15 Mai 2019
O novo trabalho de Massimo Recalcati
"La notte del Getsemani”
(A noite do Getsêmani, em tradução livre).
A noite do Getsêmani aparece como a noite da traição. As figuras que a encarnam são notoriamente duas, aparentemente distantes e opostas. Estas são as figuras de Judas e Pedro. O que as une e o que as separa? Em primeiro lugar, as une o fato de que ambas são parte dos doze discípulos de Jesus, e Pedro e Judas estão entre os escolhidos. Eles são dois de seus alunos mais próximos, os seus apóstolos, seus companheiros de viagem. Judas, o Iscariotes, não menos que Pedro. Estão entre os mais próximos de Jesus. Figuras de amigo, de irmão e de discípulo. O que significa que a experiência mais radical da traição nunca vem do desconhecido, mas de quem nos é próximo - do mais próximo - daquele em quem depositamos nossa total confiança.
O texto é de Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, publicado por La Repubblica, 13-05-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A "traição" do desconhecido pode ter somente a natureza do engano. Enganar não implica nenhum amor, nenhuma proximidade ou vizinhança. É apenas uma astúcia cínica. Nenhum pacto simbólico deve ser quebrado, nenhum amor ofendido. O artífice do engano opera lucidamente, sem paixão, sem nenhum obstáculo afetivo, porque aos seus olhos o enganado não tem nenhum valor. A verdadeira traição é apenas para o mais próximo - é a traição do amigo, do irmão, do amado, do meste - para com aquele a quem somos ligados por um pacto baseado na palavra: "Você é minha mulher", "você é meu mestre”, “você é meu amigo”. A verdadeira traição, ao contrário do engano, sempre quebra um pacto simbólico baseado na lei da palavra. Em resumo, pode-se trair apenas aquele que realmente depositou sua confiança em nós, somente aquele que nos reconheceu como essencial para sua vida: o próprio mestre, o próprio amigo, a própria mulher, o próprio homem.
Trata-se, diz Jesus, de um dos doze porque "um de vocês me trairá". Não são os sacerdotes do templo que o traem, mas são os amigos, os companheiros de viagem, seus mais caros alunos, os mais próximos. Jesus vive o que um professor muitas vezes vive: aqueles que o amaram lhe voltam as costas, abandonam-no em momentos da necessidade, quando sua glória se apaga, quando o seu nome - o nome do mestre - tornar-se um "escândalo". O texto bíblico situa a traição em uma cena originária: a primeira traição é a de Adão e Eva para com Deus. Cada dívida simbólica para com o Criador é cancelada em nome do direito à liberdade de desfrutar que Adão e Eva - impulsionados pela malignidade da serpente - reivindicam. Deus não é aquele a quem eles devem a vida, mas um obstáculo à sua vida.
No entanto, na noite do Getsêmani, a cena da traição se repete de um modo muito mais rico de nuances do que a cena original da traição de Adão e Eva. Os traidores, Judas e Pedro, não são, na verdade, figuras semelhantes às de Adão e Eva e, não por acaso, a sua traição terá resultados profundamente diferentes. Diante da traição que se aproxima, Jesus indica, durante a última ceia, como o traidor não esteja fora, mas dentro de nós, entre nós, um de nós, ao nosso lado. Ele comeu conosco, compartilhou conosco a mesa: "A mão daquele que me trai - diz Jesus - está comigo, na mesa".
O que poderia ser mais íntimo do que comer no mesmo prato, comer juntos, compartilhando a mesma mesa? Aquele que trai não vem de outra casa, mas mora em nossa própria casa. A última ceia é a última porque alguém traiu, rompeu o pacto simbólico que ligava os doze, dissolveu a comensalidade simbólica de estar juntos à mesa. É assim que Jesus evoca a figura de Judas. Ele é um de vocês, ele é um de nós, ele está perto de nós, ele não é um inimigo, mas um amigo, um irmão, um discípulo. A angústia então se espalha como um espectro entre os discípulos: quem é o traidor se perguntam olhando um para o outro, perdidos?
A festa da Páscoa se transforma em um pesadelo: quem entre nós traiu o Mestre? Deve-se insistir na cena dessa traição. Acontece durante a ceia que celebra a festa pascoal. É uma ceia íntima onde o Mestre compartilha a mesa com seus discípulos. Não é absolutamente secundário: a traição acontece enquanto se está compartilhando o pão, enquanto se come junto. Acontece na intimidade do convívio. O traidor come no mesmo prato que o Mestre; ele se alimentou de sua palavra, ele se beneficiou de seu ensinamento, ele compartilhou a mesma mesa. E agora ele quer destruir seu mestre, cuspir na palavra que o formou, não demonstra nenhuma gratidão pelo que recebeu, não reconhece nenhuma forma de dívida.
Mas o que determinou a traição de Judas? Ele era, como todos os outros discípulos, profundamente apaixonado por Jesus. A sua palavra tinha a força de um chamado irresistível. Ele é um mestre que sabe provocar grandes paixões. Jesus, portanto, é uma figura radical do desejo. Judas e Pedro responderam juntos ao chamado. Abraçaram sua palavra. Eles se colocaram como alunos reconhecendo em Jesus seu mestre comum. Judas, portanto, não é o maligno, ele não é o demônio, não é Satanás. Ele foi acima de tudo um apaixonado pelo seu mestre.
O trauma da traição sempre implica uma decepção do amor? Uma queda da idealização?
A traição de Judas é a vitória agressiva do aluno sobre o mestre. Judas subverte violentamente sua relação de descendência, a dívida simbólica que o ligava a Jesus. O Mestre é degradado, destituído de sua posição de mestre, desconsiderado, renegado, entregue, traído. Sua palavra não contém mais nenhuma verdade; sua vida não vale mais do que trinta moedas.
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Ver o verbete traição. Assim o beijo de Judas nos torna realmente humanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU