15 Agosto 2020
"Personagens evangélicos. A figura do "Christus patiens" na análise de Salvatore Natoli, o retrato confiável de Maria de Magdala de Adriana Valerio. E o enigma do "traidor". Jesus e Madalena, ao lado de Judas. Nas catedrais antigas é fácil admirar como retábulo um políptico, ou seja, uma sequência de vários painéis (geralmente três ou cinco) dominados por figuras de santos ou cenas do evangelho, às vezes marcadas por verdadeiras e próprias arquiteturas, como, por exemplo, nos cinco painéis que mostram Nossa Senhora e o Menino e com santos que Pietro Lorenzetti pintou em têmpera em 1320 para a Pieve de Santa Maria em Arezzo", escreve Gianfranco Ravasi, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 02-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Personagens evangélicos. A figura do "Christus patiens" na análise de Salvatore Natoli, o retrato confiável de Maria de Magdala de Adriana Valerio. E o enigma do "traidor". Jesus e Madalena, ao lado de Judas. Nas catedrais antigas é fácil admirar como retábulo um políptico, ou seja, uma sequência de vários painéis (geralmente três ou cinco) dominados por figuras de santos ou cenas do evangelho, às vezes marcadas por verdadeiras e próprias arquiteturas, como, por exemplo, nos cinco painéis que mostram Nossa Senhora e o Menino e com santos que Pietro Lorenzetti pintou em têmpera em 1320 para a Pieve de Santa Maria em Arezzo. Pois bem, adaptando essa tipologia artística sagrada como um símbolo, gostaríamos agora de propor uma espécie de políptico teológico-literário em papel.
Como é frequente na tradição pictórica, colocamos no centro uma crucificação que é curiosamente esboçada por Salvatore Natoli, filósofo professor emérito da Universidade de Milão-Bicocca, classificado entre as pessoas não crentes, mas que constantemente revela uma extraordinária fineza teológica. É isso que aparece também em seu Uomo dei dolori (Homem das Dores, em tradução livre) que, antes de ser um ícone devocional cristológico bizantino, é uma definição do Christus patiens na filigrana de um dos textos capitais proféticos selecionados pelo cristianismo, desde as origens do Evangelho, para identificar o rosto do Messias. Uma figura não mais com auréola de luz transcendente, nem assentada em um trono imperial, mas sim um ser "desprezado e rejeitado pelos homens, homem das dores que sabe muito bem o que é padecer". Assim, Isaías se expressa no quarto dos poemas dedicados a um misterioso "Servo do Senhor" (53,3) cuja história dramática foi adotada pelos Evangelhos como chave interpretativa da paixão e morte de Jesus.
A escolha de Natoli é justamente aquela de assumir esse personagem que reúne em si a gama sombria da dor (medo da morte, traição, abandono e solidão dos amigos, tortura, silêncio de Deus, morte por asfixia, rigidez cadavérica), como estrela polar de referência para decifrar a experiência universal do sofrimento. E o faz em poucas páginas de forte intensidade, programadas em uma série de citações evangélicas clássicas em latim (exceto uma: "Você rei?", do emocionante diálogo entre Jesus e Pilatos, que também poderia ressoar no latim da "Vulgata": Ergo rex es tu?). O desdobramento dessa investigação por etapas está no famoso Ecce homo, "o momento mais absolutamente humano na história da paixão, onde é apresentado um homem, feito objeto de escárnio e zombaria, privado de sua humanidade".
A particular "via crucis" traçada por esse teólogo "leigo", no entanto, inclui todas as etapas fundamentais, até o testemunho paradoxal do cristão que deve crer e anunciar um Deus que está realmente morto por ser também homem (esse é o ápice ou, se preferir, o abismo do Encarnação), mas Ressuscitado por ser Filho de Deus, isto é, Vivente. Como escreve Natoli, a pessoa de Cristo com sua história e sua mensagem "não pode ser resolvida apenas em um exemplum vitae, na indicação de uma conduta, mas deve ser uma promessa de eternidade, da vida venturi saeculi". A dor e a morte vividos por Cristo e Deus foram, de fato, atravessadas pela transcendência, fecundadas com uma semente da eternidade.
Deixamos o retábulo central do nosso tríptico ideal para ir para o painel direito. Aqui está representada a primeira testemunha do Ressuscitado, Maria Madalena, que - na capa do volume destinado a ela - está representada com a pintura do artista de Brescia do século XVI, Moretto, conservada no "Institute of Arts" de Chicago. O verdadeiro retrato do nosso políptico é, no entanto, aquele desenhado de modo perfeito por Adriana Valerio, professora da "Federico II" de Nápoles. Dizemos "perfeito" porque Maria de Magdala foi vítima de vários equívocos: reduzida à categoria de prostituta, espiritualizada na literatura gnóstica, atingida pelo flagelo da penitência, exaltada como contemplativa e até eremita, transportada até ser amante de Jesus, às vezes esquecendo eventualmente sua principal função como apóstola da ressurreição de Cristo. Aquele que seguir as páginas dessa pintura em papel conseguirá, então, reencontrar o rosto verdadeiro de Maria e não por ansiedade apologética, mas sim por meio de documentação rigorosa, mas transparente, e uma colocação de Madalena na encruzilhada da própria questão feminina contemporânea.
Chegamos, assim, ao último painel, o da esquerda, que ainda nos leva de volta à noite da paixão de Cristo. Ele não é um santo em cena (pelo menos de acordo com nosso juízo: a mística Catarina de Gênova escutava um Jesus sorridente dizendo a ela: “Se você soubesse o que eu fiz por ele ...”), mas sim o traidor Judas. A literatura sobre ele e sobre a sua escolha (livre ou necessária?) é imensa e a caneta dos escritores é insone: o último foi o grande Amos Oz. Como Mario Pomilio escrevia no Quinto Evangelho, de acordo com muitos "Eu não fui um traidor: fui mais a vítima de um curioso plano de salvação, estendido a todos os homens, que, para ser perfeitamente explicitado, precisava me excluir". Dois são os escritos que acabaram de ser publicados, que agora apenas evocaremos.
Em primeiro lugar, há o refinado trabalho de escultura textual de um importante teólogo e exegeta, Roberto Vignolo. Ele examina os traços de Judas presentes acima de tudo no Evangelho de João: eles chegam a uma declaração de "satanicidade" e têm como ponto culminante a suprema acusação, quando no confronto com Pilatos Jesus declara ao governador romano: "aquele que me entregou a ti é culpado de um pecado maior" (19,11). É precisamente na dialética dos dois "máximos" - por um lado, a culpa de Judas e, pelo outro, a revelação-redenção de Jesus - que se deve identificar a "grandeza" global do episódio em questão. Devem-se deixar cair as fáceis execrações ou as improváveis reabilitações, os determinismos do predestinado obrigado à "traição redentora" para inserir Judas e seu ato em um quadro “maior” e harmônico, cujas coordenadas teológicas são finamente reconstruídas pelas reflexões de Vignolo.
Para selar o terceiro painel de nosso tríptico introduzimos, sempre referindo-se a Judas, um registro poético: o autor é um poeta que eu sempre li com grande apreço, como simples amador de poesia, Eugenio De Signoribus, nascido em 1947, que agora reúne em unidade dois de seus itinerários "sui passi della Passione". Este é o título da primeira e mais recente sequência de textos (2018), à qual se soma L’altra Passione (A outra paixão) de 2011, mas retomada e retrabalhada. E é aqui que entra em cena Judas “o escolhido ... para seguir e trair”. Os versos, que também se colorem de prosa poética e são acompanhados por notas intensas, semelhantes a outro percurso temático, são extremamente sóbrios e até parcos e se condensam, sob alguns aspectos, na tradicional pergunta explicitada no subtítulo: “Judas: a traição necessária?”. A poesia não descreve, mas alude e intui: é por isso que a sugerimos ao leitor, confiando-a apenas ao admirável (o adjetivo não é enfático) e refinado comentário final de Stefano Verdino.
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Jesus e Madalena, ao lado de Judas. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU