12 Julho 2022
O estupor não é mero “não conhecimento” ou “segredo”, mas “descoberta” da admirável continuidade entre Corpo de Cristo e Corpo da Igreja. Diríamos, portanto, que o “estupor” não é dote “individual”, experiência subjetiva, mas “forma comunitária”. Isso pressupõe uma experiência comum em que nos reconheçamos como “corpo de Cristo” como comunidade eclesial e não simplesmente como indivíduos diante do lado incompreensível de um rito secreto.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado por Come Se Non, 07-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma das passagens centrais da carta apostólica Desiderio desideravi consiste em colocar em primeiro plano o “estupor pelo mistério pascal”, que se distingue do “sentido do mistério” e que, como tal, constitui o coração da experiência litúrgica de relação com o mistério. O estupor diz respeito à “atualização” do mistério no aqui e agora da celebração.
Para entender essa passagem, que abrange os números 24-26, e que abre a parte dedicada à “formação litúrgica”, devemos colocar como premissa uma série de esclarecimentos terminológicos (1), para depois nos determos no modo como o discurso é apresentado na Desiderio desideravi (2) e no modo como isso serve de prelúdio para a referência a Guardini e ao conceito de “formação litúrgica” (3).
A categoria de “estupor” tem sólidas raízes bíblicas. Estupor é o que desperta a palavra de Jesus, a sua ação, os seus milagres, o seu fim como novo início. Em particular, em relação à eucaristia, há o estupor pelas palavras de Jesus sobre o “pão de vida” (Jo 6) e nos dois de Emaús (Lc 24), em que se misturam a relação com a sua morte e ressurreição e com a “traditio” do pão e do cálice, como relação de fé com a sua morte e a sua vida. Esse núcleo “estupefaciente”, que diz respeito ao coração do mistério pascal e diante do qual o estupor beira a incapacidade de compreender e a graça da fé, enxerta-se o uso da referência “estupefaciente” à eucaristia.
a) O “estupor” como categoria litúrgica
Como termo “litúrgico”, o estupor é uma categoria bastante recente. Como bem diz C. Giraudo, no seu “Stupore eucaristico” (LEV, 2003), podemos rastrear a utilização da expressão “estupor eucarístico” até Ecclesia de eucharistia, de João Paulo II (EE 6). Com essa expressão, o texto quer sublinhar a correlação entre o dom eucarístico e a experiência eclesial, entre a dependência da eucaristia por parte da Igreja e a dependência da Igreja por parte da eucaristia.
No texto, o termo aparece cinco vezes, sempre nesse significado, mais orientado à adoração do que à celebração. A dinâmica ritual, no “estupor eucarístico”, aparece na Ecclesia de eucharistia como âmbito problemático, cujos abusos devem ser controlados: e será precisamente a partir da Ecclesia de eucharistia que nascerá o documento Redemptionis sacramentum, cuja intenção de evitar abusos eucarísticos viria a configurar como “abuso” até mesmo a utilização de expressões como “assembleia celebrante” ou “comunidade celebrante”!
b) A relação com o “mistério”
Em relação ao uso que a Desiderio desideravi introduz do termo “estupor”, é totalmente nova a ênfase da diferença com a expressão “sentido do mistério”. Aquilo que uma súbita negação do coração do Vaticano II havia induzido primeiro com o já mencionado Redemptionis sacramentum (2004) e depois, muito mais gravemente, com o motu proprio Summorum pontificum (2007) levou a confundir “estupor eucarístico” com “sentido do mistério”. E a reduzir a experiência da eucaristia a uma rígida forma exterior paralela a uma devoção interior sem relação com o rito. A Desiderio desideravi nos diz que essa ideia de “sentido do mistério” contradiz o caminho com o qual o Movimento Litúrgico e o Concílio redescobriram o sentido teológico da liturgia.
c) A herança escolástica
Deve-se acrescentar, como elemento adicional, que uma longa tradição, alimentada pela linguagem escolástica, havia contribuído primeiro para concentrar não apenas toda a atenção “devota” na “consagração”, mas também para perceber todo o “estupor” apenas na misteriosa presença da substância do corpo e sangue de Cristo sob as espécies do pão e do vinho.
A progressiva concentração do olhar eclesial no detalhe das espécies comprimiu o estupor em um único ponto, desviando a vista e a oração de toda a ação de Cristo e da Igreja. Parece-me que, precisamente nesse ponto, o texto da Desiderio desideravi faz algumas passagens muito relevantes, que merecem ser consideradas de modo específico.
O texto da Desiderio desideravi chega ao discurso sobre o “estupor” depois de 23 parágrafos, nos quais repassa o “sentido teológico da liturgia”, recuperando o seu valor cristológico e eclesiológico, e mostrando-a como “antídoto” contra a mundanidade espiritual. Apreciada apenas nessa experiência de beleza, a liturgia deve assegurar a experiência do “estupor”, que é mais profundo do que a correção formal e do que a elaboração interior.
Estupor é “irrupção” do mistério pascal, como síntese de encarnação e redenção. Por isso, é preciso salvaguardar o estupor litúrgico das formas exteriores e interiores que tendem a dissolvê-lo em algo diferente de si mesmo. O texto, no número 25, detém-se com precisão na diferença entre “estupor” e “sentido do mistério”: o texto, a propósito desse “sentido do mistério”, afirma que:
“Entre as supostas acusações contra a reforma litúrgica, está também a de tê-lo – diz-se – eliminado da celebração. O estupor de que falo não é uma espécie de desorientação diante de uma realidade obscura ou de um rito enigmático, mas é, ao contrário, a maravilha pelo fato de que o plano salvífico de Deus nos tenha sido revelado na Páscoa de Jesus” (DD 25).
Aqui, fica claro que o estupor não é mero “não conhecimento” ou “segredo”, mas “descoberta” da admirável continuidade entre Corpo de Cristo e Corpo da Igreja. Diríamos, portanto, que o “estupor” não é dote “individual”, experiência subjetiva, mas “forma comunitária”. Isso pressupõe uma experiência comum em que nos reconheçamos como “corpo de Cristo” como comunidade eclesial e não simplesmente como indivíduos diante do lado incompreensível de um rito secreto. Isso é tão verdadeiro que se pode inverter o julgamento expressado levianamente em relação à Reforma Litúrgica:
“Se a reforma tivesse eliminado aquele ‘sentido do mistério’, mais do que uma acusação, seria uma nota de mérito” (DD 25).
Isso implica, como conclusão do raciocínio, uma passagem muito importante, ou seja, aquela entre “estupor” e “símbolo”. Eis o breve parágrafo 26, que condensa a ideia em três linhas, que se tornam importantes para o restante:
“O estupor é parte essencial do ato litúrgico, porque é a atitude de quem sabe que se encontra diante da peculiaridade dos gestos simbólicos; é a maravilha de quem experimenta a força do símbolo, que não consiste em referir-se a um conceito abstrato, mas em conter e expressar na sua concretude o que ele significa” (DD 26).
Com essa expressão, completa-se a distinção entre o “estupor” e o vago “sentido do mistério”. O estupor é “simbólico” porque faz parte do próprio ato litúrgico. Não está “diante” do ato, mas está “dentro” da ação litúrgica. Por isso, o texto, tendo chegado a essa compreensão simbólica da ação ritual, deve necessariamente expor toda a parte longa na qual a “formação litúrgica” obterá o máximo da atenção. Para entrar nesse campo, porém, a Desiderio desideravi retorna àquele que não é exagero considerar como o “texto instituinte” do tema “formação litúrgica”, ou seja, o precioso livreto que R. Guardini publicou em 1923, que traz a expressão “Liturgiche Bildung” como título.
É claro que, para fechar o círculo da argumentação, a Desiderio desideravi deve retornar à origem da questão litúrgica, tal como formulada por R. Guardini nas primeiras décadas do século XX. E por isso dedica, de um modo que não tem precedentes, nada menos do que cinco importantes citações a dois textos fundamentais, que estão no início e no fim da carreira de Guardini. “Formação litúrgica”, de 1923, e a famosa carta ao bispo de Mainz, de 1964. À distância de 40 anos, Guardini ressalta alguns aspectos decisivos para a recuperação da experiência litúrgica:
a) A liturgia deve solicitar a experiência integral do ser humano, na sua unidade de interioridade e exterioridade;
b) Sem essa “formação”, que não é apenas formação ao ato litúrgico, mas também formação por parte da ação ritual, as reformas de textos e gestos serão de pouca utilidade;
c) É a capacidade simbólica que deve ser recuperada no centro da ação ritual e eclesial. Por isso, o cristão exige uma formação específica.
d) A arte de celebrar é uma disciplina integral, não pode se reduzir nem a formalismos exteriores nem a imediações sempre novas.
O conjunto dessas intuições amadureceram nos 60 anos anteriores ao Concílio e encontraram um primeiro desenvolvimento nos 60 anos posteriores ao Concílio. Ao relançar com força esse projeto original, a Desiderio desideravi reabre o espaço para uma reforma litúrgica que saiba ser um “instrumento para outra coisa”: ou seja, para uma renovação na experiência do mistério pascal e da vida cristã, vivida no símbolo por parte da comunidade antes que dos indivíduos, na profecia da relação eclesial e do testemunho mundano. Ninguém pode confundir esse “estupor pelo mistério pascal” com a nostalgia de um formalismo sem futuro.
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Liturgia, estupor e formação na releitura de “Desiderio desideravi”. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU