Em Lampedusa, há quem recebeu Carlota Rackete, comandante do Sea Watch 3, desejando-lhe o estupro: "E mesmo assim, a capitã Carola Rackete é um exemplo de resistência civil. Ela trouxe a salvo os 42 náufragos do Sea Watch 3, contestando uma lei errada e mostrando que, além da política das fronteiras fechadas, existe outra possibilidade".
O bem e o mal, na filosofia de Salvatore Natoli, professor de filosofia teórica da Universidade Bicocca de Milão, um dos maiores filósofos italianos, sempre têm os pés firmemente plantados no chão. Vivem ao nosso lado. Muitas vezes, dentro de cada um de nós. E é um erro removê-los deste mundo para transformá-los em divindades ou demônios: "A esquerda italiana deve tomar cuidado para não transformar essa mulher, certamente corajosa e exemplar, em um herói a ser adorado. Esse é um velho vício. Um atalho que a esquerda percorreu várias vezes. Diante de sua própria dificuldade, se agarra a uma bandeira e a agita incautamente. Esquecendo o aviso de Bertold Brecht: "Infeliz a nação que precisa de herois".
A entrevista é de Nicola Mirenzi, publicada por The Huffingotn Post, 30-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por enquanto, a alcunha atribuída a ela pelo ministro do interior Matteo Salvini é "sbruffoncella" (fanfarrona): "É uma técnica típica do líder da Lega - diz Natoli, recentemente nas livrarias com Il fine della politica (O fim da política, em tradução livre, BollatiBoringhieri): degradar a pessoa, para apagar a importância dos gestos que realiza. Inclusive os judeus eram mortos em Auschiwitz em nome de uma lei do estado alemão. Não quero dizer que estamos na mesma situação, nada disso. Quero dizer, no entanto, que existe o direito de contestar uma lei se for considerado que a lei está errada e injusta. Foi o que Carola fez. Em vez disso, o verdadeiro problema permaneceu escondido nessa discussão. Salvini finge poder enfrentar um problema enorme como o da imigração, colocando em campo atos cenográficos como o bloqueio de um navio”.
É apenas teatro?
O drama é real. E Salvini não é o único protagonista. A Europa está fazendo o seu jogo. Em vez de dizer imediatamente: "Nós vamos acolher esses migrantes", permaneceu em silêncio e concordou em assumir a situação apenas no final de um duelo tremendo e revelador.
Revelador de quê?
Que uma parte da humanidade é considerada um descarte, portadora de uma doença que enfraquece a sociedade e a coloca em perigo de vida, como se fossem seres humanos infectados, que é preciso manter afastados.
Isso lembra você de alguma ideologia do século XX?
Não gosto de falar sobre o retorno do fascismo. Mas o não acolhimento é, de fato, uma forma de exclusão e seleção humana, feita em nome da defesa dos próprios privilégios ou, pelo menos, do próprio tranquilo viver.
E o que há de errado com isso?
Que Salvini oferece uma solução perversa para o medo de perder o bem-estar das pessoas. É como se ele estivesse dizendo: "Eles são os culpados do vosso estado de espírito, os estrangeiros. Confiem em mim. Eu vos libertarei da angústia”. É o mecanismo clássico do bode expiatório.
Por que isso ainda funciona?
Porque não é verdade que as ideologias estão mortas. Acabaram as ideologias que reivindicavam libertar definitivamente os homens do mal, tanto aquele representado pela desigualdade entre as classes sociais (comunismo), quanto o paranoico da impureza da raça (nazismo). Na realidade, toda sociedade escolhe ideologias. E o soberanismo é uma das ideologias deste tempo.
Que tempo é o nosso?
É o tempo em que o poder político perdeu a capacidade de dirigir e governar o existente. Porque a ciência, a técnica, a economia e quase todos os outros setores da vida social têm uma própria autonomia. Portanto, o poder político não mais dirige tudo. De fato, deixou de prospectar a hipótese de pôr fim à história e realizar a felicidade na terra. Só pode mediar, administrando o existente.
Então, o soberanismo é a saudade de um poder ultrapassado?
O soberanismo é uma ideologia inadequada em relação à realidade. É um autoengano. A ilusão de que seja possível restaurar um poder central vertical, capaz de controlar todos os aspectos da vida de um estado e de uma nação. Sua realização seria equivalente a criação de um conflito permanente. Uma guerra de todos contra todos. É uma perversão da nossa sociedade.
E a ideia de Europa?
Pode ser o antídoto para o soberanismo. Os eleitores europeus já demonstraram isso ao votarem em maioria pela Europa, contra os partidos que querem questioná-la. Mas isso não é suficiente. A Europa vencerá se conseguir desenvolver uma ideia de soberania verdadeiramente supranacional. Caso contrário, fará um favor imenso aos soberanistas.
A administração pura é suficiente para mobilizar as pessoas?
Administração não é rotina, é projeto. A Europa não é enredada pela administração. Está bloqueada por uma mentalidade de divisão dos estados. Basta pensar nas discussões sobre as cotas, os assentos, as posições de decisão.
Em vez disso, a que deveria aspirar?
Para tornar o mundo melhor para seus filhos. As grandes utopias pensavam em termos abstratos, na humanidade que viria. Enquanto hoje se deveria tentar tornar o mundo melhor para as pessoas que temos ao nosso lado e que sobreviverão a nós.
Mas como podem os europeus pensar nestes termos se já não têm mais filhos?
Esse é o sinal do niilismo que perpassa a nossa sociedade, dominada pelo medo de não ter nenhum futuro.
É um medo totalmente infundado?
Em nossa sociedade, a dimensão do anticristo, o príncipe do mal que atua na história, está florescendo na forma de um sentimento apocalíptico, o terror da catástrofe. Por um lado, assume a forma de destruição ambiental. Do outro, a da desintegração da civilização ocidental, ameaçada pela invasão estrangeira.
Em ambos os cenários, é o nosso fim.
Nada disso. Porque, ao lado da ideia de que corremos desesperadamente em direção à devastação, nasceram tantos projetos de salvação da humanidade, como a ideia ecológica encarnada por uma jovem como Greta Thunberg, e o humanismo universal de Carola Rackete, a comandante do Sea Watch 3.