24 Mai 2022
“Às vezes, a História muda em silêncio, sem grandes guerras, nem revoluções, nem quedas de impérios. Há exatamente cinquenta anos, começava um novo século, não importa tanto o seu número como seu lugar: a Terra”, escreve Alejandro Galliano, professor da Universidade de Buenos Aires e colaborador das revistas Crisis, Nueva Sociedad e Página/12 em assuntos de política, futuro e tecnologia, em artigo publicado por El Diario, 21-05-2022. A tradução é do Cepat.
Em 1666, o poeta inglês John Dryden usou a expressão latina annus mirabilis para se referir àquele ano repleto de eventos excepcionais: o incêndio de Londres, a peste bubônica, a guerra contra a Holanda e (isto ficaria conhecido mais tarde) os desenvolvimentos científicos de Isaac Newton. Desde então, os amantes de datas e enumerações buscaram outros anni mirabiles: 1492, 1543, 1759, 1905...
Os critérios são totalmente volúveis e incluem fatos positivos e negativos. Por isso, resultou vão o neologismo annus horribilis, popularizado nos anos 1990 pela rainha Elizabeth II, para se referir ao auge de escândalos familiares.
1972 foi um annus mirabilis. Quem folhear os jornais e almanaques mundiais da época, ou consultar o verbete correspondente na Wikipédia, só encontrará atentados terroristas, testes nucleares e o governo de Salvador Allende. Dificilmente o clímax da grande narrativa secular de estados, partidos e classes sociais, cujo ocaso começaria em 1979, certamente, outro annus mirabilis: o triunfo de Margaret Thatcher, a revolução iraniana, a visita de João Paulo II à Polônia, a viagem de Deng Xiaoping pelos Estados Unidos.
Mas, por baixo desse canto do cisne do século XX, 1972 foi também a origem de uma contranarrativa que alcança o hoje. Uma em que somos mais terrícolas do que humanos, mais uma espécie do que uma civilização. Podemos chamá-la de “planetariedade”. O termo surgiu nos estudos pós-coloniais como uma alternativa à “globalização”, mas se transformou em algo como a consciência de habitar um planeta, de estar expostos a forças físicas naturais e artificiais que irrompem por baixo do mundo humano que construímos.
É claro que essa consciência não nasceu subitamente em 1972. Só que naquele ano houve uma série de marcos que lhe deram a forma e visibilidade com as quais a conhecemos hoje. O que vem abaixo nada mais é que a exposição desses fatos que, há cinquenta anos, fizeram nascer silenciosamente este século que nos cabe.
O termo “A Terra” nos conecta quase inevitavelmente à imagem de uma bola marmoreada azul, verde e branca flutuando no escuro. Essa imagem, mais ou menos estilizada, é the blue marble, “a bolinha azul”, uma foto tirada em 3 de dezembro de 1972, da Apollo 17, por Harrison Schmitt, o primeiro geólogo a participar de uma missão espacial.
Aquele ano foi o summit [ápice] da corrida espacial: às duas missões norte-americanas (Apollo 16 e 17) se juntaram a soviética Luna 20 e o lançamento da sonda Pioneer 10, o primeiro objeto humano a deixar o sistema solar, que transportava a placa desenhada por Carl Sagan como mensagem para uma possível vida extraterrestre.
Mas aquele foi o adeus. A Apollo 17 foi a última missão até hoje a transportar humanos para a Lua. Naquele mesmo ano, os Estados Unidos encerraram o programa Apollo e o substituíram pelo mais modesto Ônibus espacial. A URSS faria o mesmo com o programa Luna, em 1976.
O espírito exploratório da Humanidade teve que se contentar com aventuras mais modestas, como a República de Minerva, o enclave libertário fundado no Pacífico Sul pela Phoenix Foundation, em janeiro de 1972, e imediatamente anexado e desarmado pelo reino de Tonga.
Mesmo assim, os astros continuaram nos afetando, e de formas mais verificáveis do que a astrologia. Em agosto de 1972, ocorreu uma tempestade solar cuja força eletromagnética desligou as comunicações telefônicas de longa distância do estado de Illinois e detonou as minas submarinas que o Exército norte-americano, já em plano de retirada, havia instalado na costa norte do Vietnã.
Ver a Terra de fora foi um marco em nossa consciência planetária. Mas convém não exagerar seus efeitos disruptivos. Harrison Schmidtt, o geólogo que fotografou o planeta inteiro, ao retornar a seu planeta fez carreira como legislador republicano, negando as mudanças climáticas. Viajar para o espaço não nos tornará mais sábios do que ver o planeta ao nível do solo.
Em março de 1972, publicou-se Limites do crescimento, uma versão em livro do chamado Relatório Meadows, do ano anterior. No final dos anos 1960, um grupo de políticos e cientistas de cerca de trinta países se reuniu no Clube de Roma para debater as mudanças que o crescimento econômico estava provocando no meio ambiente. Para tal fim, encomendaram ao MIT [Massachusetts Institute of Technology] um relatório que ficou sob a responsabilidade do System Dynamics Group, dirigido por Donella Meadows.
O grupo desenvolveu o programa de simulação computacional World3 para correlacionar variáveis demográficas, ambientais e energéticas, entre outras, em uma projeção de 50 anos. As conclusões foram lapidares: “caso se mantenha o aumento da população mundial, a poluição, a industrialização, a exploração dos ambientes naturais e a produção de alimentos, sem qualquer tipo de variação, é provável que se alcance o limite total de crescimento na terra, ao menos durante o próximo século”.
O impacto político foi imediato. Em junho daquele ano, a ONU convocou a Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo. No mesmo mês, Sicco Mansholt, comissário para a Agricultura da Comissão Europeia, enviou uma carta ao presidente da Comissão propondo “crescimento zero”.
O debate em torno da carta de Mansholt motivou um número especial da revista Le Nouvel Observateur, no qual André Gorz propunha crescimento negativo ou “decrescimento”, um conceito que já havia sido empregado por Nicholas Georgescu-Roegen, em seu livro de 1971, La ley de la entropía y el proceso económico.
Em seu exílio em Madri, Juan Perón também quis opinar sobre os limites do crescimento e, em fevereiro de 1972, antecipou o conceito de Antropoceno: “O ser humano não pode mais ser concebido independentemente do meio ambiente que ele mesmo criou. Já é uma poderosa força biológica, e caso continue destruindo os recursos vitais que a Terra lhe oferece, só pode esperar verdadeiras catástrofes sociais, nas próximas décadas. A humanidade está mudando as condições de vida de forma tão rápida que não consegue se adaptar às novas condições. Sua ação caminha mais rápido do que sua apreensão da realidade”.
A um ano da crise do petróleo, o Relatório Meadows havia desencadeado uma consciência compartilhada de se viver em um planeta com recursos finitos e decrescentes. Um choque malthusiano. A revolução neoliberal dos anos 1980 se dedicaria a bombardear essa consciência com argumentos tão exitosos que hoje foram adotados até mesmo por setores autoproclamados progressistas ou antineoliberais.
Para além do choque malthusiano, a consciência planetária de 1972 inspirou outras versões mais especulativas da Terra vista de dentro. Naquele ano, foram publicados Los árboles tienen derechos, livro de Christopher Stone que propõe tratar o meio ambiente como uma pessoa jurídica, premissa da futura ecologia profunda, e Gaia as seen through the atmosphere, artigo em que James Lovelock apresentou sua hipótese da Terra como um sistema cibernético que torna a vida possível.
O cinema também se encarregou da planetariedade. Em 1972, foram estreados Amargo pesadelo, de John Boorman, e Aguirre, a Cólera dos Deuses, de Werner Herzog, dois filmes que colocam à prova a tênue racionalidade humana em um ambiente natural desmesurado.
Havia algo no ar, um detalhe infinito. Ou outra coisa. Em dezembro de 1972, surgiu um surto de gripe A, em Londres, que atingiu a Califórnia e causou mais de 1.000 mortes. Talvez tenha sido um resquício da pandemia de 1968, talvez uma antecipação da de 1977 (embora se suspeite que tenha sido um lab leak soviético). Não voltou a ter alarmes até 1997, em Hong Kong. O resto é história conhecida: SARS-CoV 1, em 2002, MERS-CoV, em 2012, SARS-CoV 2, em 2019. As pestes, assim como os censos, nos lembram que somos uma população sobre um espaço, apesar do ego instagrammer.
Às vezes, a História muda em silêncio, sem grandes guerras, nem revoluções, nem quedas de impérios. Há exatamente cinquenta anos, começava um novo século, não importa tanto o seu número como seu lugar: a Terra. Há indivíduos, nações e classes sociais, mas tudo isso está apoiado sobre um só planeta, um ambiente material anterior e externo à linguagem e à cultura, ainda que totalmente vulnerável aos assuntos humanos.
O que faremos com ele dependerá de como articularemos esses indivíduos, nações e classes sociais. Mas não deixemos que as questões particulares ofusquem o problema global, nem nos façamos de desentendidos. Porque há cinquenta anos pudemos ver a Terra de fora e de dentro, e perdemos para sempre a inocência em relação ao planeta que ocupamos.
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Cinquenta anos de Planetariedade. Artigo de Alejandro Galliano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU