No Ciclo de Estudos “Manifesto Terrano – construindo uma geofilosofia de Gaia”, IHU provoca a pensarmos nos desafios de percebemos os sinais dos tempos e constituir outros modos de vida humano que não levem ao sufocamento de Gaia e de todos que nela vivem
Há 53 anos, houve um certo festival que prometia três dias de paz e música. Entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, 600 hectares de uma fazenda de gado leiteiro no interior da cidade de Bethel, no estado de Nova York, nos Estados Unidos, foram palco para o Festival de Woodstock. Muito mais do que dias de shows, esse Festival que entrou para a história era um sinal dos tempos, de uma geração cansada de guerra e consumismo em um modo de vida americano que insuflava o capitalismo predatório. Os Woodstocks pregavam a liberdade, um modo de vida nômade em sociedades alternativas, sem consumo, sem guerra e com muita paz e amor, no deleite de tudo aquilo que a mãe Terra pudesse oferecer.
No entanto, a geração Woodstock cresceu e, talvez, acabou tragada por lógicas meritocráticas, encharcados de liberalismo em que se não se faz mais e mais, se não se é empreendedor de si, não se come, não se tem sucesso e não se garante o futuro da família. Talvez, ainda, se tenha na cabeça aqueles gritos por um mundo melhor, aquele amargor na boca de uma vida em que sempre se quer ganhar e ganhar. Ou, talvez, muito pouco ficou da geração Woodstock. Tão pouco que, em pleno século XXI de tantos avanços, seguimos caminhando no limiar de uma terceira guerra mundial. Afinal, não é à toa que Adriano Sofri, jornalista e escritor italiano, a partir de uma reflexão sobre uma possível ida do Papa para mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia, recordou, a partir de um bilhete que recebeu de um amigo, que Kiev precisa de um pouco de Woodstock.
“’Vamos levar Woodstock para a Ucrânia’, escreveu-me um amigo. É um desejo normal, o mais normal, ainda mais para aqueles que têm o cuidado de não recomendar a rendição ao agredido, e ao mesmo tempo o desejo mais exposto aos desastres especialmente terríveis que as boas intenções produzem”, disse, em artigo reproduzido pelo IHU, que publicamos novamente abaixo.
Fato é que desde Woodstock a emergência de um mundo com mais paz e amor só aumentou. Em Woodstock, esse "paz e amor" era também recheado de cor, de natureza e respeito por outras formas de vida. Há quem diga que era fruto de uma psicodelia, mas desde aquela geração já se dizia que Gaia, a mãe Terra que tudo nos dá, clamava por socorro. Hoje, por não ouvirmos e tampouco efetivamente reagirmos a esse clamor, geramos o que Bruno Latour chama de reações de Gaia, daquela que deixa de ser a mãe bondosa que tudo dá para reagir contra aqueles que a ameaçam. No caso, nós, a humanidade. “A Terra não é vivente no sentido New Age ou no sentido simplista de um organismo individual, mas é construída, produzida, inventada, tecida pelos viventes”, observa o filósofo e antropólogo, em entrevista reproduzida pelo IHU.
Significa que na concepção de Gaia, nós, os humanos, somos só uma parte muito pequena. O problema é que desde que nós nos consideramos senhores dela, destruindo, produzindo, consumindo, gerando lucro para destruir, produzir e consumir cada vez mais, temos gerado um desequilíbrio que pode levar a destruir Gaia. Mas, será? Para Latour, talvez, ela reaja como há zilhões de anos tem reagido para purgar todo aquele ou aquilo que a ameace.
“É importante voltar a uma concepção que corresponda à experiência de viver na Terra. Somos viventes e mortais no meio de viventes e mortais que constituíram aquele pequeno círculo, muito limitado e muito confinado, dentro do qual a história se desenrolou por 4,5 bilhões de anos”, observa Latour.
Nesse contexto, diante de um mundo que por uma lado avança na direção do espaço, do cosmos, concebe ciência e tecnologia, e de outro leva ao esgotamento da Terra e ameaça todas as formas de vida, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU propõe com ainda mais vagar uma reflexão acerca dos desdobramentos sociais, políticos, ecológicos e epistemológicos da crise civilizacional contemporânea, levando em conta os diferentes agentes humanos e não humanos do colapso climático, sanitário e social repousado em nossas sociedades. Esse é o objetivo central do Ciclo de Estudos Manifesto Terrano – construindo uma geofilosofia de Gaia. Com conferências on-line, no formato live, as atividades do ciclo abrem nessa sexta-feira, dia 2 de setembro, e se estendem ao longo do semestre. Confira mais detalhes abaixo.
No que consistiria uma geofilosofia - ou uma filosofia da Terra - de Gaia? Essa perspectiva está diretamente ligada às perspectivas de Bruno Latour, que pensa a Terra não mais como aquela mãe benfeitora, mas como um agente político que reage a estímulos. Ou seja, sob ameaça, ela ataca. “Latour vai mostrar uma espécie de história paralela que vinha ocorrendo desde os anos 1980 e 1990, em que as questões do clima já despontavam, mas não tinham vindo a público. Hoje, não podemos entender as questões políticas sem entender as questões do clima”, explica Alyne Costa que, em conferência com Tatiana Roque, também promovida pelo IHU, mergulharam na obra Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020).
Tanto Alyne quanto Tatiana observam que Latour, mais do que chamar atenção para o Antropoceno, uma era em que o humano descompassa os ciclos da Terra pela forma como a expropria, salienta que não é possível analisar as questões climáticas sem essa perspectiva política. E não se trata de eventos políticos, mas sim de ver Gaia, a própria Terra como um dos agentes políticos que não fica inerte a essas movimentações. “Por isso considero que não é um problema de ignorância ou falta de inteligência. É algo mais complexo. Precisamos olhar para essa lâmina intermediária entre a Ciência e a Política em que se vive uma crise de confiança em vários aspectos”, provocou Tatiana na conferência.
Olhando para outra obra de Latour, Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (Ubu Editora, 2020), o filósofo Rodrigo Petrônio chama atenção para esse conceito, que tem origem em James Lovelock, e que é central para compreendermos o momento em que estamos para ouvir e responder ao clamor de Gaia. “A ideia básica de Lovelock na teoria Gaia é que Gaia seria um sistema, mas um sistema que tem uma espécie de auto-organização extremamente sofisticada, nuançada e instável. O primeiro ponto que temos de imaginar é que Gaia não é natureza; Gaia é um sistema integrado de geosfera, biosfera, antroposfera e tecnosfera”, observa, em outra conferência promovida pelo IHU.
Assim, em Latour, esse sistema de Lovelock se torna político. Aliás, essa perspectiva, em certa medida, já está em Lovelock, pois este pensava a Terra para muito além dos campos disciplinares da geologia, biologia, física ou química. “O próprio Lovelock se lamentava do fato de que a biologia, por exemplo, como uma “ciência da vida”, tenha mais de vinte ramos nos quais os cientistas de diferentes áreas mal se entendem, e que nenhum ramo tenha uma definição clara do que é realmente a “vida”, observa Fred Hageneder, em artigo reproduzido pelo IHU.
“Quanto aos biólogos, químicos e físicos, eles têm ainda mais dificuldades para chegar a um mínimo denominador comum. E assim Lovelock e Margulis propuseram que o planeta é uma entidade geobiofísica na qual não apenas as condições físicas, como a composição do solo, as condições meteorológicas e o clima determinam a flora e a fauna, mas também os seres vivos têm um efeito de retroalimentação sobre seu entorno e o moldam no longo prazo”, completa Hageneder, no artigo que reproduzimos abaixo.
Evidentemente, se queremos pensar sobre uma geofilosofia de Gaia, nada mais apropriada do que mergulhar e complexificar nossos entendimentos sobre ela. Por isso, a primeira conferência do Ciclo Manifesto Terrano, que ocorre na próxima sexta-feira, 2 de setembro, a partir das 10h, tem como título “Daqui deste planeta: a terra deíctica e a espectralidade de Gaia”. Ela será ministrada pelo professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília Hilan Bensusan.
Desde seu mestrado, em meados da década de 1990, Hilan Bensusan tem se dedicado a pensar nesses paradigmas da modernidade, entre os quais o científico tem centralidade. Foi quando desenvolveu a pesquisa que culminou na sua dissertação, intitulada “Argumento do milagre e a explicação do sucesso da ciência”. Já no seu dourado, realizado na University Of Sussex, US, Grã-Bretanha, versou sobre a ciência cognitiva e a inteligência artificial, originando a tese “Automatic Bias Learning: an inquiry into the inductive basis of induction” [Aprendizado de viés automático: uma investigação sobre a base indutiva da indução, em tradução livre]. Mais recentemente, publicou o livro Indexicalism: Realism and the Metaphysics of Paradox (Edinburgh: Edinburgh University Press, 2021).
Hilan Bensusan (Foto: UNB)
Graduado em Filosofia pela Universidade de Brasília, mestre pela Universidade de São Paulo e doutor pela University of Sussex, Bensusan atualmente é professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília.