04 Mai 2022
"Após mais de 40 anos de reformas, a China pensou que poderia evitar toda desaceleração econômica graças ao seu sistema de duplo padrão, que é relativamente aberto por fora e relativamente fechado por dentro. No entanto, a conjuntura atual prova que isso é impossível".
A opinião é do sinólogo italiano Francesco Sisci, em artigo publicado por Settimana News, 03-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em julho de 1958, os principais líderes já estavam cientes dos fracassos do Grande Salto Adiante e do sofrimento das pessoas comuns. Marshall Peng Dehuai, um amigo pessoal de Mao Zedong desde quase a infância, denunciou o seu pesar. Ele implorou ao presidente para interromper os planos falhos em uma famosa conferência em Lushan. Mas Mao rejeitou as críticas e rebaixou Peng, negando a fome que já estava se instalando.
Nos dois anos seguintes, apesar da fome na zona rural chinesa, Pequim continuou exportando grãos para a União Soviética. Somente em janeiro de 1962 é que as políticas foram revertidas. Mao foi rebaixado. Os negócios do dia a dia foram transferidos para Liu Shao Xi, que então se tornou chefe de Estado, enquanto Mao permaneceu como presidente do partido.
Pode haver lições profundas a se tirar desses eventos há 60 anos, quando confrontados com as escolhas atuais contra a Covid na China. A China conseguiu superar a primeira onda da epidemia impondo regras rígidas de comportamento à população, e as pessoas, confiando no governo, seguiram essas regras.
O resultado foi que, no verão de 2020, a Covid, que havia começado na China, estava se espalhando descontroladamente em todo o mundo, enquanto estava sendo controlada na China. Os países e a mídia ocidentais, que apressadamente retrataram o surto de Covid como um “momento Chernobyl” [1] para a China, logo foram ridicularizados pela contrapropaganda chinesa. Esta alegou que Pequim estava provando a sua coragem, e, de fato, a luta contra a doença era uma evidência de que o sistema chinês era melhor do que o caótico sistema democrático ocidental.
No entanto, dois anos depois, o vírus sofreu uma mutação: ele é menos perigoso, mas também mais infeccioso.
Além disso, laboratórios de pesquisa estadunidenses e europeus inventaram vacinas eficazes capazes de conter a onda da doença. Além disso, a resposta social desordenada nos países ocidentais permitiu que as sociedades criassem algum tipo de imunidade de rebanho e acostumou as pessoas a conviverem com o vírus e não a estarem totalmente a salvo dele. A epidemia no Ocidente tornou-se endêmica; portanto, em todo o mundo, a Covid não é mais um problema significativo.
Ao mesmo tempo, no entanto, a China não desenvolveu uma vacina eficaz, a sua população não ficou imune e, o mais importante, o povo chinês não se acostumou a conviver com a Covid. O resultado é que, na realidade, a China está atualmente mais sujeita à doença e poderia ter uma taxa de mortalidade mais alta se as regras rígidas fossem repentinamente relaxadas. Além disso, a economia está quase paralisada, e o país está ficando mais isolado do restante do mundo, com enormes consequências.
Isso provou que a resposta social desordenada do Ocidente e o seu desempenho excelente na ciência lhe permitiram superar melhor a epidemia. Nesta fase, a China deveria mudar as suas políticas e decidir conviver com a Covid, iniciar uma campanha de vacinação em massa e fazer com que as pessoas se acostumem com a ideia de conviver até certo ponto com a doença.
No entanto, assim como em 1958, talvez a liderança política não esteja pronta para admitir um erro que teria graves consequências. Mao decidiu seguir em frente em vez de reconhecer que o Grande Salto Adiante estava matando milhões de pessoas de fome. Essa decisão acabou levando à maior carestia causada pelo ser humano em todo o mundo, matando entre 20 e 60 milhões de pessoas de uma população de cerca de 500 milhões. Foi um número de mortos extremamente trágico em tempos de guerra, muito além da imaginação em tempos de paz.
Agora, é claro, estamos longe dessa situação, mas o preço que a política de “Covid zero” está infligindo à economia chinesa é alucinante. As estatísticas mostram que o transporte de mercadorias caiu pela metade dentro da China no primeiro semestre deste ano. As pessoas em Xangai, a cidade mais rica da China, não têm comida suficiente, morrem em casa porque não podem ser transferidas para o hospital, ficam doentes nos bairros em quarentena, e as economias das pessoas comuns estão desmoronando.
Joerg Wuttke, presidente da Câmara de Comércio Europeia e um habitual defensor da economia chinesa, ficou extremamente alarmado com a situação [2].
No entanto, a liderança chinesa parece não se incomodar com esses fatos básicos. Ela continua com a política de “Covid zero”, simplesmente ignorando a realidade e o sofrimento das pessoas comuns, pensando que uma mudança de abordagem poderia ser dura para as pessoas aceitarem e mais dura politicamente para digerirem.
A realidade é que, assim como o vírus sofreu uma mutação, é impossível manter a política de “Covid zero”, e, mais cedo ou mais tarde, a China terá que aceitar a realidade e a necessidade de conviver com a Covid e não forçar a sua restrição mental à realidade.
No entanto, a recusa em enfrentar esse fato básico parece ter a ver com um fio condutor que une o Partido Comunista desde o tempo da conferência de Lushan em 1958 até os tempos atuais.
Ao longo desses 64 anos, a ênfase tem sido que o problema não é a política, mas sim a sua implementação; não é a ideia, mas sim a aplicação do conceito e as pessoas responsáveis por aplicá-lo. A transferência de culpa que possibilita a execução de políticas insustentáveis parece estar nos genes do sistema político chinês, que prefere as ideias à realidade. Esse é o DNA dos erros.
O erro pode ser enfrentado de três maneiras: ignorar os fatos e dar continuidade a essa política falha, causando danos insondáveis ao povo chinês comum e à economia chinesa. Outra solução seria aquilo que ocorreu em 1960, quando a China culpou Mao por tomar decisões erradas, rebaixando-o e substituindo-o por outra pessoa. No entanto, isso deixaria em vigor o sistema que permitiu que a má decisão fosse tomada.
A terceira solução seria reconhecer o elemento-raiz que liga esses dois fatos com 64 anos de distância. Ou seja, o sistema está com defeito; o sistema permitiu que Mao levasse adiante políticas que não funcionavam. Esse sistema permitiu que uma política de “Covid zero” se tornasse uma questão política ideológica, e não uma questão política: o que é melhor para o país, em primeiro lugar? Quais são as chances de que essa questão seja enfrentada e como ela será enfrentada no futuro próximo?
Não há nenhum sinal de que a alta liderança esteja recuando da sua política de “Covid zero”. Ela está tentando descobrir maneiras mais ágeis de aplicar o seu lockdown, mas todas as formas de aplicá-lo estão aquém de fornecer um resultado real.
As pessoas podem desejar que o desastre da “Covid zero” possa derrubar o presidente Xi Jinping; no entanto, isso parece improvável neste momento, porque, assim como o Grande Salto Adiante provou, o povo chinês tem uma tolerância considerável ao sofrimento, e os líderes chineses têm uma resiliência ainda maior.
Agora, é claro, o povo chinês não suportará a fome, e o lockdown certamente é mais tolerável. Além disso, há um problema real que não existia na época do Grande Salto Adiante. O problema agora é que, de repente, permitir que a população chinesa conviva com a Covid custaria caro. Embora a variante Ômicron seja menos letal do que a primeira variante Delta, ela ainda pode ser fatal, especialmente para os idosos.
A terceira opção seria mudar o sistema.
Nesta situação, mudar o sistema poderia ser altamente desestabilizador. Apenas substituir Xi Jinping por outra pessoa sem alterar o sistema não resolveria a raiz do desastre; apenas começaria a abordar a fonte.
No entanto, mudar o sistema e a liderança pode desestabilizar a China e o mundo. Então, uma solução poderia ser talvez mudar o sistema, mas, paradoxalmente, não mudar a liderança e assumi-la como pedra angular na passagem entre sistemas.
Essa é uma possibilidade teórica. No entanto, olhando para as coisas na China a partir de Roma, não está claro o quão provável isso poderia ser. Também não está claro como o sistema reagiria ao ser culpado por algo, quando a sua primeira reação é culpar o líder.
Mesmo assim, nessa situação, poderia ser útil olhar para a transformação japonesa. Durante o século XIX no Japão, a restauração Meiji mudou todo o sistema sem mudar o imperador; essa foi a mesma abordagem que os estadunidenses usaram nos anos 1950 no Japão. Eles mudaram toda a estrutura sem mudar o seu pivô, o imperador. O homem foi definitivamente culpado até certo ponto pela Segunda Guerra Mundial; no entanto, suas responsabilidades foram apagadas em nome da estabilidade do Japão. Essa talvez seja mais ou menos a mesma situação; o sistema deve ser alterado na China, proporcionando alguma estabilidade.
O que é necessário são reformas políticas massivas e há muito tempo esperadas.
No fim da Revolução Cultural, o Partido Comunista Chinês reconheceu que era necessária uma modernização forçada: a democracia. A hesitação na repressão ao Muro da Democracia em Pequim no fim dos anos 1970 refletia um acirrado debate interno ao partido sobre a necessidade de seguir em frente com a democracia.
Apesar da repressão ao movimento democrático, a democracia ainda estava no ar nos anos 1980, até a repressão ao movimento de Tiananmen em 1989.
Nos meses seguintes, o Partido Comunista tirou as lições erradas da queda da União Soviética; ou seja, as reformas nunca deveriam ter sido iniciadas.
No entanto, 30 anos depois, enfrentando os dois desafios da política de “Covid zero” e da guerra ucraniana, a Rússia, que nutria a ideia de que as reformas nunca deveriam ter começado, provou exatamente o contrário; as reformas na Rússia nunca foram suficientemente profundas, e, de fato, foram reformas malfeitas que provocaram os atuais fracassos na Ucrânia.
Na época da Guerra da Coreia em 1950, uma óbvia luta ideológica entre comunismo e anticomunismo já havia começado há algum tempo. Essa luta havia começado cerca de 30 anos antes, com o sucesso da revolução bolchevique em Moscou.
A luta foi tão importante que os nazifascistas, até o início da Segunda Guerra Mundial, pensavam que, no fim, as democracias liberais optariam por apoiar a Alemanha e a Itália anticomunistas contra a URSS comunista, e não o contrário.
Além disso, na época da Guerra da Coreia, as economias dos dois sistemas – o sistema sob o comunismo e as democracias liberais – estavam separadas.
Finalmente, os países em conflito estavam ao mesmo tempo preparados para a guerra porque tinham acabado de sair do conflito mundial. E também estavam preocupados com uma nova grande guerra por causa da sua experiência recente e não queriam uma escalada descontrolada. Todos esses elementos estão faltando hoje na guerra na Ucrânia.
Há uma guerra, mas não há uma divisão ideológica clara e aceita dentro dos países em conflito. De fato, uma parte não insignificante da opinião pública no Ocidente e na Europa gostaria de permanecer neutra ou até apoiar Moscou. Não há nenhuma preparação psicológica, social, cultural e estabelecida como a batalha comunismo-anticomunismo para sustentar o confronto.
Os sistemas econômicos estão integrados, razão pela qual agora é um desafio fazê-los funcionar em plena capacidade e ao mesmo tempo enfrentar o conflito. Mesmo o fato de pensar em chantagens econômicas, como o corte do fornecimento de gás, é um fardo para ambos os lados e deveria funcionar para curvar a vontade dos outros.
Finalmente, não há nenhuma preparação para a guerra.
A Europa esqueceu a realidade da guerra durante 80 anos. Portanto, ela ao mesmo tempo extremamente assustada com essa eventualidade e também em uma posição muito superficial em relação a ela, porque não compreende o que pode ou não criar uma escalada militar.
Nessa situação, portanto, há dificuldades específicas e precisas para vários países europeus, a começar pela Alemanha, o coração da Europa em muitos sentidos.
A Alemanha depende das importações russas em cerca de 60% do seu gás. Ao mesmo tempo, ela entende que o retorno da Rússia para mais perto da sua fronteira oriental traz de volta alguns fantasmas geopolíticos. Um deles é o lebensraum, o espaço vital que assombra os alemães há séculos, no centro da Europa e sem fronteiras naturais precisas.
Assim, Berlim, por exemplo, aumentou o seu orçamento de defesa para 2% do PIB, mas ao mesmo tempo ainda não foi muito ativa no fornecimento de armas para a Ucrânia. Por outro lado, o Reino Unido, junto com Ucrânia, Polônia e outros países da ex-União Soviética, talvez não queiram um compromisso com Moscou, mas estão pedindo uma vitória clara, porque não confiam na Rússia.
Portanto, a situação é altamente fluida, enquanto os Estados Unidos, que voltaram a ser o farol político do continente europeu, parecem distraídos, pelo menos em parte. Olhando para os jornais estadunidenses, não parece que a guerra na Ucrânia seja uma questão vital como foi a Guerra Fria ou como ela é para todos os países europeus.
Washington, a partir da Europa, parece um líder essencial, mas parcialmente desatento, o que pode trazer de volta a distância entre os dois lados do Atlântico. Por outro lado, os Estados Unidos talvez podem estar cautelosos em se envolver demais no conflito e, assim, alimentar a propaganda russa alegando que se trata apenas de uma guerra por procuração.
A Rússia e a Ucrânia parecem hoje querer um sucesso claro e nenhum compromisso. Assim, não entendem os riscos que correm nesse contexto geral de despreparo para um conflito longo e sustentado.
Em 1950, os norte-coreanos invadiram o sul, e os estadunidenses não estavam preparados. Washington interveio e levou os comunistas de volta quase à fronteira da China. Na época, parecia que os Estados Unidos estavam prestes a invadir a China, onde os comunistas haviam tomado o poder apenas alguns meses antes. Naquele momento, os estadunidenses e seus aliados ficaram surpresos quando as tropas chinesas entraram no conflito e novamente empurraram os estadunidenses de volta para uma linha de trégua.
Primeiro, os russos, que apoiavam os comunistas norte-coreanos, e depois os países que seguiam os Estados Unidos subestimaram a determinação alheia de não perder. Depois, ambas as partes perceberam que haviam chegado a uma trégua.
Talvez essa percepção clara esteja faltando na Ucrânia hoje.
Os russos precisam de alguns resultados mínimos. Caso contrário, pode haver escaladas. Por outro lado, a OTAN também não pode se dar ao luxo de uma aparente derrota na Ucrânia, o que daria uma luz verde política à agressividade de Moscou ou de outros. Há rumores de que Moscou poderia convocar uma mobilização geral no dia 9 de maio. Se isso ocorrer, a Otan também poderá se mobilizar e enviar tropas para a Ucrânia. Seria, então, um jogo totalmente diferente.
Portanto, já chegamos a um ponto sem retorno; é preciso um compromisso, porque a continuação do conflito pode se tornar cada vez mais difícil de se sustentar para ambas as partes.
Se isso ocorrer, não melhorará a situação da China em consequência da guerra: o congelamento de bens estrangeiros russos pelos Estados Unidos. Em caso de conflito, os Estados Unidos também poderiam sacar parte ou todos os seus enormes ativos e reservas estrangeiras. A China achou que poderia estar sã e salva com três trilhões em fundos. Isso poderia amortecer quaisquer sanções que os Estados Unidos impusessem.
É claro que esses ativos pertencem a um circuito global amplamente controlado pelos Estados Unidos, na realidade. Então, Pequim está encurralada: ou aceita as regras internacionais de comportamento ou seus bens podem ser congelados ou até confiscados em caso de guerra.
Está ficando aparentemente claro para a China que não há nenhuma alternativa real ao dólar. Outras moedas importantes (euro, iene, libra esterlina etc.) e até o ouro e outras commodities também estão vinculadas ao dólar. O RMB não é totalmente conversível, e o fato de se ter permitido que ele fosse amplamente utilizado no exterior nos últimos anos criou diferentes taxas de câmbio entre o RMB doméstico e estrangeiro, algo que estava saindo do controle e que Pequim não quer repetir.
O banco central da China teria realizado uma reunião na semana passada para lidar com esse risco, mas saiu sem nenhuma solução, como argumentou o atento observador da economia chinesa Michael Pettis. Não há soluções inteligentes. Em meio à Covid, a China pode traçar estratégias para manter suas fábricas funcionando e exportando, ganhando assim uma preciosa moeda estrangeira para manter sua economia à tona. Ao mesmo tempo, internamente, as pessoas não gastam nem consomem.
No entanto, em última análise, esse dinheiro pertence à China apenas enquanto Pequim não for contra as normas globalmente aceitas. Não se trata apenas da China e de um malvado cérebro estadunidense. Trata-se de mercados globais desenfreados. Os Estados Unidos, por exemplo, em 2008 passaram por uma enorme crise financeira; isto é, as finanças globais atingiram até mesmo o seu “cérebro” estadunidense.
Após mais de 40 anos de reformas, a China pensou que poderia evitar toda desaceleração econômica graças ao seu sistema de duplo padrão, que é relativamente aberto por fora e relativamente fechado por dentro. No entanto, as sanções ocidentais contra a Rússia provam que isso é impossível.
Tome isso, mais a Covid, mais as consequências futuras da derrota política russa na Ucrânia, e então o que resta à China fazer? Esperar os Estados Unidos desmoronarem primeiro? É possível, mas atualmente não é provável. Culpar Xi e substituí-lo por outra pessoa? A questão não é o imperador, mas sim o sistema imperial. O problema não é Fausto vender a sua alma, é o Diabo querer comprá-la.
2. Veja aqui.
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O preço da Covid e da guerra. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU