"Borghi primeiro reconstrói a história da pesquisa sobre a razão da jactância dentro da soteriologia paulina (c. I, pp. 9-48). Os primeiros passos dos estudos consideravam a crítica de Paulo contra a jactância do judaísmo considerado como uma religião baseada nas obras, uma religião auto-meritória", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 15-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A tese de doutorado em Teologia Bíblica defendida em 2020 na Faculdade de Teologia da Itália setentrional pela irmã Franciscana Missionária do Menino Jesus, Anna Maria Borghi, tem como tema o léxico da "jactância" (vanglória) - chaukaomai, chaukēsis etc. - como expressão particular da nova identidade do crente, pessoal e relacional, em Jesus Cristo como único salvador.
A autora analisa o tema na Carta aos Romanos (especialmente Rm 1-5), mas também nas perícopes de Fl 3, 2-16 e Gl 6, 11-17.
Borghi primeiro reconstrói a história da pesquisa sobre a razão da jactância dentro da soteriologia paulina (c. I, pp. 9-48). Os primeiros passos dos estudos consideravam a crítica de Paulo contra a jactância do judaísmo considerado como uma religião baseada nas obras, uma religião auto-meritória.
Com E.P. Sanders e J.D. Dunn começou o período da Nova Perspectiva sobre Paulo: a jactância criticada seria aquela fundada em uma base étnica, ou seja, aquela de ser o povo escolhido por Deus.
Uma fase posterior é marcada pela obra de N. T. Wright com a Fresh Perspective: se criticaria a jactância nacional daqueles que se declaram a "solução" para o problema da humanidade. Com J.M.G. Barclay a jactância criticada seria aquela considerada como negação da incongruência da graça.
ANNA MARIA BORGHI, Il vanto nella Lettera ai Romani. Un profilo dell’identità credente (Dissertatio Series Mediolanensis - 31), Edizioni Glossa, Milão 2021, pp. 340, € 47,00, ISBN 9788871054698.
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A autora estuda a jactância como léxico soteriológico relativo à identidade do crente como seu elemento fundador.
O método de estudo utilizado por Borghi (c. II, pp. 49-58) é o sincrônico-pragmático, caracterizado por uma integração do perfil literário do gênero epistolográfico com o retórico, que juntos qualificam os escritos paulinos, em particular a perícope de Rm 1-5 tomado em exame.
Procede-se então a um levantamento semântico-lexicográfico dos lexemas pertencentes ao campo semântico da jactância, para descobrir o seu valor intrínseco e os possíveis âmbitos de pertinência (c. III, pp. 59-80).
O C. IV da pesquisa (pp. 81-152) estuda a jactância judaica que é contestada. Depois do prescrito (Rm 1,1-7) e da abertura (Rm 1,8-17), Rm 1,18–3,20 contém a primeira parte do probatio da tese exposta em Rm 1,16-17. Rm 2, 17-24 e 2, 25-29 fazem parte da pars destruens paulina no que diz respeito à jactância judaica.
A autora prossegue com uma análise exegética abrangente. Paulo contesta a jactância do judeu a partir de sua transgressão da Lei e, a partir das implicações da jactância contestada contra o judeu, reformulam-se os critérios de sua identidade.
No c. V (pp. 153-228) a autora passa a analisar a jactância judaica que é excluída. Rm 3,21-31 e Rm 4 fazem parte da pars construens da primeira parte da carta paulina. Também neste caso se analisam as perícopes em nível exegético.
Em Rm 3,21-31 a exclusão da jactância judaica é motivada pelo evento da justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo.
Em Rm 4, 1-25 a jactância de Abraão é desmentida em virtude da justiça de Deus sem a Lei testemunhada pela Lei. Abraão é justificado por sua fé quando ainda era pagão e incircunciso. E isso é reconhecido pela Lei como Escritura e profecia. Em conclusão, afirma-se que a jactância judaica está excluída da "lei da fé" que Deus gratuitamente computa como justiça "para todos os que creem" como Abraão.
A jactância ligada às obras é negada duas vezes. Explicitamente excluída na primeira recorrência, é suposta, mas depois desmentida na segunda. Tudo isso "em virtude da fé, isto é, como na primeira parte da probatio, é deduzido como corolário soteriológico de um princípio teológico. Chega a configurar a identidade crente em nível fundador de uma forma completamente independente da dimensão étnica” (p. 224).
Os estatutos étnicos do judeu e do gentio permanecem distintos - nem confusos nem negados - mas são equiparados também diante da paternidade e da herança da promessa de Deus a Abraão apenas em virtude da mesma fé. Invalidando sua hipotética vanglória pelas obras, Paulo "implica igualar a condição do Patriarca não apenas com a dos gentios que não têm obras, mas também com a dos judeus em relação aos quais ele não é um caso único, porque a Escritura atesta que desde o princípio e para todos o único critério da justiça de Deus é a fé, raiz da sua paternidade e da herança da promessa para todos” (p. 227).
Em síntese, conclui a autora, "aquele evangelho que Paulo havia enunciado desde o início da carta (Rm 1,1-2), aquela justiça de Deus pela fé da propositio geral (Rm 1,16-17), qualificada em relação a Cristo a partir de Rm 3, 21-22a, é para todos os que creem, "primeiro para o judeu e depois para o grego", para usar uma expressão que Paulo repetiu várias vezes e que, no encerramento de Rm 4, não retoma, plausivelmente porque agora a identidade crente, que ao invés se repete várias vezes, reúne os estatutos étnicos sem qualquer distinção quanto à justificação e, portanto, sem qualquer jactância diante de Deus" (ibid).
O c. VI (pp. 229-274) representa o núcleo central da obra da autora. Rm 5,1-11 é analisado em nível exegético, onde a jactância do crente em Deus por meio de Jesus Cristo é expressa três vezes (vv. 2.3.11).
Depois de estudar o vocabulário, os sujeitos envolvidos, as formas verbais e as figuras de estilo, conclui reconhecendo que a jactância do crente é uma categoria da soteriologia paulina. A jactância do crente repousa em Deus por meio do Senhor Jesus Cristo, em quem se manifesta o amor de Deus pelos fracos, ímpios, pecadores e inimigos. Com a morte de seu Filho, Deus nos justificou e nos reconciliou gratuitamente consigo mesmo e nos direcionou para a plenitude da salvação. O V. 11 reza (CEI 2008): " E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação".
Rm 5,1-11 apresenta, em última análise, um perfil altamente cristológico e expõe as implicações relativas à condição presente e futura dos crentes a partir da conclusão alcançada em Rm 1-4.
Os estatutos étnicos de judeus e gentios são iguais, embora distintos. A jactância é mencionada três vezes, mas não tem fundamento antropológico, mas cristológico.
No v. 2 o fundamento da jactância é dado pelo charis/graça que é a “morfologia” essencial da ação de Deus revelada e compartilhada em Cristo. Independentemente da condição do destinatário e de uma pertença étnica precisa, o crente tem a certeza de sua realização na posse da glória de Deus, ou seja, da participação subjetiva na própria vida de Deus. Entre esperança e glória existe uma tensão escatológica, que também conota a condição do crente entre passado, presente e futuro.
O dom da graça é certo em Cristo, no presente, mas o crente se orgulha não apenas disso, mas também de seu cumprimento futuro. Juntamente com outras categorias soteriológicas de participação, Paulo assume também aquela da jactância como um léxico particularmente propício para enunciar o seu elemento fundador.
A segunda recorrência do léxico da jactância ocorre no v. 3. A jactância do crente nas tribulações assume um caráter paradoxal. O que "poderia ser uma desmentida da consistência da identidade fundada na graça do dom de Cristo e sustentada na certeza do seu cumprimento é, na realidade, a sua confirmação mais eficaz e a oportunidade de crescimento da própria esperança em que repousa" (p. 272).
A terceira ocorrência do léxico da jactância, no v. 11, lembra os dois primeiros e de alguma forma resume toda a identidade crente delineada na perícope. A jactância fundamenta-se na relação com Deus e é uma alternativa positiva à jactância judaica contestada e excluída.
A autora concorda com S. Bosch “quando afirma que o crente gentio herda a jactância judia, declaração positiva de uma relação fundadora com Deus, que vimos contestada não em si. Além disso, confirma-se como herança da LXX que Paulo sem reticências recolhe e reformula à luz da nova economia salvífica” (p. 272).
Paulo havia contestado a jactância judaica de uma condição privilegiada sobre o gentio em relação à relação com Deus em virtude da posse da Lei. Ele o fez por causa de sua incoerência em observar aquela mesma Lei e depois excluído em virtude da revelação de Deus em Cristo, que agora parece ser a única mediação possível para a fé.
As duas formas de mediação são heterogêneas: a primeira (a da Lei) é instrumental, a segunda é pessoal, como destaca o léxico de Rm 5,1-11, que também menciona outras categorias de participação.
"A jactância de que Paulo não se envergonha (ou se vangloria) – afirma a estudiosa - é salvação para todos, judeus e gentios, apenas na forma de uma relação pessoal que até o léxico da jactância inscreve na sua formulação paradoxal". E conclui: “Não subsiste outra configuração do perfil fundante da identidade do crente que não seja a de uma relação de confiança de pessoa (do crente) a pessoa (em Deus) e através de uma pessoa (nosso Senhor Jesus Cristo). E isto, repetimos, é para todos, judeus e gentios, para o ‘nós’ da totalidade dos crentes” (p. 273).
Nas conclusões da autora (p. 275ss), descreve-se o perfil fundacional pessoal e relacional da identidade do crente inscrito no léxico da jactância. A identidade do crente é totalmente caracterizada por um fundamento pessoal e relacional com Cristo Jesus, com a exclusão de outros supostos meios de salvação que possam ser colocados no mesmo plano ao lado da unicidade de Jesus Cristo, único mediador de salvação doada gratuitamente por Deus Pai e apropriada pelo crente com a fé. Da pars destruens da jactância à construens, existe na Epístola aos Romanos o debate como percurso relativo ao autêntico fundamento pessoal e relacional da identidade crente.
Borghi também examina as perícopes de Fl 3,2-16 (pp. 283-293) e Gal 6,11-17 (pp. 294-299) mais rapidamente.
Assim como na Epístola aos Romanos, Fl 3, 2-16 também enfatiza a jactância do crente em Jesus Cristo.
Gl 6,11-17 por sua vez expressa o orgulho do crente fundado na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo.
A mensagem de Paulo não pode se limitar aos destinatários históricos de sua carta, mas é evidente que também se dirige aos leitores de hoje que querem se abrir à fé. O perfil fundacional pessoal e relacional da identidade do crente inscrito no léxico da jactância vale para todo "leitor" que crê.
O trabalho de Borghi termina com uma bibliografia abundante (pp. 303-320), o índice de citações bíblicas (pp. 321-332) e o dos autores (pp. 333-337).
Nascida de estímulos recebidos durante um curso ministrado na FTIS por Stefano Romanello sobre a identidade do crente nas cartas paulinas, a tese de doutorado de A.M. Borghi se encaixa perfeitamente nessa linha, desenvolvendo um elemento que pode parecer periférico, mas que intrinsecamente pertence à identicidade fundamental do crente em Cristo Jesus. Sua natureza pessoal e relacional, alicerçada em uma relação de pessoa a pessoa que não é instrumental como oferecida pela Lei, apresenta o perfil da identidade do crente que bem pode gloriar-se da graça que lhe é oferecida por Deus Pai em Cristo Jesus o Senhor, acolhido na fé juntamente com o Espírito Santo derramado em seu coração.