolvida por uma empresa alemã e outra estadunidense, com contribuições de cientistas de dezenas de países. A vacina Oxford-AstraZeneca surgiu da cooperação entre uma instituição acadêmica e uma empresa farmacêutica sueco-britânica.

 

E desenvolver as vacinas em si é apenas o primeiro passo. Empresas de logística de todo o mundo se comprometeram a distribuir as vacinas, bem como equipamentos de proteção pessoal, a países de todo o mundo. Isto também é um sinal de solidariedade mundial.

 

Dito isto, também me preocupam o aumento do nacionalismo das vacinas e os movimentos de algumas economias para frear as exportações. Estas abordagens não só perturbam o funcionamento da economia e o comércio mundiais, como também existe o risco de que alimente ressentimentos que podem durar muito mais que a emergência de saúde pública.

 

E, em última instância, nem sequer servem aos interesses daqueles que as adotam, porque quanto mais o mundo demorar a atingir o nível de cobertura necessário, maiores serão as possibilidades de que sejam desenvolvidas novas cepas para além do alcance das vacinas existentes.

 

Até que todos estejam vacinados, ninguém estará a salvo. Portanto, é do interesse de todos continuar a cooperação mundial em vacinas, do mesmo modo que é do interesse de todos colaborar na luta contra a mudança climática. Quanto mais tempo os países se negarem a reconhecer isto, mais pessoas sofrerão.

 

Na Agenda de Davos, em um evento virtual organizado pelo Fórum Econômico Mundial, o presidente chinês, Xi Jinping, pronunciou o discurso de abertura. O que mais lhe chamou a atenção em seus comentários?

 

O discurso de Xi se deu em um momento histórico para a economia mundial. Pela primeira vez, em 200 anos, a Ásia é a região dominante da economia mundial, e representará mais da metade do PIB mundial em 2021. Como a maior economia da Ásia, e logo do mundo, a China desempenhou um papel decisivo neste desenvolvimento.

 

Diante disto, apreciei particularmente o chamado de Xi a uma cooperação global contínua em áreas como o desenvolvimento econômico, o comércio e especialmente a mudança climática. Como o maior emissor de CO2 do mundo, os compromissos da China com os acordos internacionais sobre comércio e clima são cruciais para alcançar resultados.

 

Segundo um relatório da Oxfam, publicado no primeiro dia da Agenda de Davos, as 1.000 pessoas mais ricas do mundo recuperaram suas perdas com a pandemia em apenas nove meses, mas as mais pobres do mundo poderão levar mais de uma década para se recuperar. Neste contexto, muitos oradores do evento reconheceram a necessidade de redobrar os esforços para criar um sistema econômico mais equitativo. Mas continua existindo muito ceticismo sobre a vontade dos líderes em implementar soluções adequadas à escala do problema. Que propostas concretas surgiram dos debates deste ano?

 

As desigualdades de renda e riqueza são duas das realidades mais problemáticas de nosso tempo. Embora as notícias não sejam todas ruins. Em nível mundial, a desigualdade de renda diminuiu nas últimas décadas, em grande parte graças ao progresso econômico em países como a China e a Índia. Conforme expomos no livro Stakeholder Capitalism, este é um dos resultados positivos do comércio e o investimento global, e não deveríamos perder este fato de vista.

Ao permitir que mais países e regiões participem plenamente na economia global, reduzimos a desigualdade. Mas isto não compensa o forte e preocupante aumento da desigualdade dentro dos países, incluídos os Estados Unidos e grande parte da Europa, assim como a China e a Índia. Para as empresas, a forma mais direta de abordar este problema é aumentar os salários mínimos, quando não são adequados, e ampliar seus compromissos de comércio justo em toda a cadeia de abastecimento. Alguns já estão agindo assim. Por exemplo, este ano, a PayPal aumentou o salário de seus trabalhadores, embora o mercado não exigisse.

 

Outro passo que as empresas podem tomar é pensar mais detidamente em como se compara a remuneração total anual do diretor-executivo com o salário médio da empresa: uma das Métricas do capitalismo das partes interessadas do Fórum Econômico Mundial. Mas, em última instância, a desigualdade em nível macro é uma questão que os governos devem abordar. Eles são os que têm as ferramentas para limitar ou tributar a renda e a riqueza, e para redistribui-las para o meio e a base da pirâmide.

 

Escreve sobre o ‘capitalismo das partes interessadas’ desde 1971. O que o atraiu ao tema e como evoluiu a sua abordagem?

 

Sou um filho da Alemanha e a Europa do pós-guerra. De fato, comecei a escola primária em setembro de 1945. Naquele momento, o sentimento expressado pelo slogan Nie Wieder Krieg (Guerra nunca mais) era amplamente compartilhado, assim como o entendimento de que, para reconstruir nossa renda, empresas, comunidades e sociedades, todos tinham que contribuir. Éramos partes interessadas em um futuro compartilhado.

A economia social de mercado que se construiu na Alemanha, com Ludwig Erhard, nos anos 1950, encarnava esta ideia. Pessoalmente, também aprendi muito sobre isto com meus pais. Meu pai dirigia uma fábrica e uma empresa de engenharia, nos anos 1950 e 1970, e me mostrou como cada indivíduo, dos trabalhadores da fábrica à alta direção, realizava contribuições cruciais.

 

Em minha carreira acadêmica e empresarial, estas experiências me inspiraram a explorar com maior profundidade a noção de empresa como unidade social. Essa busca resultou em meu livro de 1971, Modern Enterprise Management in Mechanical Engineering, no qual abordei o conceito das partes interessadas, e o Manifesto de Davos de 1973, que estipula as responsabilidades que as empresas possuem para com suas partes interessadas.

 

Nos últimos 50 anos, no entanto, a ideia de que o negócio dos negócios é o negócio se estendeu por todo o mundo, fomentando a busca de mercados livres sem restrições e fazendo com que outras partes interessadas, com o governo, as instituições públicas e os sindicatos, perdessem gradualmente poder. Muitos de nossos problemas mais urgentes, na atualidade, incluídas a desigualdade de renda e uma concentração e poder excessivos do mercado, surgiram deste enfoque.

 

Agora, os alarmes estão soando. A mudança climática, as crises sociais e econômicas e a pandemia destacam a necessidade de adotar novamente a noção de capitalismo das partes interessadas e reinventá-lo para o século XXI.

 

 

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