"A carta aos Gálatas convoca-nos a ficar atentos com os tradicionalistas de hoje. Eles se dizem querer salvar a Igreja e seus valores, mas pecam pela visão equivocada do evangelho. Graças a Deus que o Papa Francisco, assim como Paulo, continua firme na fé e no Espírito do Evangelho".
O artigo é de Jacir de Freitas Faria, doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Último livro: O Medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
A carta aos Gálatas abre-nos um leque para compreender as dificuldades encontradas por Paulo na sua catequese nos primórdios do cristianismo com os irmãos conservadores de Jerusalém e os de hoje.
Escrita por volta do ano 55 E.C., o seu contexto nos remete ao fato de que não havia mais que duas décadas que Jesus tinha morrido, ou melhor, crucificado injustamente pelas lideranças judaicas, com o apoio dos romanos.
As comunidades cristãs ainda não tinham uma estrutura interna capaz de se manterem unidas num único propósito. Havia disputas entre as lideranças sobre a missão herdada do mestre Jesus. O evangelho começava a sair das trincheiras judaicas. Na Palestina, Sinagoga e Igreja ainda estavam juntas. Judeus e cristãos frequentavam a sinagoga. A ruptura definitiva viria mais tarde, no 66 E.C.
Surge, então, no cenário da fé cristã uma liderança que, outrora, havia sido uma perseguidora dos cristãos. Seu nome era Saulo de Tarso, que se fez Paulo, após sua adesão às propostas ao Reino de Deus pregado por Jesus. Paulo reconhece Jesus como o Messias que o seu povo esperava. Parece ironia do destino? Sim. Paulo era um fariseu de linha dura na observância da Lei judaica, um perseguidor de cristãos. Ele mesmo escreveu que ‘devastava a Igreja de Deus’ (Gl 1,13) na carta dirigida aos gentios, os não judeus convertidos ao cristianismo, na região da Galácia, região da Anatólia central, atual Turquia.
Na região da Galácia havia pequenos povoados. Seus habitantes eram oriundos da Gália, região que inclui parte da França. Não havia ali judeus nem
sinagogas. Os gálatas eram amantes da liberdade, não se deixavam subjugar com facilidade, mas aceitavam novidades. Em relação à religião, eles cultuavam os astros, os quais, para eles, regiam o mundo e as pessoas. Acreditavam em horóscopo, magias e feitiços.
Quando Paulo esteve na região para se tratar de uma doença nos olhos, ele foi bem acolhido, como ele mesmo recorda: “Se vos fosse possível, teríeis arrancado os olhos para dá-los a mim” (Gl 4,15). Respeitando as tradições religiosas locais, Paulo falou para eles de Jesus como Messias, mas não da religião judaica e suas observâncias previstas na lei judaica, como a circuncisão, a observância do Sábado, das festas e dos preceitos referentes às comidas impuras.
O grande segredo do missionário Paulo foi o de respeitar o valor da liberdade que essa comunidade atribuía nos relacionamentos e nos costumes, por isso, escreveu: “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). O evangelho de Paulo é o da liberdade no Espírito. Paulo não chegou na Galácia para construir uma Igreja, uma grande catedral, mas para fundar uma comunidade de fé, como tantas outras que estavam sendo criadas na região. Um exemplo de ação missionária para os nossos dias.
A motivação da Carta aos Gálatas surgiu quando Paulo percebeu o estrago que seus conterrâneos tinham feito na região. Dizendo serem representantes dos apóstolos de Jerusalém, uns ‘falsos irmãos’ judeus tentaram persuadir a comunidade de que era necessário fazer a circuncisão para estar conforme o judaísmo e, somente depois, tornar-se cristão. Por conseguinte, ser salvo. Eles diziam que Paulo estava equivocado e que era preciso seguir as orientações dos apóstolos de Jerusalém. Muitos estavam aderindo às propostas dessas lideranças.
Paulo, sabendo da polêmica provocada pelos judeus tradicionalistas, ficou irritado. Ele se dirigiu aos gálatas, chamando-os de insensatos (Gl 3,1). Eles não teriam o direito de dar ouvido a essas falsas orientações. “O que eles querem é separar-vos de mim para que vós os cortejais a eles” (Gl 4,18), escreveu. E Paulo foi ainda mais radical, quando propõe que ao invés de circuncidar, como pedia aqueles judeus, que eles cortem tudo de uma vez, isto é, que se castrem (Gl 5,12). Essa prática ritual, usada ironicamente por Paulo, era comum no culto à deusa Cibele.
Indignação e raiva motivaram Paulo na elaboração de seus argumentos no decorrer da carta aos Gálatas. Paulo deixa claro que Cristo nos deu a liberdade e nos libertou da escravidão que esses “falsos irmãos” estavam querendo impor-lhes (Gl 5,1-12). Em Jesus nos tornamos filhos de Deus e somos confirmados no Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai! (Gl 4,6).
Para expor a sua argumentação, Paulo estrutura a carta aos Gálatas da seguinte forma:
No prólogo, Paulo apresenta os temas que serão tratados na carta. Nos versículos de seis a dez, admoesta aos gálatas sobre o abandono do Evangelho de Jesus Cristo que ele havia pregado para eles. Os cinco argumentos em favor do evangelho são: ele vem de Jesus, foi confirmado pelos apóstolos de Jerusalém, anunciado por Paulo, vivenciado pela comunidade de Gálatas e sustentado pela Palavra de Deus.
Na sequência (5,16—6,10), Paulo demonstra como a adesão ao Evangelho proporciona a liberdade total e não a escravidão da Lei judaica. O epílogo conclui a carta retomando pontos importantes de sua admoestação, reforçando a não importância da circuncisão e da escravidão que ela, sendo a Lei, pode causar. Melhor é gloriar-se na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, conclui. Para os da comunidade que estavam com ele, Paulo deseja de paz e a misericórdia. Por fim, pede para não ser incomodado e deseja a graça de Jesus.
Paulo apresenta em sua carta dois elementos importantes, a Lei e a fé. A Lei enfeitiça. Ela é maldição e idolatria. A fé dá-nos o Espírito de liberdade e a bênção. Os gálatas deveriam escolher entre a Lei e a fé. A fé torna-nos filhos de Abraão, faz-nos viver como justos, faz-nos um só em Cristo Jesus: judeus e gregos, escravos e livres, homem e mulher, um só povo em Jesus Cristo e filhos de Deus.
Em Jesus todos se tornam Filhos de Deus. Não há outra escolha para o Gálatas. Eles, que sabem o que é a liberdade, não podem acatar influências malévolas de falsos irmãos que querem escravizá-los com a Lei judaica. Nada de abandonar o evangelho de Jesus Cristo que ele lhes havia anunciado.
A prática dos judeus que chegaram na Galácia difamando Paulo continua viva no meio de nós. Esse tipo de prática, motivada pelo ciúme e tradicionalismo religioso, está revestido de uma fé moralizante, que quer salvar estruturas e não pessoas. Eles têm nome. São prelados do alto escalão do Vaticano a leigos(as) conservadores de nossas igrejas domésticas, fortalecidos por ações pastorais fora do tempo de bispos e padres. São políticos conservadores e conservadores católicos de entidades que se dizem católicas, como o Centro Dom Bosco, do Rio de Janeiro, que tem como lema: “Rezar, estudar e defender a fé”.
Assim como aqueles judeus que chegaram na Galácia, esses tradicionalistas perderam a essência do evangelho. Andam desacreditando o Papa Francisco e os acreditam numa Igreja aberta aos desafios de nosso tempo, que nos liberta de tantas amarras de uma fé atrelada às tradições conservadoras. Os inimigos deles são todos da Libertação.
Esses tradicionalistas de nosso tempo agem inspirados na Igreja da Cristandade, aquela que mandou para a fogueira os que defendiam a liberdade do Espírito do Evangelho e se opunham ao tradicionalismo de uma Igreja alicerçada no poder.
A carta aos Gálatas convoca-nos a ficar atentos com os tradicionalistas de hoje. Eles se dizem querer salvar a Igreja e seus valores, mas pecam pela visão equivocada do evangelho. Graças a Deus que o Papa Francisco, assim como Paulo, continua firme na fé e no Espírito do Evangelho.