19 Agosto 2022
“James Lovelock e Lynn Margulis propuseram que o planeta é uma entidade geobiofísica na qual não apenas as condições físicas, como a composição do solo, as condições meteorológicas e o clima determinam a flora e a fauna, mas também os seres vivos têm um efeito de retroalimentação sobre seu entorno e o moldam no longo prazo”. A reflexão é de Fred Hageneder, em artigo publicado por Pressenza, 17-08-2022. A tradução é do Cepat.
Na década de 1960, o cientista independente britânico James E. Lovelock recebeu da NASA a incumbência de desenvolver instrumentos para analisar a atmosfera de outros planetas. Mas seu conhecimento sobre as atmosferas também beneficiou o nosso próprio planeta em 1971, quando inventou o detector de captura de elétrons, que foi decisivo para avaliar e mitigar o buraco de ozônio terrestre, cujo crescimento preocupante foi então interrompido graças à proibição internacional dos CFCs (em latas de aerossol e unidades de refrigeração).
Mas o maior serviço que prestou à Terra e a todos os seus habitantes foi ter desenvolvido, em colaboração com a bióloga Lynn Margulis, a hipótese Gaia. Se encontrou resistências muito grandes no início dos anos 1970, acabou encontrando seu reconhecimento científico; desde os anos 2000, muitos outros artigos científicos fizeram essa Teoria de Gaia chegar à maturidade. O termo “teoria” tem um significado bastante fraco na linguagem cotidiana, mas no discurso científico é um predicado elevado: não esqueçamos que o Big Bang também é apenas uma teoria.
A Teoria de Gaia afirma que a Terra como um todo é um sistema autorregulado, no qual biomas como áreas oceânicas, florestas e estepes – até os desertos e as calotas polares – com todos os ecossistemas e seres vivos que contêm, formam um todo orgânico no qual tudo está, em última instância, interconectado.
É preciso admitir que uma imagem de tão grande envergadura foi um grande desafio para a ciência moderna, que durante muito tempo se perdeu em visões cada vez menores da especialização. O próprio Lovelock se lamentava do fato de que a biologia, por exemplo, como uma “ciência da vida”, tenha mais de vinte ramos nos quais os cientistas de diferentes ramos mal se entendem, e que nenhum ramo tenha uma definição clara do que é realmente a “vida”.
Quanto aos biólogos, químicos e físicos eles têm ainda mais dificuldades para chegar a um mínimo denominador comum. E assim Lovelock e Margulis propuseram que o planeta é uma entidade geobiofísica na qual não apenas as condições físicas, como a composição do solo, as condições meteorológicas e o clima determinam a flora e a fauna, mas também os seres vivos têm um efeito de retroalimentação sobre seu entorno e o moldam no longo prazo. Três exemplos:
• As rochas de giz e calcário são formadas inteiramente por restos de microrganismos (por exemplo, conchas de mexilhões) que se sedimentaram ao longo de milhões de anos.
• 99% dos gases que compõem nossa atmosfera foram trazidos ao seu estado atmosférico por organismos vivos (o oxigênio pelas plantas e as algas e o nitrogênio pelos micróbios).
• A vida marinha desempenha um papel importante na regulação da acidez e da salinidade dos oceanos.
A Teoria de Gaia rompeu com o velho paradigma segundo o qual a “vida” era frágil e procurava apenas nichos. Mostra que a vida cria, mantém e até melhora continuamente seus habitats, tornando-os mais benevolentes para as gerações futuras. (A única exceção a esta regra é o ser humano, que desde o “Renascimento”, há quase quatro séculos, está em uma curva de autoextermínio que destruirá o sistema terrestre, uma curva que agora está experimentando uma aceleração exponencial e começando a cobrar a fatura.)
Lovelock teve consciência deste perigo desde muito cedo. Por isso, tem sido, desde a década de 1970, um farol e inspiração para os protecionistas. Como todos nós, pôde observar durante décadas como os detentores do poder e os tomadores de decisões continuaram a explorar descaradamente a Terra e a degradar o mundo dos vivos até chegar, hoje, a um ponto de não retorno. A vida na Terra ainda está forte, mas quanto tempo levará para se recuperar das feridas infligidas pela sociedade industrial predatória? E os humanos farão parte do futuro da Terra? Isso ficará claro nesta década (2020). Os dois últimos livros de Gaia de Lovelock foram advertências muito contundentes:
– A Vingança de Gaia, escrito em 2006; e
– Gaia: alerta final, escrito em 2009.
A única controvérsia em torno de Lovelock é a da energia nuclear. Diante do perigo global representado pelas enormes quantidades de dióxido de carbono sendo bombeadas para a atmosfera a partir do uso de combustíveis fósseis (que provocam a mudança climática), Lovelock manifestou-se a favor da energia nuclear a partir de 2004. Para grande surpresa de muitos movimentos conservacionistas. Mas para o explorador, pensador de sistemas planetários que Lovelock foi, a radioatividade era apenas uma das muitas formas de energia – naturais – e a vida sempre poderia suportar uma leve radiação de fundo. Pessoalmente, porém, acho que ele preferiu não ver as muitas fotos e destinos de animais jovens e bebês com horríveis mutações da região de Chernobyl.
De qualquer forma, ele sabia que a humanidade terá que reexaminar suas crenças se quiser continuar a existir. Em 2000, a propósito do desmatamento que ganhava o mundo inteiro, escreveu:
“Não estamos reconhecendo o verdadeiro valor da floresta como um subsistema autorregulador que mantém confortável para a vida o clima da região, e até certo ponto o da Terra. Sem as árvores não há chuva, e sem chuva não há árvores… Se deixarmos a floresta crescer e se sustentar, teremos reconhecido nossa dívida com o resto da vida na Terra.”
O que de certa forma é encorajador é que Gaia finalmente entrou na corrente principal do pensamento. Isso é particularmente evidente na climatologia, que agora pensa em termos de sistemas de retroalimentação interconectados. Até por volta de 2012, as coisas ainda eram diferentes, quando, por exemplo, as florestas da Terra eram vistas apenas como vítimas passivas do aquecimento global e do aumento das secas. Nesse meio tempo, percebeu-se que as florestas desempenham um papel ativo no sistema climático do nosso planeta.
Ou pensemos na zoologia. Hoje sabemos que um animal não pode ser separado do seu habitat. Um urso, por exemplo, inclui não apenas o organismo biológico, mas também seu território de floresta, pastagens e rios. O salmão faz parte da vida do urso. E através dos restos dos peixes ricos em proteínas que os ursos deixam debaixo das árvores, o salmão e o urso também fazem parte da vida da floresta. Nosso pensamento mudou; já não é mais exclusivamente reducionista.
No entanto, a constatação de Lovelock e Margulis de que a Terra é um sistema interconectado não surgiu do nada. Já um século antes, ninguém menos que Alfred Russel Wallace, que desenvolveu a teoria da evolução junto com Charles Darwin, disse:
“Complexas regulações e a interdependência mútua ligam todas as formas animais e vegetais, com a sempre mutante Terra que as sustenta, em um grande todo orgânico” (Alfred Russel Wallace, 1876).
Naquela época, a ciência ocidental estava muito avançada graças a universalistas de mente aberta como Alfred Russel Wallace, Charles Darwin e Alexander von Humboldt. Vejo James Ephraim Lovelock e Lynn Margulis na fileira desses grandes exploradores que tiveram um impacto duradouro na história intelectual da humanidade. Assim como a revolução copernicana (a Terra gira em torno do sol e não o contrário), penso que a “revolução Gaia” também representa um marco fundamental. E não apenas na história da ciência, mas também na evolução humana.
Agora cabe a todos nós promover a necessária mudança de consciência. Para uma visão de mundo ecocêntrica que respeite toda a vida e lhe conceda o direito de se desenvolver livremente. Uma nova humanidade só poderá se expressar plenamente quando Gaia voltar a florescer.
James Ephraim Lovelock morreu no dia 26 de julho de 2022, dia em que completou 103 anos, em decorrência de uma queda.
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Homenagem à vida de James Lovelock, fundador da Teoria de Gaia. Artigo de Fred Hageneder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU