14 Novembro 2022
Poucos dias antes da visita ad limina dos bispos alemães ao Vaticano, conversamos com o secretário da Seção Doutrinária do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre a possibilidade de um intercâmbio benéfico
A reportagem é de Vitória Isabel Cardiel C., publicada por Alfa y Omega, 13-11-2022.
Em 2018, a Conferência Episcopal Alemã divulgou um relatório chocante, com dados sobre 3.677 casos de abuso sexual cometidos por membros da Igreja a menores nos últimos 70 anos. Um ano depois, um propósito claro para a reforma nasceu desse esforço autocrítico. Mas o Caminho Sinodal na Alemanha, um fórum de escuta no qual foram debatidos temas controversos como o papel das mulheres na Igreja, a moralidade sexual, a bênção de casais do mesmo sexo ou o celibato sacerdotal, forjou uma rixa acentuada entre os bispos alemães e o Vaticano. O principal obstáculo é a deriva doutrinária. Na próxima segunda-feira, os bispos alemães viajarão ao Vaticano em visita ad limina. Além de visitar os diferentes dicastérios e ter encontros com diferentes funcionários da Santa Sé, eles se encontrarão com o Papa a portas fechadas e sem jornalistas. Uma data muito desejada por ambos os lados, em que vão conversar cara a cara e sem censura.
As posições que há alguns meses pareciam arraigadas estão se suavizando. O arcebispo de Munique, cardeal Reinhard Marx, um dos principais promotores da reforma da Cúria, deixou claro em entrevista publicada em setembro no jornal francês La Croix que não queria inventar sua própria moral: "Nenhum dos quer substituir ao Papa, anular o direito canônico ou reescrever o dogma da Igreja. O que queremos é fazer perguntas, debater e levar a discussão adiante. Somos parte da Igreja universal. Temos a missão de contribuir com todos os elementos que consideramos importantes”.
Por sua vez, o Vaticano, que advertiu em várias ocasiões que os temas discutidos são de competência exclusiva da Igreja universal e não de uma assembléia nacional, também se afastou de atitudes beligerantes. “Estamos em uma fase delicada e muito importante. Esperamos que os primeiros contatos e confluências que já tivemos tenham sido positivos. Se os bispos alemães saírem de seu mundo e se abrirem para conhecer outras posições, a troca pode ser muito benéfica e rica. O mesmo se aplica a outras igrejas”, diz o secretário da Seção Doutrinária do Dicastério para a Doutrina da Fé, Armando Matteo, que até sua nomeação para a Cúria era professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma.
O padre italiano reconhece que a alemã é “uma Igreja com muitos desafios, como a questão dos abusos sexuais e a falta de vocações”, cuja “experiência pode ajudar a todos”. Deste ponto de vista, ele defende que o Sínodo “é uma experiência totalmente nova”. "Não estávamos acostumados a ouvir. Mas quando você ouve, muitos caminhos inexplorados se abrem. Não precisa ter medo", diz.
Matteo é autor de vários ensaios teológicos muito informativos. No Natal do ano passado, o Pontífice escolheu uma de suas obras, Convertendo Peter Pan, para dar aos membros da Cúria Romana. Em seu novo livro, A Igreja que virá, descreve com lucidez a falta de vocações e o esvaziamento progressivo das paróquias; a perda de confiança das mulheres e dos jovens; a distância, por vezes "estelar", entre homilias e experiências de vida, e ancorando-se numa mentalidade pastoral "que serviu para pessoas que viveram até aos anos 80". O livro não é o resultado de uma crítica anticlerical, mas sim um olhar terno, mas honesto, sobre um problema. Por isso, não ignora aqueles que resistem à mudança e adverte que congelar a tradição "está destruindo-a". “O cristianismo não está na Terra para se salvar, mas para oferecer a todos a possibilidade de salvação através do encontro com Jesus”, diz.
Nesse sentido, reconhece que "muitos olham com espanto e desconfiança para o Caminho Sinodal Alemão", mas assegura que "a tarefa é enorme". "Não se trata de mudar uma simples expressão ou algo pequeno. Francisco, no número 27 da Evangelii gaudium, sonha com uma Igreja missionária capaz de transformar absolutamente tudo em evangelização. Isso pode causar medo e resistência, mas não temos outras opções”, afirma.
Capa do livro A Igreja que Virá, de Armando Matteo (Foto: Divulgação/Editora San Paolo)
Numa análise sociológica impecável, lamenta a perplexidade dos padres diante de um homem que não vê mais o mundo “como um vale de lágrimas, cheio de sacrifícios” ou uma mulher “que não é apenas igreja, filhos e culinária. " "Custou-nos muito começar a falar, por exemplo, de feminicídios. Tenha em mente o que importa para as mulheres hoje. A questão dos salários, a conciliação entre trabalho e família, os direitos…", afirma.
Ele também lamenta que muitos jovens tenham aprendido a viver sem transcendência: "Acho que a Igreja está atrasada nisso. Há uma tendência a adoçar a situação, quando a verdade é que cada vez mais jovens não colocam Jesus na equação da sua felicidade". Por isso, o secretário nos encoraja a nos perguntar: “Que Igreja pretendemos deixar para as gerações que agora estão vindo ao mundo?” Para responder plenamente, é preciso deixar para trás o argumento de que “sempre foi feito assim”: “É justamente o contrário. Nos momentos de maior crise, o cristianismo mudou no diálogo com o mundo”, diz Matteo. O principal impulso para a mudança vem do Papa. “Ninguém mais do que ele exortou os crentes a imaginar e trabalhar por uma Igreja diferente, capaz de acolher cada um com sua história única e muitas vezes cheia de problemas”.
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“A experiência da Igreja na Alemanha pode ajudar”, afirma Armando Matteo, teólogo do Dicastério para a Doutrina da Fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU