"Na minha biblioteca, existem centenas de ensaios e tratados exegéticos e teológicos sobre a paixão e a morte de Jesus, mas talvez nenhum deles possa provocar uma emoção como essa, nem digo em um agnóstico, mas inclusive em um crente".
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 05-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre a curiosidade dos transeuntes, naquele dia de abril talvez do ano 30, avançava um piquete militar romano liderado por um centurião, o exactor mortis, aquele que deveria verificar a execução capital daquele condenado, o galileu Jesus de Nazaré, que estava carregando nas costas com muita dificuldade o patíbulum, a madeira transversal que seria fixada no poste vertical, já fincado no solo do pequeno monte Gólgota, "crânio" em aramaico, em latino calvarium, local de crucificação. Nesse cenário poderíamos sobrepor as emocionantes imagens de Cristo carregando a cruz, lutando para prosseguir na neve manchada pelo sangue que escorre das feridas das torturas anteriores infligidas pelos soldados romanos, como proposto por Andrej Tarkovskij em seu admirável filme Andrej Rublëv (1966).
No final, o espetáculo macabro, infelizmente sempre apreciado por uma pequena multidão de sádicos reprimidos, termina com a crucificação e a morte por sufocamento do condenado. No eixo vertical da cruz, em uma placa, está o titulus, ou seja, a acusação, escrita em latim, a língua oficial, em grego, a língua internacional da época e no hebraico local: “Jesus de Nazareno, rei dos judeus”, que se tornará a sigla INRI (Jesus Nazarenus Rex Iudeorum) nos séculos seguintes. O Crucifixo, antes de morrer, emitirá sete últimas frases que, séculos mais tarde, na música de Haydn se tornarão um emocionante lamento universal, enquanto para a fé dos cristãos sempre serão o extremo testamento de seu Deus que morre.
La Crucifixion dans l’art, un sujet planétaire,
François Bœspflug avec le concours d’Emanuela Fogliadini
(Foto: Reprodução)
Ninguém naquela tarde de primavera em Jerusalém - era a nona hora, ou seja, três da tarde - teria imaginado que aquela cena trágica, não rara durante o regime de ferro do governador imperial da Palestina, Pôncio Pilatos, se tornaria um emblema simbólico destinado a atravessar os milênios. Essa cruz se transformaria para toda a cultura ocidental em um "sujeito planetário". Esse é o subtítulo que um dos maiores historiadores da arte cristã contemporânea, o francês François Boespflug, impôs em seu impressionante "catálogo" emblemático das representações da crucificação. Um impressionante desfile de imagens, acompanhadas por fichas que muitas vezes são similares a narrativas, que mostra as representações artísticas mais famosas e modestas, as mais antigas e as mais recentes desse evento capital da história da humanidade.
É impossível tentar selecionar apenas alguns exemplos nesse vasto mapa, sempre original: imaginem que somente de 1945 a hoje existem dezenas e dezenas de Crucificações que fluem diante do leitor dessa obra, cruzando por artistas totalmente inesperados, capazes de desmentir a "vulgata" do divórcio entre arte e fé que ocorreu em 1900. Sem mencionar, além disso, que o olhar da Boespflug se estende até a África, Ásia, América Latina e até Austrália e Oceania. Se me pedissem para optar por pelo menos um exemplo, mesmo ao custo de ser óbvio, eu reproduzia o provocador e intrigante “retábulo de Isenheim”, o políptico que Matthias Grünewald pintou entre 1512 e 1514 e que agora é exposto no Museu Colmar, na Alsácia.
Retábulo de Isenheim, obra de Matthias Grünewald. (Foto: Wikiart.org)
Descrever essa cena é diminuir sua brutalidade escandalosa, com os toscos troncos de madeira da cruz, com o corpo lívido de Cristo, seu peito inchado, os pés torcidos, os dedos que se esticam desesperados, a cabeça inclinada até quebrar o pescoço, sob um céu de trevas ... Mas a publicação quase contemporânea de um pequeno e surpreendente ensaio de um famoso historiador francês, Thierry Lentz, me leva a propor outra exemplificação. Velásquez: os pregos da Paixão é o título (em trad. livre) de um pequeno livro muito original, que é o narração histórico-crítica, estética e teológica da peregrinação ao Museu do Prado diante desse Crucifixo, um óleo sobre tela de 1632, que esse estudioso agnóstico viveu e que ele propõe aos seus leitores.
Thierry Lentz, Velázquez: i chiodi della Passione
(Foto: Reprodução)
O resultado é uma extraordinária experiência existencial na qual aquele homem crucificado - que emerge de um fundo totalmente escuro, com seu corpo nu de carne luminosa, quase ereto e solene naquela cruz que se torna seu trono (não é à toa que uma nuvem dourada envolve sua cabeça dobrada) - questiona o espectador sem fixá-lo nos olhos e sem questioná-lo diretamente. Boespflug, na ficha que dedica a esse quadro, intui "um silêncio da morte; mas a serenidade que emana dele já fala da vitória sobre a morte”. E Lentz, por sua vez, conclui: "Diego Velásquez conseguiu pintar o silêncio". E confessa: "Ignoro o porquê, mesmo que tenham passado milhões de visitantes transitando ou parando diante dessa Crucificação, tive a estranha sensação de que ela ‘falou’ justamente comigo".
Esse reconhecimento pessoal é bem fundamentado. Na minha biblioteca, existem centenas de ensaios e tratados exegéticos e teológicos sobre a paixão e a morte de Jesus, mas talvez nenhum deles possa provocar uma emoção como essa, nem digo em um agnóstico, mas inclusive em um crente. Um ateu declarado como Emile Cioran estava certo quando disse que sentia pena dos teólogos que o haviam procurado com seus refinados caminhos especulativos, porque eles não haviam sido capazes de reconhecer um dado elementar: “Toda vez que ouço a missa em B menor ou a Paixão segundo Mateus ou uma sonata de Bach, devo confessar que Deus deve existir e esta é a única prova que os teólogos negligenciaram”. Mas, a esse ponto, não podemos ignorar que os Evangelhos não consideram a morte de Cristo na cruz o estuário definitivo de uma existência dedicada ao abismo do silêncio sepulcral.
É assim que, após as horas da agonia, a escuridão da morte e o ventre do sepulcro, surge o sol do amanhecer da Páscoa. É "o paradoxo da ressurreição", como é o título de uma coleção de artigos teológicos editados por Antonio Landi, recentemente publicado, o último elo de uma cadeia bibliográfica infinita. Aqui, embora não abandonemos completamente o terreno da história, embrenhamo-nos a outras fronteiras, as de fé e do espírito. E para nos guiar, mais uma vez pode ser a arte que - como sugeria Paul Klee - não se contenta com o visível, mas representa o Invisível que está oculto no visível.
Antonio Landi (editor), Il Paradosso della Resurrezione
(Foto: Reprodução)
Mais uma vez François Boespflug, acompanhado novamente por uma estudiosa italiana da iconografia bizantina, Emanuela Fogliadini, se debruça sobre esse tema mais árduo, a Ressurreição de Cristo, com a qual a arte do Oriente e do Ocidente se confrontou. Não é uma tarefa fácil para os artistas, porque os evangelhos canônicos silenciam sobre o ato em si do "despertar e elevar-se" de Cristo da tumba (tal é o valor dos verbos gregos usados), permanecendo suspensos entre o "antes" do sepulcro aberto e o "depois" dos encontros ou “aparições" do Ressuscitado.
Os Evangelhos apócrifos, mas sobretudo a criatividade artística, compensaram esse vazio. E aqui estamos, diante das cinquenta representações selecionadas nesse tipo de álbum que parte de uma das mais antigas representações do Cristo Ressuscitado, sentada em frente ao seu túmulo em um painel de marfim do Castelo Sforzesco, em Milão, para chegar a um acrílico sobre tela do jovem pintor croata Nikola Sari (35 anos) com a sua Nova criação, que quer encarnar as palavras do Cristo glorioso do Apocalipse: "Eis que faço novas todas as coisas" (21,5). E se também para a ressurreição de Cristo tivéssemos que optar nessa galeria extraordinária por uma pintura-emblema, compartilharíamos a escolha da capa do livro de Boespflug-Fogliadini com o poderoso e inesquecível Cristo que sai do sepulcro, o afresco que Piero della Francesca pintou entre 1463 e 1465 para o Palazzo dei Conservatori de sua cidade Sansepolcro, "a pintura mais bonita do mundo", como a havia definido o escritor inglês Aldous Huxley.
François Boespflug avec le concours de Emanuela Fogliadini, Crucifixion, Bayard, Paris, p. 559, 59,90 €
Thierry Lentz, Velázquez: i chiodi della Passione, Salerno Editrice, Roma, p. 138, € 12
François Boespflug - Emanuela Fogliadini, La Risurrezione di Cristo nell’arte d’Oriente e d’Occidente, Jaca Book, Milão, p. 221, € 70
Ver também Antonio Landi (editor), Il Paradosso della Resurrezione, Dehoniane, Bolonha, p. 155, 19 €