11 Abril 2020
“A verdade, no entanto, é que há um momento em que somos pegos pela garganta, em que nossos sistemas entram em colapso, incluindo aqueles que se pretendem 'antissistema' e já anunciaram o colapso. (...) Evidentemente, não desprezo a ordem política, nem a pesquisa científica, nem especialmente o esforço médico: eles são absolutamente necessários. Mas eles não medem a grandeza do evento, não nos confrontam com esse mal irredutível que não nos deixa outro recurso senão uma súplica sem resposta: ‘Por que me abandonaste?’”, escreve Fabrice Hadjadj, escritor francês e filósofo, em artigo publicado por La Vie, 08-04-2020. A tradução é de André Langer.
E o que poderia estar à altura do momento? “A caridade nua. A caridade dos cuidadores e dos suplicantes. A caridade dos moribundos e dos vivos, mais vivos do que nunca, porque frequentaram o abismo, porque foram privados até de prestar sua última homenagem ao morto e descobrir o túmulo vazio, porque entenderam que tudo o que não foi recebido e dado foi perdido”.
Fabrice Hadjadj é filósofo e escritor francês, autor de, entre outros livros, A fé dos demônios ou a superação do ateísmo (Vide Editorial, 2018), O paraíso à porta: ensaio sobre uma alegria que desconecta (É Realizações, 2015) e A profundidade dos sexos: por uma mística da carne (É Realizações, 2017).
Os homens sabem que vão morrer, mas dificilmente acreditam nisso. Todos os homens são mortais, certamente, mas eu não sou um homem: eu sou Fabrice, filho de Bernard e Danielle, com lembranças singulares demais para entrar em um silogismo. Sócrates é mortal, com certeza, mas é Sócrates, não eu, quem nunca será capaz de ver a minha morte. Como estarei morto aos meus próprios olhos, pois, para vê-lo, é preciso que meus olhos vivam?
Em maio de 1968, quando a primavera fingiu não conhecer mais o inverno, a psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross terminou de escrever seu famoso livro Sobre a morte e o morrer (Editora Martins Fontes). Ali ela distingue cinco estágios do nosso confronto com o irreparável: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e depois a aceitação, que chega apenas ao final de um longo caminho e não tem mais nada em comum com a resignação anterior.
Nesse tempo de epidemia, para além da reclusão, todos têm sua própria estratégia de prevenção. Especialmente os intelectuais. Porque os intelectuais não são tão afetados quanto os trabalhadores de um restaurante. Suas obsessões não estão em perigo. Eles são os especialistas em regateio, ou melhor, aqueles que cunham suas ideias, de modo que eles podem fingir que seus discursos não foram interrompidos. Quando falam do coronavírus e de suas consequências, não se deixam desarmar e subentendem como Tarrou em A Peste de Albert Camus: “Puro engano! A morte nada é para homens como eu. É um acontecimento que lhes dá razão”. Basta dizer que não há acontecimento, ou que ele é absorvido por uma dialética infalível, e que em breve apontaremos os culpados.
Assim, os colapsologistas fazem colapsologia; os altermundialistas dizem que este é o fim da globalização; os globalistas, de que esta é a prova da necessidade de um governo global; os anti-imigrantes nos lembram que “Ficar em casa” sempre foi seu slogan; os defensores de um poder autoritário celebram a China e suas prescrições drásticas, mas um professor da École Normale Supérieure nos garante que “o melhor remédio contra a epidemia viral é a democracia”; os epidemiologistas elogiam as medidas preventivas e não gostam do doutor Didier Raoult, ao passo que os infectologistas buscam curas e desconfiam de Olivier Véran; os ateus aproveitam a oportunidade para confirmar que Deus não existe e os fundamentalistas se superam para atestar que o mundo é apenas um vale de lágrimas; os ambientalistas mostram o céu azul sobre Pequim, a água transparente nos canais de Veneza, os pássaros retornando às cidades – quando serão os abutres? –, enquanto os tecnólogos respondem que está bem claro que a natureza não é mãe, pois prepara cuidadosamente vírus destrutivos para seus filhos...
A verdade, no entanto, é que há um momento em que somos pegos pela garganta, em que nossos sistemas entram em colapso, incluindo aqueles que se pretendem “antissistema” e já anunciaram o colapso. Como diz Pascal, “o último ato é sangrento, por mais bela que seja a comédia em todo o resto”. O que nos resta então? Evidentemente, não desprezo a ordem política, nem a pesquisa científica, nem especialmente o esforço médico: eles são absolutamente necessários. Mas eles não medem a grandeza do evento, não nos confrontam com esse mal irredutível que não nos deixa outro recurso senão uma súplica sem resposta: “Por que me abandonaste?”.
Sem dúvida, poderíamos ter tomado as precauções. Sabíamos que uma pandemia semelhante à gripe espanhola ocorreria da noite para o dia. Não deveríamos ter tido mais máscaras? Não deveríamos ter tido mais respiradores artificiais? Sem dúvida. Não queremos que as máscaras caiam. Não queremos ser entregues ao sopro do Espírito. Eu primeiro. Nossa sociedade ainda ontem sonhou com inteligência artificial e não com um respirador. Ela temia especialmente os vírus informáticos. O coronavírus só poderia encontrá-la indefesa. Camus observa isso em seus cadernos: “O encontro da administração, que é uma entidade abstrata, e a peste, que é a mais concreta de todas as forças, pode dar resultados cômicos e escandalosos”.
No entanto, além da abstração administrativa, como não teríamos sido pegos desprevenidos? Este vírus muda radicalmente as coisas. Transmitido por uma grande maioria de portadores saudáveis, transforma gestos de ternura em gestos mortais, e faz dos gestos de barreira, de distância, da porta fechada, as marcas de uma caridade nova, mas problemática.
Aqui podemos imitar o espanto de Jesus no Jardim das Oliveiras (Lucas 22, 48): “É com um beijo que entregas o Filho do homem?”. Mesmo ele não se atreveu a esperar. O sinal do amor não poderia tornar-se o sinal da destruição. No entanto, é característico da traição operar essa inversão de sinais.
E como não nos sentirmos ao mesmo tempo traidores e traídos? Eis que nossos beijos de paz se tornaram beijos de Judas. Eis que é bom não visitar nossos idosos isolados e ameaçados pela doença – e assistir à missa pela televisão... Os Estados europeus tomaram medidas sem precedentes, como não havia nem durante as guerras mundiais; e pela primeira vez na história da Igreja, os fiéis católicos mais fervorosos serão privados da Vigília Pascal. Pela primeira vez, a Igreja, que torna obrigatória a comunhão pelo menos por ocasião da Páscoa do Senhor, publica um decreto que instrui o rebanho a não comungar... É por não beijar que você acolhe o Filho do Homem?
Talvez bem. Esse despojamento, longe da fantasia transumanista, recorda-nos nossa condição de filhos e filhas do homem e da mulher: mortais, frágeis e pecadores, que podem esperar, além da saúde, uma salvação... Sim, aqui estamos novamente humanos, retomados pela história humana, a ponto de os textos antigos serem mais atuais do que as nossas estatísticas: a peste de Atenas contada por Tucídides, a de Florença por Boccaccio, a de Londres e Milão respectivamente por Defoe e Manzoni... O progressivismo é abalado. Mas o homem de ontem torna-se mais uma vez o irmão do homem de hoje. A cultura mostra-se mais profunda e mais nova que a inovação tecnológica. Ela expressa nossas eternas expectativas.
Toda provação tem dois gumes. Não implica um início automático. Por definição, ela nos prova, e passamos por ela nos tornando melhores ou piores. A reclusão pode nos levar ainda mais ao virtual e ao entretenimento (o site de vídeos pornográficos Pornhub oferece gratuitamente suas assinaturas premium) e à eutanásia (o governo, ao hesitar sobre a cloroquina, não hesitou em autorizar o Rivotril). Mas também pode nos conscientizar sobre o preço inestimável da proximidade e da presença da qual somos privados. Ela deve nos aproximar da Encarnação e, através dela, da esperança de deixar nossos túmulos.
A Bíblia tem pouco interesse na imortalidade da alma. Ela proclama a ressurreição do corpo. Se se tratasse apenas da imortalidade, não teríamos que deixar o Egito: o Livro dos Mortos seria suficiente para nós, com sua ponderação de espíritos e sua existência na ausência de peso, despida de todo invólucro carnal. Se se trata de ressuscitar, ao contrário, é preciso aceitar morrer. A fé na ressurreição supõe o reconhecimento da nossa mortalidade sem rodeios, mas não sem destino, porque esse lugar da perda torna-se o lugar da oferenda.
A Bíblia pouco se importa com a dignidade dos virtuosos. Ela proclama a redenção dos pecadores. Se se tratasse apenas da virtude, poderíamos ter ficado com Aristóteles ou Cícero. Se se trata de redenção, ao contrário, devemos aceitar que nosso orgulho seja abalado. A fé na misericórdia supõe o reconhecimento da nossa miséria sem maquiagem, mas não sem força, porque o lugar do pecado torna-se o lugar da graça, e de uma graça contagiante, onde, por sua vez, perdoamos na grande comunidade de miseráveis.
O que nos resta então? A caridade nua. A caridade dos cuidadores e dos suplicantes. A caridade dos moribundos e dos vivos, mais vivos do que nunca, porque frequentaram o abismo, porque foram privados até de prestar sua última homenagem ao morto e descobrir o túmulo vazio, porque entenderam que tudo o que não foi recebido e dado foi perdido.
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“Diante da epidemia, resta a caridade nua”. Artigo de Fabrice Hadjadj - Instituto Humanitas Unisinos - IHU