22 Dezembro 2021
As cartas de Paulo de Tarso, o conversor, foram retraduzidas e levadas de volta ao seu contexto original.
O comentário é de filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora de Filosofia Teórica na Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo publicado em La Stampa, 21-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sete semanas haviam se passado desde a crucificação de Yeshua ben Yoseph, o rabino de Nazaré. Multidões de peregrinos acorriam a Jerusalém para a festa judaica de Shavuot. Mas a atmosfera não era alegre.
Os pobres, os sem-teto, os abandonados não tinham mais um guia. Mesmo assim, naquele dia, no átrio do Templo, um grupo de galileus chamou a atenção de todos. Quem estava falando era um pescador de Cafarnaum. Ele dizia que o Messias não havia sido derrotado – pelo contrário, havia ressuscitado.
Entre os que o ouviam também estava Shaul, filho de Baruch, um jovem de Tarso, na Cilícia. Ele havia passado a sua adolescência curvado sobre a Torá, sobre os livros dos salmos e dos profetas. Mas, na sua cidade, ele se sentia afundar em um oceano de paganismo, entre a ganância e a libertinagem.
Que o Messias prometido a Israel também libertaria os outros povos, mudando toda a ordem do mundo? Ele estava certo disso. Ele não se uniu aos essênios que habitavam no deserto; optou por ser um nazireu, submetendo-se a uma severa disciplina.
Em Jerusalém, ele logo se sentiu em casa. Entre aquelas ruas tumultuadas, soprava o vento da revolta, desde que Israel estava sob a espada de Edom, o Império Romano. Fariseu filho de fariseus, Shaul não podia aceitar que o Justo da Galileia fosse o Mashiach que os judeus esperavam.
Não faltavam os sinais de uma grande sublevação: os gentios pediam em grande número para entrar na aliança, porque haviam sabido da libertação que aguardava Israel. Foram as mulheres que entraram primeiro, batizadas segundo o antigo costume judaico. Para os homens, porém, a circuncisão, junto com os muitos preceitos, era um obstáculo. O que fazer?
Pedro/Kefá, o pescador, estava convencido de que os gentios poderiam ter uma parte no mundo vindouro se se convertessem ao judaísmo. Atormentado e radical, Shaul foi, em princípio, um feroz perseguidor daqueles que se referiam ao rabino de Nazaré. Mas, às portas de Damasco, fulgurado por uma luz poderosa, ouviu uma voz que lhe falava em hebraico: Yeshua o impulsionava rumo aos gentios, para lhes abrir seus olhos. Bastaria que as leis gravadas nas tábuas fossem incididas nos corações de carne. E assim Shaul, “o menor dos apóstolos”, assumiu o nome greco-romano de Paulo para indicar a sua nova condição de servo do Messias.
De Jerusalém a Roma, dos quatro cantos remotos até ao centro do Império, Paulo estendeu a comunidade do Messias a todos os povos. Porque o Messias não era apenas a promessa de Israel, mas também a esperança dos últimos, dos rejeitados, dos vencidos, de quem trabalhava nas fundições, engolidos nas trevas das fornalhas, dos escravos acorrentados nos porões dos navios, dos estrangeiros expostos à violência.
Àquele mundo subterrâneo, Paulo levou a notícia da libertação: os tempos messiânicos, o olam ha-zeh, haviam começado, e estava prestes a irromper o olam ha-ba, uma nova era, o início de outro mundo, marcado pela justiça. Os últimos seriam os primeiros. Foi a “revolta dos escravos”, como Nietzsche a definiu, uma conflagração cósmica.
Mas foi também o desafio de Israel lançado dentro do coração de Roma. O Império havia vencido militarmente, deixando em seu rastro destruições e massacres. Os ecos daquela enorme shoá ressoam no Apocalipse. Yeshua ben Yoseph havia se afastado dos zelotas políticos para pedir ao povo outra resistência. A sua morte, entretanto, havia provocado um profundo incômodo.
Shaul, esse expoente radical do messianismo apocalíptico judaico, mantém a tensão alta e a relança. Mas não faz nenhum gesto antinômico. Só porque acredita que os tempos chegaram, ele pensa que a lei se cumpriu e acelera a conversão messiânica dos gentios. Israel não o segue – mas a heresia de Shaul ainda é uma heresia judaica.
As cartas de Paulo de Tarso, não um convertido, mas sim um conversor, estão hoje disponíveis em uma nova edição que constitui o segundo volume do Novo Testamento. Uma leitura judaica, editada por Marco Cassuto Morselli e Gabriella Maestri para a editora Castelvecchi. O primeiro volume inclui os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos; o terceiro, os outros escritos neotestamentários, Cartas e Apocalipse.
A intenção é retraduzir esses textos, levando-os de volta ao contexto original para acompanhar os leitores, graças também ao efeito gerador de estranheza das palavras e dos nomes, à descoberta das raízes judaicas do cristianismo.
Mas são decisivas sobretudo as introduções histórico-críticas e os comentários, capazes de abrir novos horizontes interpretativos. Isso vale tanto para a leitura muito original do Apocalipse, um texto mal compreendido pela teologia da substituição, quanto para a figura de Paulo de Tarso que, nas últimas décadas – no rastro de Taubes –, é recolocado no judaísmo por aquela corrente que é chamada de “Paul within Judaism” (foi publicado nos últimos dias o ensaio de Gabriele Boccaccini, pela editora Claudiana, intitulado “Le tre vie di salvezza di Paolo l'ebreo” [As três vias de salvação de Paulo, o judeu]).
Estudioso do messianismo, Cassuto Morselli retoma os seus temas para oferecer a todos a possibilidade de lançar um olhar para o abismo apocalíptico daquele grande profeta judeu dos gentios.
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Shaul, o judeu subversivo. Artigo de Donatella di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU