08 Abril 2022
"É verdade que o nome da guerra é cada vez mais indevido, pelo menos desde que as armas se tornaram tão fatais, e desde que as ferocidades civis se sobrepuseram aos conflitos entre Estados e exércitos regulares. Chamá-las de guerras até corre o risco de enobrecê-las. O outro lado da questão está na razão desconsiderada pela qual Putin faz tanta questão de manter a sua grotesca definição: porque a guerra de agressão e de invasão, a sua na Ucrânia, é justamente um crime de guerra", escreve Adriano Sofri, jornalista e escritor italiano, em artigo publicado por Il Foglio, 06-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Escrevo sobre uma sensação sentida diante de muitas reações a Bucha (cujo recorde já está quase caindo) e que chamarei de “anestização”. Não me refiro aos duvidosos – que sejam abençoados, desde que não façam da dúvida o ponto de chegada - e menos ainda os negacionistas, que sejam mais ou menos amaldiçoados. Refiro-me às pessoas que não se deram nem mesmo o tempo para uma emoção, nem mesmo um minuto de recolhimento, para se precipitar na declaração de que "esta é a guerra, isso é o que acontece em todas as guerras", exemplificando muitas vezes com o catálogo cheio de precedentes e fechando-se na fortaleza moral: "Não à guerra, não a todas as guerras!".
Mas não é sobre a questão moral que quero me deter, senão indiretamente, através das consequências de fato da proclamação retórica e do corolário anestésico. “Não existem crimes de guerra, a guerra é o crime!”. Perfeito, como discordar? Só que a fina camada de civilização que colocamos sobre a ferocidade universal, e só no dia seguinte, nos muitos dias seguintes, dos abismos dessa ferocidade, é feita de reduções, de taludes, de remendos. De dedos de crianças enfiados no buraco da represa.
Usarei, para que meu argumento não pareça preconceituoso, o Avvenire de ontem, jornal e editor pelo qual tenho simpatia. Marco Tarquinio, no editorial intitulado “A única face da guerra”, diz exatamente o que estou discutindo: “Vamos aprender de uma vez por todas: os corpos mutilados de Bucha não são uma exceção atroz, são a cara e o corpo da guerra. Este é o monstro, esta é a ferocidade. Sempre. Em todo conflito, e também na guerra desencadeada por Putin contra a Ucrânia” (de fato, Tarquinio, assim como o Papa Francisco, não hesita em atribuir a responsabilidade pela guerra).
Mas a verdade indiscutível, que a guerra, toda guerra, desencadeia a ferocidade e despoja os humanos da humanidade, precedeu (e anestesiou) a inspeção de Bucha, sua avenida de cadáveres, das unhas pintadas, das bicicletas e dos cachorros, os seus porões, a sua vala. E imaginem se Tarquinio e o Papa Francisco não estão com o coração apertado. Mas aquele título, "De uma vez por todas" - tão semelhante ao "Nunca mais" sobre o qual se estraçalha o nosso temperamento - involuntariamente distrai de olhar para "esta vez": "o monstro" como se reapresentou no mês de março deste ano, naquela cidade, naquele país. Se o monstro é sempre o mesmo, nascido de uma mesma guerra, de que adianta distinguir crimes de guerra, constituir um tribunal internacional, exigir respeito pelos corredores humanitários?
Tarquinio escreve: "Porque as guerras só se inflamam e continuam se as declaramos necessárias e as aceitamos como inevitáveis, se as adoçamos e aclamamos como libertadoras, se as imaginamos assépticas e precisas como um videogame...". É verdade, intimamente verdadeiro e, no entanto, é ao mesmo tempo falso, não porque está se mentindo, mas porque escapa à realidade e ao fato consumado. A guerra na Ucrânia, como acabou de dizer Tarquinio, não "se incendiou e continuou" porque a declaramos necessária e aceitamos como inevitável, muito menos adoçada e aclamada libertadora e imaginada como um videogame. Os ucranianos a sofreram e aceitaram para se defenderem, a si mesmos e a ideia que têm de si mesmos; e nós, cada um à sua maneira, com eles.
O passado humano é tanto um progresso quanto um fato consumado. O fato consumado, o armamento nuclear, a devastação e o envenenamento do meio ambiente, a naturalização do privilégio, está à nossa frente como um obstáculo praticamente intransponível, e para tentar superá-lo enfiamos alguns frágeis pregos em sua parede lisa e impassível. Fizemos um processo, em Nuremberg e Tóquio. Coisas de vencedores, é claro, e mais preocupados em evitar pretextos de novas guerras do que o genocídio - nem mesmo foi mencionada em Nuremberg, essa nova palavra.
Gradualmente, estabelecemos princípios e normas como aquelas que, na segunda página do mesmo Avvenire de ontem, Mariapia Garavaglia, em nome da Cruz Vermelha que presidia, enumera assim: "Não passar pelas armas os feridos, proteger os presos, utilizar uma força proporcional, não torturar os presos, não envolver os civis e os não beligerantes, os idosos e as crianças”. "Não bombardear os hospitais". “Não atirar na Cruz Vermelha”. “Uma emenda ao artigo 5 do Pacto de Roma (2002, instituição do tribunal penal permanente) introduziu o crime de agressão” (o título do artigo me pareceu incongruente: "Nenhum direito agora pode conter o crime-guerra". Ainda mais que o texto afirma também: “O direito humanitário não permite equidistância entre quem o descumpre e quem quer que seja aplicado"). Tribunais, ainda apenas ad hoc, para a ex-Iugoslávia, para Ruanda, para o Camboja, conseguiram, embora entre mil obstáculos, julgar e condenar
Uma absolutez que quer ser radicalidade e é tentada a se livrar dos pequenos passos, dos crimes de código penal diante do imenso e inabalável código moral, responde a um impulso generoso e dissipado. Quase dez anos atrás, houve uma discussão acalorada em torno da (famigerada, porque severamente ameaçada e depois ignorada) "linha vermelha" de Obama na Síria contra as armas químicas.
Assad não deu a mínima e atacou com armas químicas, mas é outro assunto, memória ruim de Obama e Francisco, oportunidade de ouro para Putin. Mesmo então, alguns acreditaram objetar à distinção: talvez tiros de canhão, granadas e franco-atiradores não matam como o gás sarin?
Ontem li no Facebook o post de Bastiana Madau, estudiosa de filosofia, que apresentava claramente a questão: "A guerra ainda é tratada como um ofício que tem sua própria deontologia, portanto, os chamados crimes de guerra são diferenciados dos outros atos delituosos perpetrados usando um uniforme. Ao invés, seria a hora, e é sempre demasiado tarde, da humanidade internalizar o conceito de que a própria guerra é um crime e que não deve ser feita por nenhum motivo”. Seria a hora, de fato.
Mas enquanto não acontece, mas acontece que alguém move uma "operação militar especial" inundando um país com seus bandos armados, é bom que a chamada comunidade internacional, todas e todos nós, continuemos a perceber que existe uma diferença entre quem usa uniforme e quem não usa, e entre os atos assustadores e assustados cometidos por quem usa uniforme. Uma vez eu vi um vídeo do excelente Ettore Mo sobre a montanha de Shah Massoud, o leão de Panshir, e também estava Gino Strada, e em certo ponto exclamou: “Mas isso é um crime de guerra! E onde está a ONU?”.
Já que estou no tema, tenho uma nota. É verdade que o nome da guerra é cada vez mais indevido, pelo menos desde que as armas se tornaram tão fatais, e desde que as ferocidades civis se sobrepuseram aos conflitos entre Estados e exércitos regulares. Chamá-las de guerras até corre o risco de enobrecê-las. O outro lado da questão está na razão desconsiderada pela qual Putin faz tanta questão de manter a sua grotesca definição: porque a guerra de agressão e de invasão, a sua na Ucrânia, é justamente um crime de guerra.
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Se esta é guerra. Artigo de Adriano Sofri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU