16 Mai 2022
“Às vezes temos uma visão demasiado pelagiana da vida, da santidade. Deste modo fizemos da santidade uma meta inacessível, separamo-la da vida de todos os dias, em vez de a procurar e abraçar na existência quotidiana, no pó da estrada, nas aflições da vida concreta e – como dizia Teresa de Ávila às suas irmãs – «entre as panelas da cozinha»", afirmou o Papa Francisco na homilia proferida durante a missa solene na Praça de São Pedro, em Roma, no domingo, 15-05-2022, durante a canonização de 10 novos santos, entre os quais Charles de Foucauld.
Segundo Francisco, “a santidade é sempre original, como dizia o Beato Carlos Acutis: não há santidade de fotocópia, a santidade é original, é a minha, a tua, a de cada um de nós. É única e irrepetível”.
A íntegra da homilia é publicada pela Sala de Imprensa do Vaticano, 15-05-2022.
Acabamos de ouvir algumas das palavras que Jesus confia aos seus discípulos, antes de passar deste mundo para o Pai, manifestando nelas o que significa ser cristão: «Assim como Eu vos amei, amai-vos também vós uns aos outros» (Jo 13, 34). Este é o testamento que Cristo nos deixou, o critério fundamental para discernir se somos verdadeiramente seus discípulos ou não: o mandamento do amor. Detenhamo-nos sobre os dois elementos essenciais deste mandamento: o amor de Jesus por nós – assim como Eu vos amei – e o amor que Ele nos pede para vivermos – amai-vos também vós uns aos outros.
O primeiro ponto: assim como Eu vos amei. E como nos amou Jesus? Até ao fim, até ao dom total de Si mesmo. Causa impressão vê-Lo pronunciar estas palavras numa noite tenebrosa, enquanto se respira no Cenáculo um ambiente denso de comoção e turbamento: comoção, porque o Mestre está prestes a despedir-Se dos seus discípulos; turbamento, porque anuncia que será precisamente um deles a traí-Lo. Podemos imaginar a tristeza que havia no íntimo de Jesus, a escuridão que se adensava no coração dos apóstolos, a amargura vivida ao ver que Judas, depois de receber o bocado de pão ensopado para ele pelo Mestre, saía da sala para adentrar-se na noite da traição. E é precisamente na hora da traição que Jesus confirma o amor pelos seus. Com efeito, nas trevas e tempestades da vida, o essencial é isto: Deus ama-nos.
Irmãos e irmãs, oxalá seja sempre central, na profissão da nossa fé e nas suas expressões, este anúncio: «Não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou» (1 Jo 4, 10). Nunca nos esqueçamos disto! No centro, não está a nossa capacidade, os nossos méritos, mas o amor incondicional e gratuito de Deus, que não merecemos. No início do nosso ser cristão, não estão as doutrinas e as obras, mas a maravilha de descobrir que se é amado, antes de qualquer resposta nossa. Enquanto o mundo quer muitas vezes convencer-nos de que só temos valor se produzirmos resultados, o Evangelho lembra-nos a verdade da vida: somos amados. E está nisto o nosso valor: somos amados. Assim escreveu um mestre espiritual do nosso tempo: «Ainda antes que nos visse qualquer ser humano, fomos vistos pelos olhos amorosos de Deus. Ainda antes que alguém nos ouvisse chorar ou rir, fomos escutados pelo nosso Deus que é todo ouvidos para nós. Ainda antes que alguém neste mundo nos falasse, já nos falava a voz do amor eterno» (H. Nouwen, Sentir-se amado, Brescia 1997, 50). Ele amou-nos primeiro, esteve à nossa espera. Ama-nos e continua a amar-nos. E esta é a nossa identidade: amados por Deus. Esta é a nossa força: amados por Deus.
Esta verdade pede-nos uma conversão da ideia de santidade que frequentemente possuímos. Às vezes, insistindo muito sobre o nosso esforço para praticar boas obras, criamos um ideal de santidade demasiado fundado em nós mesmos, no heroísmo pessoal, na capacidade de renúncia, nos sacrifícios feitos para se conquistar um prêmio. Às vezes temos uma visão demasiado pelagiana da vida, da santidade. Deste modo fizemos da santidade uma meta inacessível, separamo-la da vida de todos os dias, em vez de a procurar e abraçar na existência quotidiana, no pó da estrada, nas aflições da vida concreta e – como dizia Teresa de Ávila às suas irmãs – «entre as panelas da cozinha». Ser discípulo de Jesus e caminhar pela via da santidade é, antes de mais nada, deixar-se transfigurar pela força do amor de Deus. Não esqueçamos o primado de Deus sobre o próprio eu, do Espírito sobre a carne, da graça sobre as obras. Às vezes damos mais peso, mais importância ao próprio eu, à carne e às obras. Não está certo, mas há de ser a primazia de Deus sobre o eu, a primazia do Espírito sobre a carne, a primazia da graça sobre as obras.
O amor que recebemos do Senhor é a força que transforma a nossa vida: dilata-nos o coração e predispõe-nos a amar. Por isso – e passamos ao segundo ponto – Jesus diz «assim como Eu vos amei, amai-vos também vós uns aos outros. Este assim como não é apenas um convite a imitar o amor de Jesus; mas significa que só podemos amar porque Ele nos amou, porque dá aos nossos corações o seu próprio Espírito, o Espírito de santidade, amor que nos cura e transforma. Por isso podemos decidir-nos a praticar gestos de amor em toda a situação e com cada irmão e irmã que encontramos, porque somos amados e temos a força de amar. Assim como sou amado eu, posso amar. Sempre, o amor que partilho está unido ao de Jesus por mim: «assim como». Assim como Ele me amou, assim também eu posso amar. A vida cristã é assim simples, tão simples! Nós tornamo-la mais complicada, com tantas coisas, mas é simples assim.
E que significa, concretamente, viver este amor? Antes de nos deixar este mandamento, Jesus lavou os pés aos discípulos; depois de o ter pronunciado, entregou-Se no madeiro da cruz. Amar significa isto: servir e dar a vida. Servir, isto é, não colocar os próprios interesses em primeiro lugar; desintoxicar-se dos venenos da ganância e da preeminência; combater o câncer da indiferença e o caruncho da autorreferencialidade, partilhar os carismas e os dons que Deus nos concedeu. Perguntando-nos o que fazemos em concreto pelos outros. Isto é amar: viver as tarefas de cada dia em espírito de serviço, com amor e sem alarde, sem nada reivindicar.
Primeiro servir, depois dar a vida. Aqui não se trata só de oferecer aos outros qualquer coisa, alguns bens próprios, mas dar-se a si mesmo. Gosto de perguntar às pessoas que me pedem conselho: «Diz-me uma coisa: tu dás esmola?» - «Sim, padre, eu dou esmola aos pobres» - «E quando dás esmola, tocas a mão da pessoa, ou deitas a esmola e fazes assim [esfrego as mãos uma na outra] para te limpares?». E elas coram: «Não, eu não toco». «Quando dás a esmola, fixas nos olhos a pessoa que ajudas, ou olhas para o outro lado?» - «Eu não olho». Tocar e olhar, tocar e olhar a carne de Cristo que sofre nos nossos irmãos e irmãs. Isto é muito importante. Dar a vida é isto.
A santidade não se faz de alguns gestos heroicos, mas de muito amor diário. «És uma consagrada ou um consagrado [hoje aqui há muitos]? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado [ou casada]? Sê santo [e santa], amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador [uma mulher trabalhadora]? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos [e lutando pela justiça a favor dos teus companheiros, para que não fiquem sem trabalho, para que tenham sempre o salário justo]. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. [Diz-me:] estás investido em autoridade? [Aqui temos muitas pessoas que têm autoridade – pergunto-vos: estás investido em autoridade?] Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais» (cf. Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 14). Esta é a estrada da santidade: ver sempre Jesus nos outros.
Servir o Evangelho e os irmãos, oferecer a própria vida sem retribuição – fazê-lo em segredo: oferecer sem esperar retribuição –, sem buscar qualquer glória mundana, mas escondido humildemente como Jesus: a isto somos chamados também nós. Os nossos companheiros de viagem, hoje canonizados, viveram assim a santidade: abraçando com entusiasmo a sua vocação – uns de sacerdote, outras de consagrada, e outros ainda de leigo –, gastaram-se pelo Evangelho, descobriram uma alegria sem par e tornaram-se reflexos luminosos do Senhor na história.
Um santo ou uma santa é isto: um reflexo luminoso do Senhor na história. Tentemos fazê-lo também nós: não está fechado o caminho da santidade, é universal, é uma chamada para todos nós, começa com o Batismo, não está fechado o caminho. Tentemos também nós, porque cada um de nós é chamado à santidade, a uma santidade única e irrepetível. A santidade é sempre original, como dizia o Beato Carlos Acutis: não há santidade de fotocópia, a santidade é original, é a minha, a tua, a de cada um de nós. É única e irrepetível. Sim, o Senhor tem um plano de amor para cada um, tem um sonho para a tua vida, para a minha vida, para a vida de cada um de nós. E que posso dizer-vos eu? Levai-o para diante com alegria. Obrigado.
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“Não há santidade de fotocópia. A santidade se encontra na existência quotidiana, no pó da estrada, ‘entre as panelas da cozinha’, afirma Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU