08 Novembro 2022
"Se o Deus da revelação cristã ainda possa ter algo a ver com a vida dos homens e das mulheres hoje é uma questão que se torna cada vez mais candente. Além disso, é inútil tentar enfrentá-la de um ponto de vista puramente "pastoral", resvalando no perigo de uma dicotomia entre teologia e ação eclesial ", escreve Francesco Cosentino, teólogo e padre italiano, membro da Congregação para o Clero e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por revista Jesus, edição de novembro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por que o Evangelho pregado pelas Igrejas cristãs não parece mais representar uma verdadeira “palavra de vida” para os nossos contemporâneos? O que há que não funciona? Trata-se apenas de um problema de comunicação, do tipo "os padres usam palavras e termos que as pessoas não entendem e não sentem como envolventes"? Ou se trata de uma questão pastoral, do tipo “temos que mostrar um rosto mais acolhedor e temos que ir onde as pessoas vivem em vez de esperar que venham à igreja”?
Claro que tudo isso existe. Mas ao se folhear as páginas do novo livro de Dom Francesco Cosentino, Dio ai confini. La Rivelazione di Dio nel tempo dell'irrilevanza Cristiana (Deus nas fronteiras. A Revelação de Deus no tempo da irrelevância cristã, em tradução livre, publicado pela San Paolo), entende-se que a questão é bem mais profunda e radical. E é principalmente teológica, espiritual e existencial. Antecipamos nestas páginas a introdução do volume, em que o autor traça os contornos do dilema.
Numa conversa sobre o futuro do mundo e da Igreja, que aconteceu em Roma em 1982, foi perguntado a Karl Rahner quais fossem para ele os problemas teológicos mais urgentes; o teólogo alemão respondeu sem hesitar que, afinal, eram os mesmos de sempre: “Os problemas teológicos mais antigos, que são, afinal, também os mais atuais: como é possível uma experiência autêntica de Deus? Como posso saber verdadeiramente que Deus se revelou, em Jesus Cristo, de forma absoluta e definitiva?”.
O eco dessas perguntas também retorna hoje: ainda faz sentido falar de Deus em nosso tempo? A questão parece longe de ser óbvia, enquanto herdamos a estrutura histórica do século XX que, atravessada por catástrofes e mudanças radicais, "liquidou" a questão de Deus ou, no máximo, a relegou aos contornos da vida e de uma religiosidade privada. Deus está agora nas beiras da vida, nas margens da história.
Trata-se de um desafio que pede que a reflexão teológica saia do canto, tomando consciência do fato de que "o cristianismo já está agora em posição minoritária: enquanto ainda tem a pretensão de representar a todos, na verdade tende a se tornar uma seita, da qual ninguém entende mais a linguagem e a gestualidade” (Elmar Salmann).
Espontaneamente tende-se a pensar que tal exercício teológico tem a ver com questionamentos intelectuais elaborados e abstratos, ao passo que, ao contrário, o falar de Deus nunca está dissociado de seu dizer-se/dar-se na experiência como uma realidade que abraça a totalidade da existência humana e lugar que lhe confere sentido e interpretação. Tanto mais que, especialmente em nosso contexto, pode-se afirmar que o que faltou não é uma qualquer demonstração da existência de Deus, mas sim a sensibilidade interior para a relação com o que nos supera: "Na questão sobre Deus nunca é a prova que falta. É uma questão de gosto.
Perdeu, pelo menos em aparência, o gosto de Deus: esse é o diagnóstico mais triste e alarmante sobre a nossa época” (Henri De Lubac).
A teologia da revelação está sempre estreitamente ligada àquela experiência que denominamos fé, num exercício que tenta oferecer um olhar diferente sobre a vida e a história, a partir daquela excedente surpresa de Deus que se revelou em Jesus Cristo: Deus se manifesta como Deus somente em seu doar-se e confiar-se ao tempo e ao homem, em seu morar junto às casas dos homens por ser Ele mesmo Deus plenamente e profundamente humano. Nesse sentido, toda reflexão teológica é uma teologia prática fundamental, que une a experiência de Deus e a experiência do homem, e que Rahner soube encarnar com estas palavras:
"Basicamente, queremos apenas refletir sobre esta simples pergunta: o que é um cristão e por que hoje podemos viver este ser cristão com honestidade intelectual?”. Enquanto vivemos uma hora “caracterizada pelo escurecimento da luz celestial, pelo eclipse de Deus” (Martin Buber), é principalmente a própria possibilidade de falar de Deus ao homem contemporâneo que deve ser enfrentada novamente.
A palavra "Deus", de fato, enquanto nos remete à transcendência inefável do Mistério divino, é também a palavra gravada no coração da pessoa humana e da sua história e, portanto, palavra que nos supera: evento que, ao mesmo tempo que aponta o caminho, abre questionamentos, que oferece a paz apenas ao preço de uma reviravolta das humanas seguranças e que convida à superação de si mesmo e à hospitalidade de uma alteridade surpreendente.
Na complexa situação pós-moderna esta é ainda a tarefa da teologia contemporânea:
"Assegurar que Deus seja ouvido novamente como Deus: despedaçando a consciência histórica moderna, desmascarando as presunções da racionalidade moderna, exigindo atenção para todos aqueles que foram esquecidos ou marginalizados no projeto moderno" (David Tracy). Em primeiro lugar, trata-se de superar os limites estreitos de uma metafísica que coloca Deus nas categorias dogmáticas do ser, para chegar à especificidade do Deus cristão que, como amor e relação, se configura como um "excesso transgressivo", um dom que supera e surpreende.
É isso que torna Deus "mais que necessário" e o resgata da marginalização a que há tempo foi condenado: não se trata de um monólito empoleirado no alto dos céus e no esplendor de sua divindade, mas um Deus-Amor que desce entre nós e cuida do nosso destino. Evento cristão por excelência, aquele da Revelação de Deus em Cristo Jesus e no Espírito Santo é o acontecimento que manifesta não apenas "o que Deus faz", mas também e sobretudo "o que Deus é": Ágape, Deus por nós.
A centralidade da Revelação, para a teologia, é um fato incontestável: crer significa ser atraídos e depois transportados para a verdade e beleza da Revelação, para poder contemplar o próprio mistério do Deus Uno e Trino.
E a Revelação, neste sentido, representa a síntese de todo o conhecimento teológico e do ato de fé: a Palavra de Deus se cumpre e se realiza na Revelação de Deus em Jesus Cristo, de modo que pode compreender tudo do evento de fé e de teologia.
É claro que "repropor a questão de Deus e seu significado para o hoje pode parecer uma operação quase museológica, que se prolonga no pano de fundo de um passado religioso" (Carmelo Dotolo) que já não existe mais.
No entanto, se o retorno à teologia da revelação poderia sugerir a ideia de uma espécie de viagem para trás com o único propósito de revisitar as páginas de uma reflexão do passado, na realidade, reconsiderar os conteúdos e as linguagens que aprofundaram o coração do mistério cristão, apresenta-se aos nossos olhos como uma tarefa tão profícua quanto urgente; não se trata de contemplar uma riqueza "que foi", mas de debruçar-se sobre o horizonte presente e futuro do cristianismo perguntando-se se a questão sobre Deus ainda seja tão determinante e decisiva que pode ser colocada entre as grandes perguntas da existência e, ao mesmo tempo, abordando algumas outras perguntas: ainda hoje é possível falar do Deus que nos falou primeiro? Ainda é possível falar de Deus hoje, em um mundo ao qual ele se tornou estranho ou indiferente? A Palavra de Deus plenamente manifestada em Jesus ainda é relevante para as mulheres e os homens de hoje e para a sua existência?
Repercorrer os passos da teologia da revelação e seu caminho progressivo até os desdobramentos do Concílio Vaticano II é uma empreitada que, por um lado, ajuda a "fazer um balanço" sobre a passagem da apologética moderna para a teologia do século XX e sobre seu imprescindível aporte para a recuperação da categoria de história e da cristologia; por outro lado, questiona as possibilidades, não apenas linguístico-comunicativas, de colocar em prática hoje uma teologia da revelação, no contexto de um mundo pós-moderno e plural.
Trata-se de um contexto social e cultural definido por muitos como pós-cristão e ao mesmo tempo pós-ateu, no qual a crise da fé e a discussão sobre o futuro possível do cristianismo representam um estímulo para a reflexão teológica e não pode deixar de sê-lo também para a vida da comunidade crente. Essa questão foi colocada por Paul Tillich já algumas décadas atrás e precisa ser abordada novamente hoje em toda a sua radicalidade: "O que me preocupa mais profundamente nos últimos anos é a questão: a mensagem cristã (especialmente a pregação cristã) ainda é relevante para as pessoas do nosso tempo? E se não for, qual a causa? E isso se reflete na mensagem do próprio cristianismo?”.
No entanto, é necessário situar o questionamento num horizonte teológico o mais claro possível: em referência ao Deus de Jesus Cristo, ou seja, que se revela em Jesus Cristo e nele nos entrega "a boa notícia", falar de relevância não significa reivindicar um poder religioso da fé cristã nos espaços do mundo, mas sim a capacidade do cristianismo de liberar e desprender na existência de nossos contemporâneos a vida que o Evangelho transmite. Compreende-se desde agora, isto é, que o horizonte em que se mover não é aquele que corresponde ao esquema da apologética clássica, puramente preocupada em transmitir a verdade da fé e o conjunto de suas doutrinas, mas aquele da teologia do século XX e do Concílio Vaticano II, que entende a revelação de Deus como sua própria autocomunicação de amor e, portanto, o encontro e o diálogo que Ele estabelece com os homens e com a história.
A questão não se limita a uma reflexão teórica, mas investe o horizonte existencial. Isso havia sido claramente intuído por Karl Rahner, que em uma conferência realizada em 22 de julho de 1982 na Faculdade Teológica de Würzburg, falou de "uma teologia com a qual se pode viver", ou seja, se questionou se existe uma teologia não estabelecida sobre ideias abstratas relativas a Deus, mas sobre aquele Deus que se revelou para tornar humanamente possível e vivível a vida humana.
Rahner não nega a importância de uma teologia acadêmica e científica, diferenciada em muitas disciplinas e setores e com um imenso campo de investigação; não obstante, uma teologia que está ciente de ter um caráter supracientífico, para o jovem teólogo coincidirá com a concentração sobre as questões fundamentais, para chegar a uma teologia que o sustente na vida de uma pessoa humana e de um crente: "Em sua teologia, para que seja digna de ser vivida, ele deve ter refletido com todo o empenho de sua existência e obviamente também com sua racionalidade sobre o que é propriamente a revelação; sobre que relação existe entre a história das religiões e a história de uma revelação particular e regional; se e como ainda hoje seja possível falar seriamente sobre Deus em um mundo secularizado e positivamente cético e como se possa fazer entender o que entendemos dizer com esse termo; sobre como fazer para descobrir em si, no homem da vida cotidiana, um algo como a experiência de Deus [...]. Se seria possível seriamente afirmar que um homem, para ser plenamente humano e cristão, deve ter algo a ver com uma Igreja e com a sua burocracia e praticar justamente religiosamente os ritos que estão em uso na Igreja Católica Romana”.
Perguntar-se se o cristianismo é ou pode ser relevante para o homem de hoje significa perguntar-se sobre sua capacidade não de transmitir uma verdade intelectual, abstrata e separada da vida, mas de comunicar a vida que Deus nos revelou e nos doou em Jesus Cristo, e que habita em nós e na história através do Espírito. Trata-se de compreender plenamente, com todas as implicações existenciais do caso, que a novidade inédita do cristianismo é esta: a vida é possível, apesar de tudo. De fato: “É precisamente esta coisa inaudita a ouvir que fala do Evangelho: existe uma Vida que não é delimitada pelo nada. O Evangelho é o anúncio de que é possível viver verdadeiramente, portanto um anúncio bom a ser entendido, se é verdade que todo ser humano deve enfrentar, pelo menos uma vez por dia, a única verdadeira pergunta: qual é o sentido da minha vida? Quem lhe dirá qual vida vale a pena ser vivida?" (Dominique Collin).
Se o Deus da revelação cristã ainda possa ter algo a ver com a vida dos homens e das mulheres hoje é uma questão que se torna cada vez mais candente. Além disso, é inútil tentar enfrentá-la de um ponto de vista puramente "pastoral", resvalando no perigo de uma dicotomia entre teologia e ação eclesial. A pergunta é teológica, pois pretende cavar e aprofundar não só e não tanto uma crise de pensamento, mas os obstáculos culturais, existenciais e espirituais que impedem a vida atual de se abrir à relação com Deus.
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Quando Deus é colocado no canto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU