24 Abril 2020
O comentário é de Marian Ronan, professora e pesquisadora de estudos católicos no Seminário Teológico de Nova York, seminário de maioria afro-americana em Manhattan. É autora de Women of Vision: Sixteen Founders of the International Grail Movement, em coautoria com Mary O’Brien. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 22-04-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A teologia ecológica como resposta teológica ao sofrimento, em livro de Denis Edwards.
Nos parágrafos iniciais de seu novo livro, intitulado Deep Incarnation, o teólogo australiano Denis Edwards expõe um problema duplo grave que, hoje, desafia a tradição cristã. De um lado, a necessidade premente de explorar os fundamentos cristológicos da teologia ecológica, algo que os ecopensadores cristãos do século XX como Thomas Berry não fizeram. Qual a relação entre o mundo natural – galáxias, montanhas, mares, animais, bactérias – e a vida, morte e ressurreição de Jesus? De outro lado, a necessidade estreitamente relacionada com uma resposta teológica a ser dada à perda e ao sofrimento pertencentes a uma visão evolutiva do mundo. Qual a relação intrínseca do sofrimento, da perda, da predação e da morte com criação e a encarnação de Jesus Cristo?
Falecido em 2019, Edwards começa respondendo a essas perguntas comentando a obra de cinco teólogos contemporâneos: Niels Gregersen, Elizabeth Johnson, Celia Deane Drummond, Christopher Southgate e Richard Bauckham.
Já em 2001, Gregersen introduz o termo “encarnação profunda” para explicar como a crença cristã na misericórdia divina pode se reconciliar com a crueldade do processo evolutivo. Para este autor, a cruz de Cristo revela o verdadeiro caráter de Deus, um caráter de “autodoação kenótica”. Mas esta autodoação de Cristo também é característica do Deus Criador, o qual está, portanto, intimamente presente no sofrimento criativo e ativamente envolvido na sua transformação. Nos livros Ask the Beasts (2014), Creation and the Cross (2019) e em trabalhos anteriores, Elizabeth Johnson baseia-se na teologia de Gregersen sobre uma “encarnação profunda”.
Especialmente significativa é a ênfase que confere à “ressurreição profunda” como parte essencial da “encarnação profunda”. Para Johnson, Cristo é o “primogênito de toda a criação”, então Deus levará todas as criaturas à salvação final, não apenas os humanos.
Entre as demais dimensões da “encarnação profunda” destacadas por Edwards, fiquei particularmente impressionada pela ênfase dada por Drummond à “pneumatologia profunda”, bem como ao seu emprego de “teodrama” para expressar atividade existencial essencial dos humanos no drama da criação; também pelo tratamento de Southgate dispensado ao sofrimento das criaturas em um mundo evolutivo com uma “teodiceia evolutiva composta”; e pelo emprego hábil de preposições feito por Bauckham para explorar os significados múltiplos da encarnação, com Deus encarnado como Jesus de Nazaré, mas também como outras formas múltiplas através do mundo criado. Edwards detalha ainda a incorporação, por Gregerson, das várias dimensões importantes nesta obra, com Jesus encarnado não só em seu corpo e na Igreja, como no corpo de Cristo, mas também na “profundidade e abrangência das condições sociais e geobiológicas de todo o cosmos”.
Deep Incarnation:
God’s Redemptive Suffering with Creation
De Denis Edwards
160 páginas
Orbis Books
Ano 2019
Em seguida, Edwards passa a considerar os trabalhos de dois Padres da Igreja, Irineu de Lyon (130-198) e Atanásio de Alexandria (296-373), e do grande teólogo do Vaticano II, Karl Rahner, para traçar as leituras cristológicas da criação em épocas anteriores. Admitindo que nenhum desses lidou com as preocupações ecológicas do século XXI, Edwards detalha as ressonâncias entre os trabalhos deles e certos aspectos da encarnação profunda contemporânea. Embora não escrevera sobre o sofrimento divino com as criaturas, por exemplo, Irineu pregou uma teologia radicalmente encarnacional na qual a criação, a encarnação e o cumprimento final estão todos unidos. Mais de um século depois, Atanásio dá à teologia encarnacional lançada por Irineu sua expressão clássica. Ele reconstrói a noção de transcendência divina à luz da representação bíblica do amor kenótico e humilhante de Deus. Esse amor kenótico, expresso na cruz, é o mesmo amor que está em ação no coração de toda a criação.
Rahner, naturalmente, teve a vantagem de escrever 1.500 anos depois de Atanásio, o que lhe permitiu considerar questões como a evolução, que não havia surgido ainda na Igreja primitiva. Baseando-se especialmente na astronomia e na cosmologia, Rahner enfatiza o incompreensível mistério de Deus no tamanho inimaginável do universo. A visão abrangente adotada por Rahner da criação e encarnação fornece uma base para o pensamento encarnacional profundo mais recente.
No capítulo final do livro, Edwards conta com as ideias desses pensadores para propor uma teoria contemporânea da encarnação profunda, na qual a cruz é o “sacramento do sofrimento redentor de Deus com as criaturas”. E os efeitos da cruz se fazem presentes em toda a história cósmica, mesmo antes da morte e ressurreição de Jesus.
Deep Incarnation apresenta uma integração muito necessária da cristologia com a teologia da criação. O livro resulta das palestras de Edwards proferidas na Boston College, e a sua originalidade o faz ser uma leitura desafiadora. É, portanto, uma obra mais apropriada aos cursos de teologia da divisão superior e dos cursos teológicos em nível de seminário, antes do que uma obra para iniciantes. Quem procura uma introdução à encarnação profunda, bem faz por começar com Creation and the Cross, de Elizabeth Johnson.
Tenho duas outras questões para falar sobre este estudo. Primeiro, é sempre tentador, em uma tradição religiosa com fortes raízes greco-romanas, ver uma proposta como a de Edwards como a alternativa para – ou como uma refutação de – uma posição oposta: encarnação profunda X a soberania dominante transcendente. Por mais útil que possa ser uma leitura renovada da encarnação para a cura desse tipo de fenda teológica, o próprio termo “encarnação” – e mesmo “encarnação profunda” – corre o risco de estender a polarização que Edwards e outros teólogos contemporâneos procuram transformar. Se existe uma “em-carnação” (in-carnation), então deve haver também uma “fora-carnação” (out-carnation), não importa o quanto uma alternativa pareça melhor que a outra.
Alguns teólogos propuseram outras possibilidades. A teóloga ecofeminista Catherine Keller emprega o termo “intercarnações” para descrever as interconexões materiais profundas, “a multiplicação e o entrelaçamento de toda e qualquer coisa que se torne carne”, com origem no mistério divino. Aqueles de nós que se apegaram à clareza dogmática da encarnação de Cristo podem querer refletir sobre a complicação do conceito em Keller.
Também me preocupa que a profunda ênfase encarnacional no sofrimento das criaturas reforce o fenômeno chamado “neodarwinismo”, influente escola de pensamento que torna o conceito darwiniano de “a sobrevivência do mais apto” – a competição – na estrutura fundamental da existência. É verdade que, em vários momentos, Edwards usa a frase “a sobrevivência do mais apto”. Mas, ao cruzar a ressurreição bem como o sofrimento e a morte de Jesus com toda a criação, o autor lança uma perspectiva que expande grandemente a noção de sobrevivência dos mais aptos. Em vez de competição, encontramos uma visão da realidade fundada na comunhão de todas as coisas em Deus, uma visão profundamente encarnacional de todo o cosmos. Que essa visão transforme as nossas vidas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cinco teólogos e a teoria da encarnação profunda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU