O sonho de um homem ridículo: “Ame aos outros como a si mesmo”. A velha verdade que não pegou!

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16 Mai 2022



"O monólogo de 'O sonho de um homem ridículo' soa realmente ridículo e utópico para todos que não compreendem a insistência da personagem em declarar, de diferentes modos, como sua vida foi radicalmente transformada depois de ter 'descoberto a verdade' e de amar a todos sem medida, especialmente aqueles que riem dela, 'mais do que a todos os outros'".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

A novela "O sonho de um homem ridículo. Uma narrativa fantástica", escrita por Dostoiévski em 1877, período em que editou a revista mensal "Diário de um escritor", nasceu "da combinação tensa entre o narrador e o jornalista na obra de um homem decidido a investigar a eternidade com os olhos postos na urgência do dia", disse o tradutor Vadim Nikitin na apresentação da edição publicada pela Editora 34. O homem ridículo, personagem da obra, acrescenta, "prega uma utopia anti-iluminista".

 

O monólogo soa realmente ridículo e utópico para todos que não compreendem a insistência da personagem em declarar, de diferentes modos, como sua vida foi radicalmente transformada depois de ter "descoberto a verdade" e de amar a todos sem medida, especialmente aqueles que riem dela, "mais do que a todos os outros". O homem de São Petersburgo
se apresenta ao leitor do seguinte modo:

 

"Eu sou um homem ridículo. Agora eles me chamam de louco. Isso seria uma promoção, se eu não continuasse sendo para eles tão ridículo quanto antes. Mas agora já nem me zango, agora todos eles são queridos para mim, e até quando riem de mim - aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria junto - não de mim mesmo, mas por amá-los - se ao olhar para eles não ficasse tão triste. Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu conheço a verdade. Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, não vão entender".

 

 

Segundo nos relata, ele conheceu a verdade "numa noite tenebrosa, na mais tenebrosa noite que pode haver", em um período de sua vida em que tudo lhe era indiferente. Como ele diz, "para mim dava no mesmo que existisse um mundo ou que nada houvesse em lugar nenhum" - fazendo referência àquela que é uma das questões que tanto perturbou os filósofos e os fizeram dar voltas e voltas. Marchando para seu próprio suicídio, planejado meses antes, ele foi interrompido por uma menina que o fez "sentir de repente que nem tudo" lhe era "indiferente". Atormentado por seus próprios pensamentos, ele adormece e em um sonho lhe é anunciada "a Verdade". Ao despertar, "tomado de um espanto extraordinário", levantou "as mãos para o alto" e invocou "a verdade eterna" e antes mesmo que pudesse concluir, "um êxtase desmedido elevava todo" o seu "ser", juntamente com um sentimento de amor pelos homens, mesmo por aqueles que "não entenderia jamais".

 

 

Sobre os homens que ele ama, agora mais do que antes, e seu entendimento iluminista, faz o seguinte diagnóstico:

 

"[...] privados de toda a fé numa felicidade superior, chamando-a de conto da carochinha, quiseram a tal ponto ser inocentes e felizes de novo, mais uma vez, que caíram diante dos desejos do seu coração como crianças, endeusaram esse desejo, construíram templos e passaram a rezar para suas próprias ideias, para o seu próprio 'desejo', ao mesmo tempo acreditando plenamente na sua impossibilidade e na sua irrealidade, mas adorando-o banhados em lágrimas e prostrando-se diante dele. E, no entanto, se pelo menos fosse possível que eles voltassem àquele estado inocente e feliz do qual se privaram, e se pelo menos alguém de repente o mostrasse a eles de novo e lhes perguntasse: querem voltar? - eles certamente recusariam. Respondiam-me: 'E daí que sejamos mentirosos, maus e injustos, sabemos disse deploramos isso, e nos afligimos por isso a nós mesmos, e nos torturamos e nos castigamos mais até, talvez, do que aquele Juiz misericordioso que nos julgará e cujo nome não sabemos. Mas temos a ciência, e por meio dela traremos de novo a verdade, mas dessa vez a usaremos conscientemente, o entendimento é superior ao sentimento, a consciência da vida - superior à vida. A ciência nos dará sabedoria, a sabedoria revelará as leis, e o conhecimento das leis da felicidade é superior à felicidade'. Era o que eles me diziam, e depois de tais palavras cada um passava a amar a si mesmo mais do que aos outros, e nem podiam fazer diferente. Cada um tornou-se tão cioso da sua individualidade que não fazia outra coisa senão tentar com todas as forças humilhar e diminuir a dos outros, e a isso dedicava a sua vida".

 

 

 

Nas sociedades organizadas por esses homens que não são ridículos, resume, surgiu a "escravidão" e "os justos", "sangue santo correu nas portas dos templos" e "pessoas começaram a imaginar como fazer com que todos se unam de novo, de modo que cada um, sem deixar de amar a si mesmo mais do que aos outros, ao mesmo tempo não perturbe ninguém, e possam viver assim todos juntos como que numa sociedade cordata".

 

Enquanto não paravam guerrear e de matar uns aos outros por causa dessa ideia, "os beligerantes acreditavam firmemente ao mesmo tempo que a ciência, a sabedoria e o sentimento de autopreservação vão afinal obrigar o homem a se unir numa sociedade cordata e racional", e os "'sábios' esforçavam-se o mais depressa possível por exterminar todos os 'não-sábios' que não entendiam a sua ideia, para que não interferissem no triunfo dela".

 

Enquanto eles se "vangloriam" das suas ideias, o homem ridículo aconselha:

 

"O principal é - ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem mais nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de se acerta. E no entanto isso é só uma velha verdade, repetida e lida um bilhão de vezes, e mesmo assim ela não pegou!"

 

 

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