16 Setembro 2022
O modelo agrícola voltado para a exportação de grãos cresceu mais de 450% nas últimas décadas, enquanto a produção de arroz, feijão e trigo encolheu. O país produz menos comida e mais commodities.
A reportagem é de Cristina Ávila, publicada por ExtraClasse, 14-09-2022.
Quem assumir a presidência da República em janeiro de 2023 terá pela frente o desafio de equacionar um modelo agrícola que abandonou quase por completo a produção de alimentos fundamentais para a saúde e priorizou as monoculturas e a exportação.
O fracasso desse modelo, que, na sua maioria, produz commodities, riqueza para poucos, além de muita degradação ambiental, pode ser medido também na escalada da fome e na alta dos preços dos alimentos. Hoje, 126,2 milhões de brasileiros não têm garantidas as refeições todos os dias em quantidade e qualidade necessárias, ou seja, mais de um terço da população está exposta à fome no país das supersafras de grãos.
As lavouras de grãos destinadas majoritariamente às exportações devem atingir 272,5 milhões de toneladas no ciclo 2021/2022, cultivadas em 73,8 milhões de hectares, o que representa um crescimento de 6,7% em volume e 4 milhões de hectares a mais em relação à temporada anterior, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
Para se ter uma ideia da expansão deste setor, entre as safras de 1976/77 e 2020/21, por exemplo, a produção de soja cresceu 454%, enquanto o país perdeu 72% das áreas de produção de arroz, 35% de feijão e 14,7% de trigo.
Outra baixa: o cultivo da mandioca. A produção dessa planta nativa do Brasil, que não exige tantos insumos, despencou em 10 anos, de 23 milhões de toneladas em 2000 para 14,5 milhões em 2020. “Ou seja, menos 37% em 20 anos”, ressalta o biólogo Paulo Brack, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Um detalhe importante neste cenário marcado pela redução da oferta de alimentos: a população brasileira mais do que dobrou no período, tendo passado de 112 milhões para 215 milhões de pessoas.
“O agro não produz alimentos, mas commodities”, afirma Brack, referindo-se às matérias-primas agrícolas que geram lucros nas bolsas de valores internacionais. Ele ressalta a prioridade dos cultivos voltados para a exportação para alimentar animais em sistemas de confinamento industriais em outros países, em detrimento do mercado interno que alimenta a população brasileira.
Paulo Brack fez estudos com base nos dados da Conab e constatou em números o paradoxo de um país que “exalta sua biodiversidade e aposta em um modelo agrícola predador: apenas a monocultura da soja já cobre mais de 40 milhões de hectares do território e converte biomas, do Pampa à Amazônia, em uma só cultura”.
Um dos reflexos desse modelo agrícola, em um cenário de agravamento da crise econômica, é o descontrole dos preços. O litro do leite longa-vida, que já estava oscilando em R$ 8,00, teve um aumento em julho de 14,21%. A alta acumulada no ano é uma das maiores, com aumentos semanais: 79,79%. As frutas ficaram 2,99% mais caras, e o frango em pedaços foi majorado em 3,08%.
A alta em 12 meses, a contar de julho, foi impulsionada por saltos de 39,7% no preço do arroz e 34,3% no das carnes. O óleo de soja também liderou, com disparo de 84,3%. O feijão variou de acordo com o tipo, 42,4% mais caro.
Em geral, os preços dos produtos dos alimentos dependem de diversos fatores, os quais passam pelos custos de produção, demanda nos mercados e, muitas vezes, do valor do dólar. E também da capacidade de regulação pelo governo federal quando sobem no mercado. Um dos instrumentos são os estoques historicamente mantidos pela Conab, que foram fortemente impactados com o fechamento de 27 armazéns de um total de 126 que mantém hoje.
“A questão da Conab é muito importante. Os estoques reguladores se referem à comida. A partir do golpe de 2016, os governos neoliberais se descompromissaram de comprar e manter estoques de alimentos”, frisa Paulo Brack.
Para ilustrar: os estoques de arroz, que em dezembro de 2011 estavam elevados, chegando a 1.492.344 toneladas, em todos os meses de 2022 (até julho) estiveram sempre abaixo de 2 mil toneladas. O feijão não tem estoques desde 2016 nos armazéns da Conab no país.
Areal em Quaraí, no RS: rastro de destruição das monoculturas
Foto: Paulo Brack
Doutor em ecologia com especialidade em plantas alimentícias não convencionais (Pancs), Paulo Brack destaca um dos impactos da expansão da monocultura no Rio Grande do Sul: mais de 400 espécies de plantas nativas alimentícias seguem sumindo. “Várias das nossas frutas foram levadas para outros países, como o araçá, a feijoa, a cereja-do-rio-grande, o butiá, ananás e maracujás que fazem sucesso lá fora”, enumera.
Brack cita que somente o Rio Grande do Sul tem 6,3 milhões de hectares plantados com soja, que é majoritariamente exportada. O número significa quase a mesma área abrangida pelo grão nos anos 1970 em todo o Brasil. E os campos gaúchos têm também 1 milhão de hectares tomados por silvicultura (florestas plantadas).
“A economia do RS tem como origem a pecuária e a erva-mate, e a manutenção do Pampa e das florestas nativas vem sendo engolida pela soja, monoculturas arbóreas de exóticas como eucalipto, pinus e acácia-negra, e outras monoculturas de exportação. Rondônia, que é um estado da Amazônia, já tem mais gado que o RS, e em pastagem originária de desmatamento”, revela Brack.
Segundo o professor da Ufrgs, “aqui, a silvicultura comercial/industrial encaminhou proposta de novo Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS) ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e deseja aumentar ainda mais sua área de lavouras de árvores, em sua maior parte, sobre o que resta dos campos nativos de pastagem, no bioma brasileiro que mais perdeu área de vegetação original, nos últimos 20 anos, entre todos os biomas”.
“No caso do eucalipto, 90% da produção segue para exportar pasta de celulose, para fabricar papel em outros países. Será que dá para fazer leite, queijo, manteiga de eucalipto? Vamos seguir importando alimentos e exportando commodities e fazendo de conta que é uma economia pujante?”, questiona.
VENENOS – O sumiço das políticas públicas para a agricultura familiar, em grande parte orgânica, se dá em um país campeão no uso de agrotóxicos, com 2 milhões de toneladas jogadas nas lavouras anualmente, conforme Brack. São 680 mil toneladas de princípios ativos como o herbicida glifosato – “cancerígeno, mutagênico e disruptor endrócrino” (hormonal) – o qual representa 55% das vendas. O biólogo ressalta que, em 2021, o Brasil liberou a utilização de 562 produtos agrotóxicos, usados para controle de pragas nas monoculturas.
Os produtores que botam comida na mesa dos brasileiros só levaram bordoadas a partir do governo de Michel Temer, que em 2017 encaminhou ao Congresso Nacional a proposta orçamentária do país com cortes de até 99,8% dos recursos de ações estruturantes para a agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
“Hoje é zero. O PAA acabou”, afirma o engenheiro agrônomo Álvaro Delatorre, do Setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra no Rio Grande do Sul (MST/RS), organização considerada responsável pelas maiores safras de arroz orgânico da América Latina nos últimos 10 anos.
As compras do governo federal garantiam distribuição de cestas básicas pela organização em 40 associações de bairros somente na Grande Porto Alegre.
O fim de políticas públicas como o PAA derrubou as vendas do arroz orgânico do MST/RS em 30% nos últimos dois anos, sendo influenciada também pela crise sanitária. A organização, porém, não deixou de produzir, mantendo excesso em estoques.
A safra 2021/2022 foi superior a 15,5 mil toneladas (3.196,23 hectares plantados), mesmo com custos de produção inflacionados, como o diesel usado não apenas no escoamento, mas também no trator nas lavouras, e como os adubos orgânicos, que também estão mais caros. Há, ainda, os custos administrativos das cooperativas produtoras. Mesmo assim, os resultados dos braços no campo são grandiosos.
Álvaro Delatorre revela que o MST/RS está empenhado no desenvolvimento de marketing para enfrentar as dificuldades do mercado convencional. “Aqui no RS, entramos na rede de um supermercado que nos pagou R$ 4,60 pelo quilo do arroz orgânico, que chegou a R$ 11 na gôndola. A estabilidade de preço fica na mão deles. Mas estamos acumulando experiências”, relata.
Delatorre comenta que, “com a soja exportada a 30 dólares a saca, o Pampa, que não tinha zoneamento agrícola de risco climático favorável há dez anos, voltou (neste período) a ser interessante”. Além disso, ele ressalta que o agronegócio tem incentivos fiscais em vigor, inclusive durante governos de esquerda, para exportações e comercialização de agrotóxicos.
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Mais grãos, menos comida na mesa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU