14 Abril 2020
"Como combinar a revelação de Deus em Jesus como cura, sem sombra e ambiguidade, do humano com a "liberdade" da natureza e do cosmos em que o sofrimento do homem parece tão estridente? Como combinar, nos termos hoje compreensíveis, uma doutrina da providência que combine o desejo de vida plena que Deus nutre para cada criatura com a doutrina da impaciência e do gemido de toda a criação por uma vida em paz e redimida?", escreve Fabrizio Mandreoli, teólogo, filósofo e historiador, tem publicado estudos sobre história da teologia (idade média e era moderna), Vaticano II, Giuseppe Dossetti, Erich Przywara e perspectivas teológicas de Bergoglio, em artigo publicado por Settimana News, 10–04–2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
O ministro da Saúde de Israel Yaakov Litzman, pertencente a um partido considerado ultraortodoxo, ao tratar com a epidemia em andamento, invocou a chegada do Messias, que espera chegue antes da Páscoa. A solução é simples: o Messias virá e trará a salvação. Outros expoentes daquele mundo – que é muito rico em história e tradição espiritual – invocaram o fato de que a Torá protege aqueles que a estudam e que isso isenta das proteções necessárias.
À primeira vista, parecem esquisitices ou o resultado de uma visão radical que não leva em conta a complexa situação da saúde em Israel e na Palestina, mas que, olhando mais de perto, revelam o desafio que esses tempos apresentam a toda teologia que suponha alguma tipo de vínculo e interação entre três elementos: um Deus pessoal, um texto sagrado que ilustra seu projeto cosmológico e salvífico e a história do mundo e dos homens.
Nos últimos dias para uma original revista online, Cursor Zeitschrift für Explorative Theologie, apareceu um artigo digno de atenção. [1] A revista é uma tentativa notável de uma teologia participativa e cooperativa que, saindo dos campos (muitas vezes) fechados da academia e do debate de comunidades confessionais, tenta fazer um discurso público e interdisciplinar sobre várias questões que entrelaçam a teologia e os espaços da vida contemporânea, pessoal e coletiva, incluindo o mundo digital. [2]
Nesse contexto, o autor do artigo, Guenter Thomas, questiona-se de maneira inteligente sobre as consequências para a reflexão teológica da atual pandemia, que não deixa nenhum campo de experiência humana intacto e livre de perguntas, de certa forma, inéditas. O artigo – Theology in the Shadow of the Corona Crisis – realiza uma série de meditações abertas nos campos clássicos da teologia que parecem desafiadas individualmente pelas questões destes meses. Como exemplo, lembramos apenas dois, convidando-os a continuar diretamente a leitura do artigo.
O autor começa observando que o primeiro relato da criação mostra sua bondade fundamental. O próprio homem encontra-se totalmente colocado nesse quadro que, se não for estragado, é substancialmente harmonioso.
A positividade desse primeiro relato, no entanto, é equilibrada pela segunda história em que há uma situação, por assim dizer, de tensão e luta. Aqui a criação não é apenas harmonia e desenvolvimento ordenado da vida, mas luta para contrastar as forças da desordem e do mal. Citando o trabalho de Jon D. Levenson, um exegeta judeu, Creation and the persistence of evil, e alguns textos de Karl Barth, mostra como o agir criador nessa segunda perspectiva também é sempre voltado para conter o caos. A ação de Deus também é confinamento do mal e apelo à colaboração neste trabalho de luta contra a desordem.
Nessa perspectiva, ele se pergunta se um fenômeno pandêmico como o presente não seja justamente a manifestação dessas forças de desordem que permanecem entre os habitantes de uma criação, ainda que boa. Essa pergunta abre uma série de outras com traços às vezes violentos e ameaçadores, presentes nas próprias dinâmicas de vida e da evolução. E reabre a questão da qualidade do desejo criatural pela redenção na espera de novos céus e nova terra.
A teologia é convidada a navegar entre a concepção antidualista – da bondade fundamental do mundo criado e a percepção factual da violência e da doença que habitam as forças da natureza.
A essa temática se conecta diretamente o tema da providência de Deus. Muitas das dificuldades de dizer algo teologicamente sensato hoje estão talvez ligadas à crise geral em que está a reflexão sobre a providência.
O autor da tradição protestante mostra toda a distância entre a percepção atual e a doutrina tradicional contida, por exemplo, no Catecismo de Heidelberg, no qual se afirma que tudo o que acontece na natureza, em última análise, provém da mão amorosa de Deus. Guenter se pergunta: que pastor e teólogo diante da contagem e da solidão dos mortos conseguiria dizer isso hoje? Como se pode combinar a liberdade – certamente não absoluta, mas – presente e muitas vezes perigosa no processo com o acompanhamento fiel de Deus?
Em relação a essas perguntas, ele lembra como a doutrina clássica da providência já foi repensada no século XX, graças a uma nova concentração sobre o evento de Jesus e como vários autores ressaltaram o aspecto da fraqueza e impotência escolhida que tal recentralização em Jesus trouxe como uma aquisição da teologia mais atenta. Ao mesmo tempo, a teologia e muitas vezes a Igreja reafirmam que a história e o mundo estão "nas mãos de Deus", mas o que significa tornar essa afirmação inteligível hoje?
Como combinar a revelação de Deus em Jesus como cura, sem sombra e ambiguidade, do humano [3] com a "liberdade" da natureza e do cosmos em que o sofrimento do homem parece tão estridente? [4] Como combinar, nos termos hoje compreensíveis, uma doutrina da providência que combine o desejo de vida plena que Deus nutre para cada criatura com a doutrina da impaciência e do gemido de toda a criação por uma vida em paz e redimida?
Essas são apenas algumas das muitas perguntas colocadas pelo artigo; seguindo o mesmo método o autor propõe uma série adicional de questões relativas à reelaboração da figura do pecado, o repensamento sobre a antropologia, perguntas à cristologia e à doutrina-praxe da Igreja, perguntas sobre a ação do Espírito de Deus – na criação e redenção – juntamente com o profundo senso da esperança cristã.
O texto termina com algumas anotações sobre ética protestante, em particular alguns dilemas éticos que colocam em crise, efetivamente, o sentido de solidariedade, universalidade e justiça social. Dilemas ligados à disparidade de possíveis curas – e, portanto, à possibilidade ou não de salvar vidas – em diferentes partes do mundo e, muitas vezes, dentro do mesmo país.
Em uma inspeção mais detalhada, esses dilemas – resumidos na pergunta: se acredita realmente que toda vida é digna de ser salva? – não são novos se lembrarmos da crise humanitária – ainda em andamento – dos migrantes e refugiados. Mas – conclui Guenter – essa pandemia coloca a todos os países e seus cidadãos questões de que muitas vezes se optou por desconsiderar para se refugiar em uma zona de conforto ligada à “possibilidade de não ser diretamente afetado” pelos problemas. Problemas e dilemas que, no entanto, agora tocam ou podem tocar – pan-demicamente – todos.
O desafio é certamente ético, humano e político, mas também a teologia e a experiência espiritual são desafiadas a levar a sério – no estudo, na oração, na atenção ao sofrimento humano e ambiental, no compromisso de contribuir para a necessária recuperação do mundo – toda uma gama de questões que não são novas, mas certamente são percebidas com uma seriedade inédita. Se não for feito isso de forma responsável e apaixonada, se poderia correr o risco de ter que invocar – talvez de maneira fatalista e resignada – o advento de algum messias para a resolução desta e das próximas crises humanas, eclesiais, sociais e políticas.
[1] Cursor Zeitschrift für Explorative Theologie. Agradecemos a Andrea Grillo pela indicação.
[2] Exploring New Venues for Theological Discussion in an Open Access Journal.
[3] Cf. o importante PA Sequeri. Il timore di Dio, Vita e Pensiero, Milano 1996.
[4] Cf. G. Greshake. Why Perché l’amore di Dio ci lascia soffrire?, Queriniana, Brescia 2012
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A teologia questionada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU