14 Outubro 2022
"Basta-nos o que o Concílio Vaticano II disse, escreveu e pôs em ação ou chegou a hora de almejar um Concílio Vaticano III? Esse questionamento deve, em primeiro lugar, ser libertado da contraposição ideológica que, não raro, anima o debate por vezes polêmico em torno do Concílio. Na realidade, a pergunta é profundamente teológica e pastoral e, portanto, exige uma resposta que vá além da emotividade", escreve Francesco Cosentino, teólogo e padre italiano, membro da Congregação para o Clero e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 13-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma coincidência feliz nos faz colocar lado a lado as sugestões e os impulsos daquele grande evento eclesial que foi o Concílio Vaticano II com o aniversário da morte do cardeal Carlo Maria Martini, uma das figuras mais importantes da Igreja italiana (e não só). Sessenta anos atrás, iniciava-se o concílio. E dez anos atrás morria Martini, cujo legado bíblico, pastoral e espiritual gerou sonhos e visões no coração de muitos crentes e que permanece vivo até hoje.
A ocasião dessa coincidência oferece-nos o estímulo para uma reflexão que pode parecer “desconfortável”, mas que resulta necessária. Trata-se de nos situarmos em um lugar de fronteira, onde os estímulos recebidos da riqueza da assembleia conciliar, ao invés de nos trancarmos na tranquilidade de uma meta alcançada, nos empurram para novas perguntas e pesquisas incessantes buscas.
Trata-se, em outras palavras, de deixar-se levar por aquele permanente dinamismo de graça que o Papa Francisco tantas vezes lembra e recomenda à nossa atitude eclesial e que, como afirma na Evangelii gaudium, pode ser bloqueado por estruturas eclesiais imóveis e ultrapassadas, bem como por atitudes inspiradas na monotonia pragmática de quem leva adiante as coisas de sempre sem paixão, sem esperança e com uma tristeza adocicada.
Por isso, perguntamo-nos: basta-nos o que o Concílio Vaticano II disse, escreveu e pôs em ação ou chegou a hora de almejar um Concílio Vaticano III? Esse questionamento deve, em primeiro lugar, ser libertado da contraposição ideológica que, não raro, anima o debate por vezes polêmico em torno do Concílio. Na realidade, a pergunta é profundamente teológica e pastoral e, portanto, exige uma resposta que vá além da emotividade.
A questão, que volta de vez em quando no debate eclesial, surgiu várias vezes, sobretudo como efeito daquela visão clarividente, aberta e profética que o Cardeal Martini encarnava. Em particular, em seu discurso proferido no Sínodo dos Bispos para a Europa, em outubro de 1999, o então arcebispo de Milão estava convencido de que algumas questões doutrinais e pastorais, em uma época marcada pelo pluralismo e pelas mudanças cada vez mais rápidas, voltam em continuação como problemáticas que os bispos são chamados a enfrentar, apesar dos aprofundamentos de um evento eclesial como o Vaticano II.
Martini se refere a temas concretos e específicos: "Penso na escassez, em alguns lugares já dramática, de ministros ordenados e na crescente dificuldade para um bispo de prover ao cuidado das almas em seu território com um número suficiente de ministros do Evangelho e da Eucaristia; a algumas questões relativas à posição da mulher na sociedade e na Igreja, a participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, a sexualidade, a disciplina do matrimônio, a práxis penitencial, as relações com as Igrejas irmãs da Ortodoxia e, mais em geral, a necessidade de reviver a esperança ecumênica; a relação entre democracia e valores e entre leis civis e lei moral. Não poucos desses temas já surgiram em Sínodos anteriores, tanto gerais como especiais, e é importante encontrar lugares e instrumentos adequados para seu atento exame”.
Não surpreende a capacidade de leitura crítica de nosso tempo feita pelo cardeal; o que parece quase desconcertante, por outro lado, é que se trata de temas que mantêm uma atualidade surpreendente e que, não por acaso, também são centrais na agenda do Papa Francisco. De fato, existem questões não resolvidas e isso não depende tanto da incompletude do Vaticano II e de sua doutrina, mas paradoxalmente precisamente do que o Concílio nos entregou em termos de método sobre a relação entre fé e mundo.
De fato, dos documentos conciliares herdamos uma visão dialógica, histórica e dinâmica da revelação de Deus na história e, consequentemente, um estilo eclesial de viver no mundo marcado pela escuta de seu contínuo dinamismo. E se o tempo, a cultura, as linguagens e as sensibilidades mudam, e com eles mudam também as problemáticas existenciais, eis que não é mais suficiente um código fixo, uma norma geral, uma única leitura da realidade.
A relação entre doutrina e carne, entre doutrina e tempo, entre doutrina e história nos entrega ao esforço do discernimento ao qual o Papa Francisco nos convida. Então, Vaticano III ou não? A pergunta fica de alguma forma “pendurada” dentro do esforço de discernimento ao qual o Papa Francisco nos convida, sabendo que a doutrina cristã “tem corpo e carne”, mantém juntos a clareza dos princípios com a realidade concreta da vida e da história.
Por um lado, é preciso dizer que o Concílio Vaticano II ainda não encontrou sua plena implementação e, devido a inúmeras contingências, inclusive eclesiais, alguns de seus impulsos foram travados ao longo dos anos, às vezes bloqueados pelo medo e por uma certa falta de liberdade interior e de profecia evangélica; não pode ser negada a lacuna entre as expectativas do Concílio e a situação atual ou o passado recente da Igreja. Fisiologicamente, um concílio realmente começa a se concretizar apenas algumas décadas depois e, para muitos observadores atentos, não escapa ao fato de que o pontificado de Francisco é certamente um sinal evidente de uma primeira concretização daquelas perspectivas.
O próprio papa, conversando com os diretores das revistas culturais europeias dos jesuítas, afirmou que “há ideias, comportamentos que nascem de um restauracionismo que basicamente não aceitou o Concílio. O problema é justamente este: que em alguns contextos o Concílio ainda não foi aceito. Também é verdade que é preciso um século para que um concílio se enraíze. Ainda temos quarenta anos para fazê-lo criar raízes, então!”
Ao mesmo tempo, enquanto todas as análises – não apenas sociológicas – concordam em descrever os traços de um contexto plural, em que a vida das pessoas se articula ao longo de mapas existenciais e escolhas diversificadas, é preciso admitir que alguns problemas voltam a aparecer: temos uma visão corajosa sobre a figura do padre do futuro e sobre a ministerialidade dos leigos na Igreja? Fizemos as pazes com a emancipação da mulher a ponto de gerar uma visão clara sobre sua posição na Igreja e nos âmbitos de governo? O caminho inaugurado pela Amoris laetitia realmente nos entregou uma nova hermenêutica sobre as questões da sexualidade e do casamento? Esses e outros são temas que abordaremos espontaneamente com serenidade quando o Concílio Vaticano II for recebido interna e pastoralmente, ou são necessárias novas avaliações e escolhas mais ousadas a partir de um novo Concílio?
A pergunta permanece em aberto e nos entrega ao discernimento, na forma sinodal de ser Igreja na qual ainda somos chamados a caminhar, questionar-nos e sobretudo escutar-nos reciprocamente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Concílio Vaticano III? Uma pergunta aberta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU