19 Novembro 2022
"Traditionis custodes e Desiderio desideravi expressam o desejo de comunhão e a busca inesgotável da unidade da Igreja por parte do Papa Francisco. Ele atua para que a comunhão eclesial não seja quebrada por estéreis polarizações ideológicas, fazendo do rito uma bandeira de divisão. Enganam-se aqueles que afirmam que Francisco pretende destruir a liturgia antiga, ele entende, sim, discipliná-la: 'Abandonemos as polêmicas para ouvirmos juntos o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, continuemos a maravilhar-nos com a beleza da Liturgia' (DD 65)", escreve Goffredo Boselli, liturgista italiano, monge da Comunidade de Bose, na Itália, e colaborador da Comissão Episcopal para a Liturgia da Conferência Episcopal Italiana, em artigo publicado por Vita Pastorale, novembro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com a Carta Apostólica Desiderio desideravi sobre a formação litúrgica do povo de Deus, publicada em 29 de junho passado, o Papa Francisco pretende chegar a todo o povo de Deus "para compartilhar com vocês algumas reflexões sobre a liturgia, dimensão fundamental para a vida da Igreja". Consciente da vastidão do tema, declara que quer "simplesmente oferecer alguns estímulos ou pistas para reflexões que possam ajudar na contemplação da beleza e da verdade da celebração cristã" (DD 1).
Francisco não se coloca mais na dimensão jurídica da celebração como fez anteriormente no Motu próprio Traditionis custodes, mas nem mesmo na dimensão didascálica de um diretório, mas assume uma postura contemplativa que é a mais condizente com a natureza da liturgia. "Contemplar a beleza e a verdade da celebração" significa meditar o mistério de Deus em Jesus Cristo através das próprias modalidades como o mistério se revela e se comunica através das palavras e dos sinais da celebração. Não, no cristianismo não se contemplam os ritos, mas contempla-se a beleza de Cristo e a verdade do seu Evangelho, do qual a liturgia da Igreja se torna humilde servidora.
Assim, Desiderio desideravi é uma ampla meditação, fundamentada na Bíblia, espiritualmente rica, teologicamente densa e com sugestivos ecos patrísticos, que tem como objetivo principal apresentar os conteúdos vitais e as motivações fundamentais da formação litúrgica do povo de Deus.
Francisco pede “para redescobrir todos os dias a beleza da verdade da celebração cristã”. O que está em jogo aqui não é um esteticismo como fim em si mesmo, mas a verdade e a autenticidade evangélica da celebração cristã. O que doa beleza à liturgia é a sua fidelidade à beleza das palavras e dos gestos de Cristo, a sua transparência evangélica, que a torna memória daquela liturgia que o próprio Cristo celebrou com toda a sua vida.
Disso nasce o assombro pelo mistério pascal que é parte essencial do ato litúrgico. E que não é o simples assombro ou encanto diante de uma liturgia celebrada com dignidade, nobreza e beleza, mas é o assombro pelo fascínio da beleza do encontro com Deus, que é um evento que se recebe dele como dom gratuito: "Podemos encontrar Deus através do fato novo da encarnação que na Última Ceia chega ao ponto de querer ser comido por nós" (DD 24).
Para o Papa, seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades sobre uma forma ritual. O problema é, antes de tudo, eclesiológico”, ou seja, refere-se à compreensão do mistério da Igreja: “Não vejo como se pode dizer que a validade do Concílio seja reconhecida – embora me surpreenda um pouco que um católico possa presumir não o fazer – e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum Concilium, que expressa a realidade da Liturgia em estreita ligação com a visão da Igreja admiravelmente descrita pela Lumen Gentium"(31).
A liturgia é a epifania da Igreja e, portanto, não é possível aderir ao Vaticano II e ao mesmo tempo abrigar suspeitas, críticas ou pior, rejeitar a liturgia que o Concílio expressou. Os livros litúrgicos com os quais a Igreja celebra hoje não são simples instrumentos a ser utilizados, mas são a expressão mais significativa e normativa da teologia litúrgica do Vaticano II. Por isso, Francisco confirma o que já foi esclarecido aos bispos na Traditionis custodes: "Os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano" (art. 1). A não aceitação da reforma litúrgica e a falta de compreensão profunda de seu significado teológico e eclesiológico são para o Papa o que impede hoje viver plenamente a liturgia, e por isso "precisamos de uma formação litúrgica séria e vital" (DD 31).
Em várias ocasiões na Carta Apostólica, Francisco relata os trechos mais significativos de um famoso ensaio que o teólogo Romano Guardini consagrou à formação litúrgica, no qual afirma a inutilidade da renovação de textos e ritos se não houver ao mesmo tempo uma sólida formação litúrgica. Segundo o Papa, o estudo da liturgia é a primeira formação litúrgica, e ele reconhece que muito foi feito desde o Concílio até hoje, especialmente nos campos histórico, bíblico, teológico e antropológico. No entanto, o estudo e o conhecimento da liturgia não devem se limitar ao âmbito acadêmico, mas devem atingir, de maneira acessível, todo o povo de Deus.
“Uma maneira de preservar e crescer na compreensão vital dos símbolos da Liturgia é, certamente, cuidar da arte de celebrar” (DD 48). Assim, a Carta Apostólica introduz o tema da ars celebrandi que, como toda arte, requer conhecimentos diversos, em particular o conhecimento do dinamismo espiritual da liturgia, das dinâmicas e peculiaridades da linguagem simbólica. Não há como se improvisar capaz de celebrar com arte e nem se aprende a arte com técnicas de comunicação, mas aprende-se amando a liturgia, entrando no seu mistério e interiorizando o espírito da oração da Igreja.
Mas a arte da celebração não diz respeito apenas aos presbíteros que presidem, mas a toda assembleia que celebra. Cada batizado que compõe a assembleia litúrgica realiza ações, gestos, pronuncia palavras através das quais reza, escuta, canta, confessa sua fé e assim realiza e dá vida à assembleia.
Na conclusão do Desidério desideravi, Francisco pede aos pastores, aos teólogos e aos catequistas "que ajudem o povo santo de Deus a beber daquilo que sempre foi a principal fonte de espiritualidade cristã" (DD 61), e isso para retornar sem cansar-se ao ensinamento do Vaticano II como um todo e, em particular, da imensa riqueza dos princípios fundamentais da Sacrosanctum Concilium. Para isso, Francisco afirma com vigor petrino: "não podemos voltar àquela forma ritual que os Padres Conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram necessidade de reformar, aprovando, sob a orientação do Espírito e segundo sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma” (DD 61).
Traditionis custodes e Desiderio desideravi expressam o desejo de comunhão e a busca inesgotável da unidade da Igreja por parte do Papa Francisco. Ele atua para que a comunhão eclesial não seja quebrada por estéreis polarizações ideológicas, fazendo do rito uma bandeira de divisão. Enganam-se aqueles que afirmam que Francisco pretende destruir a liturgia antiga, ele entende, sim, discipliná-la: "Abandonemos as polêmicas para ouvirmos juntos o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, continuemos a maravilhar-nos com a beleza da Liturgia" (DD 65).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Comunhão e beleza. Artigo de Goffredo Boselli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU