Nova clareza da carta apostólica Desiderio desideravi: 10 proposições sobre a reforma necessária, mas não suficiente. Artigo de Andrea Grillo

(Foto: Reprodução | CatholicNet)

27 Julho 2022

 

Há muito tempo era necessário que uma voz de autoridade dissesse uma palavra clara sobre um equívoco que o século XX criou em torno da “questão litúrgica”. O que lemos na carta apostólica Desiderio desideravi corresponde bem àquilo que era desejável escutar há algumas décadas.

 

O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, publicado no blog Come Se Non, 25-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

“Não podemos voltar àquela forma ritual que os Padres conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram a necessidade de reformar, aprovando, sob a orientação do Espírito e segundo a sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma” (Desiderio desideravi, n. 61).

 

Há muito tempo era necessário que uma voz de autoridade dissesse uma palavra clara sobre um equívoco que o século XX criou em torno da “questão litúrgica”. O que lemos na carta apostólica Desiderio desideravi corresponde bem àquilo que era desejável escutar há algumas décadas.

 

Tento apresentar aqui a sua lógica em uma série de 10 proposições, para que apareça de modo abrangente não apenas o mérito do texto, mas também as consequências teológicas e históricas das suas afirmações:

 

1. A questão litúrgica surgiu no início do século XIX, há quase 200 anos. Desde então, nas palavras proféticas de A. Rosmini na Itália e P. Guéranger na França, manifestou-se a consciência de que a liturgia estava passando por uma crise profunda, da qual era preciso sair com novas evidências, novas formas de vida, novas práticas. A crise foi reconhecida nos anos 1830: portanto, ela não é fruto nem do Vaticano II nem de 1968!

 

2. O nascimento oficial do Movimento Litúrgico ocorreu, no início do século XX, precisamente com esta dupla intenção: a redescoberta da tradição litúrgica e a reinserção da liturgia como “fonte” de vida cristã e da experiência espiritual. A Primeira Guerra Mundial foi fundamental, pois abria uma demanda nova de interesse e de estudo pelas práticas rituais.

 

3. Pelo menos até os anos 1950, a “formação litúrgica” era o centro das atenções, em relação a um papel da “reforma”, inicialmente bastante secundário, mas que ganhou vigor fortemente com as decisões de Pio XII posteriores à Segunda Guerra Mundial. Desde então, a reflexão sobre a “reforma” levou a melhor, graças ao Vaticano II e ao longo e detalhado trabalho pós-conciliar.

 

4. Essa passagem, que poderíamos definir como “do primado da educação ao primado da reforma”, foi necessária e, eu diria, quase fisiológica. Mas, com a mesma naturalidade, após cerca de 40 anos de trabalho quase totalmente voltado à realização dos novos ritos, no período de 1948 a 1988, voltou à baila a questão mais antiga, ou seja, a da formação. Precisamente nesse limiar final de 1988 se situaram três eventos simbólicos de uma transformação imprevisível: a comemoração dos 25 anos da Sacrosanctum Concilium (Vigesimus quintus annus), o primeiro rito inculturado (Missal Romano para as Dioceses do Zaire) e o cisma lefebvriano.

 

5. A partir de então, a questão litúrgica assumiu cada vez mais a forma de uma “progressiva atenuação” da necessidade da reforma. À pergunta sobre a “necessidade da reforma litúrgica”, o magistério deu respostas diferenciadas, mas marcadas por uma cautela e relutância cada vez maiores. Enquanto se reafirmava formalmente a necessidade da reforma, ela se tornava substancialmente contornável, dispensável, evitável, superável, quase em defesa da “liberdade” de celebrar como se não tivesse existido nenhum Vaticano II.

 

6. Por mais de 30 anos, reforçados em 2007 pelo teor do motu proprio Summorum pontificum, um certo número de católicos se convenceu (ou foi convencido) da não necessidade da reforma: com efeito, quando um documento oficial assevera que todos os ritos anteriores à reforma podem ser usados também depois dela, de fato, ele redimensiona o alcance e a evidência dessa escolha conciliar. Ele permite que as pessoas se achem católicas independentemente do Vaticano II e das suas consequências. Assim, garantia-se do alto uma imunização do catolicismo do Vaticano II, que assumiu formas pesadas em diversas nações.

 

7. Mas, apesar das aparências, não é esse o ataque mais insidioso à reforma litúrgica. A reforma sofre muito mais não pela negação descarada da sua necessidade, mas pelo fato de ser julgada “suficiente”. Desse modo, de fato, introduz-se uma cesura em relação ao movimento litúrgico, que sabia bem que, embora honrando a tarefa da reforma, a verdadeira finalidade era a “formação do povo à actuosa participatio”. Com lucidez, R. Guardini escreveu sobre isso de 1918 a 1964: trata-se de “reaprender o ato de culto”: este seria o verdadeiro propósito da reforma litúrgica.

 

8. Assim, ao lado do ataque à reforma mediado pela contestação da sua necessidade, houve outro ataque, muito menos evidente, mas muito mais insidioso, que consistiu em considerar, ingênua ou culposamente, que a reforma era suficiente como tal para resolver a questão litúrgica. O primeiro ataque veio dos tradicionalistas (que queriam negar a sua necessidade), enquanto o segundo veio dos burocratas e dos funcionários (que se iludiram e iludiram os outros acerca da sua suficiência). Por outro lado, a reforma é um “ato central” controlável, enquanto a formação a ser acrescentada a ela é um “ato descentralizado” e muito mais contingente.

 

9. Com a Desiderio desideravi, fica claro que esse equívoco é totalmente removido. Não caímos mais na armadilha por meio da qual o cansaço e a lentidão da formação se tornam o álibi para contestar a necessidade da reforma. Com plena consciência e com grande lucidez, para a Desiderio desideravi a única lex orandi vigente se torna “texto e contexto normativo” para desenvolver a “via experimental” mediante a qual a ação ritual dá forma ao sujeito eclesial. A reforma, com toda a sua necessidade, permanece insuficiente se não se tornar prática ritual nova, compartilhada por todo o povo. A contingência dessa passagem exige um cuidado particular, que não é apenas “apologética da reforma”, mas “contingente experiência ritual”.

 

10. Se o debate sair dos baixios da disputa sobre a “necessidade da reforma” e permitir uma séria consideração da sua “insuficiência” formativa, os novos ritos poderão se tornar mediação linguística da carne e do sangue de Cristo e da Igreja, o que só poderá ocorrer mediante uma formação litúrgica para a participação ativa de todo o povo de Deus no contexto de uma ação ritual reconhecida como linguagem comum, sem delegações clericais a terceiros. A perspectiva da Sacrosanctum Concilium se espelha agora na Desiderio desideravi, mas com a nova consciência de uma reforma já reconhecida como necessária e irreversível, mas também julgada como “não suficiente” em relação à tarefa primordial da liturgia de constituir o “fons” e o “culmen” de toda a ação da Igreja. Uma nova liturgia que não conseguisse se tornar “fons comum” de toda a Igreja, mais cedo ou mais tarde, acabaria vendo a sua própria necessidade novamente posta em questão.

 

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