Paulo: três vias de salvação. Artigo de Roberto Mela

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19 Fevereiro 2022

 

"Obra complexa, voltada principalmente para estudiosos já familiarizados com as problemáticas bíblicas, judaicas e paulinas, rica em ideias significativas, o volume de Boccaccini ajuda a enquadrar a pessoa e o pensamento de Paulo - e muitos de seus pontos difíceis - dentro do judaísmo do Segundo Templo (do qual o Apóstolo nunca saiu) e especialmente em relação à literatura apocalíptica enóquica".

 

A opinião é de Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, ao comentar o livro Le tre vie di salvezza di Paolo l’ebreo. L’apostolo dei gentili nel giudaismo del I secolo ([Piccola biblioteca teologica 141] Claudiana, Torino 2021, pp. 264, € 24,50, ISBN 9788868983048), de autoria de Gabriele Boccaccini. O artigo foi publicado por Settimana News, 30-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

 

Eis o artigo. 

 

Gabriele Boccaccini é especialista em Judaísmo do Segundo Templo e literatura enóquica. Formado em Turim sob a orientação do prof. Sacchi, é professor desde 1992 na Universidade de Michigan e, desde 2001, diretor do Enoch Seminar que ele mesmo fundou.

O propósito de seu livro é enquadrar a personalidade e o pensamento de Paulo dentro do variegado mundo do judaísmo do Segundo Templo, rejeitando a ideia de que ele seja um apóstata do judaísmo e que tenha desprezado e abolido a Torá.

Paulo era judeu e permaneceu judeu para sempre, mesmo quando se tornou discípulo de Jesus e apóstolo dos gentios. Transmigrou do polo farisaico para o apocalíptico enóquico, mas não mudou de religião e nunca deixou sua identidade judaica.

Seu encontro com Jesus ressuscitado em Damasco não foi tanto uma "conversão" quanto uma revelação e uma vocação profética para anunciar a todos o evangelho da misericórdia do Messias Jesus. Paulo assumiu a vocação de anunciá-lo especialmente para o mundo dos gentios.

Nos vários capítulos de sua exposição, Boccaccini primeiro enquadra o Paulo judeu e o Paulo cristão no contexto do judaísmo do Segundo Templo. Depois ilustra a posição dos prosélitos e demonstra como Paulo nunca tenha se convertido. O autor analisa as várias concepções presentes na apocalíptica judaica e as várias ideias presentes sobre o messianismo (o messias como "Filho de Davi", "Filho do homem", "Filho de Aaron" e "Melquisedeque"). Finalmente, termina por descrever Paulo como um judeu apocalíptico messiânico.

O estudioso passa então a investigar o dom escatológico do perdão divino no Messias Jesus e a cristologia divina de Paulo, o judeu.

Após o capítulo “Justificados pela fé, julgados segundo as obras”, o autor ilustra a figura de Paulo como apóstolo das ovelhas perdidas entre as nações. Em última análise, ele se revela não um profeta da desgraça, mas um arauto da misericórdia de Deus para com os pecadores.

 

(Imagem: Divulgação)

 

Paulo e a apocalíptica enóquica

 

Aquilo de que Paulo se convenceu, em estreito contato com a literatura enóquica e especialmente com o Livro das Parábolas (1En 37-71), era o fato doloroso de que o mundo inteiro estava sob o domínio do pecado. A literatura enóquica defendia a origem cósmica do mal e do pecado, que escravizava todos os homens, mesmo que não os tornasse todos pecadores.

Diante do juiz no momento do juízo final segundo as obras, os judeus tinham a Torá que os podia tornar justos e os gentios tinham a consciência que, de modo correspondente, os podia tornar justos. 1En 50,2 afirmava que, no momento do juízo, haveria os justos e os injustos impenitentes.

Mas a esses dois grupos se acrescentava outro, formado por outros, que se arrependiam e abandonavam as obras de suas mãos, obtendo assim a salvação. Paulo está certo de que o Deus misericordioso, e não apenas juiz inflexível, ao enviar o messias celestial apocalíptico Jesus havia antecipado na terra a possibilidade de obter o perdão dos pecados passados por meio da justificação pela fé. Isso não deve ser identificado tout court com a salvação futura. No meio disso está a vida a ser conduzida pela realização de obras boas, porque sobre elas será baseado o julgamento final para todos os homens: judeus, discípulos de Jesus, gentios.

O ponto fundamental para Paulo é a origem cósmica do pecado, que leva a ser presa das paixões. A justificação ocorre somente pela fé e pela pura e absoluta graça de Deus oferecida em Jesus. De acordo com a Carta de Tiago, porém, as paixões precedem e levam ao pecado e, portanto, Tiago convida a acompanhar a justificação pela fé com o arrependimento, a conversão e as obras. São duas visões diferentes, mas que a tradição cristã imediatamente procurou harmonizar.

Para Paulo, o pecado como um poder cósmico entrou no mundo através do pecado do filho desobediente de Deus, Adão. Ele pode ser derrotado não com sacrifícios rituais, mas apenas pelo novo Adão, o Filho de Deus obediente que ofereceu sua vida pela justificação dos homens. Paulo se inspira na ideia apocalíptica enóquica da origem cósmica do pecado devida ao pecado de desobediência dos anjos rebeldes, para fundar sua concepção da origem cósmica do mal no mundo.

Ao longo de seu livro, Boccaccini convida a interpretar Paulo no âmbito de seu tempo e seu contexto cultural e religioso, sem dobrá-lo a interpretações posteriores.

Agostinho e Lutero são defensores da impossibilidade ontológica de o homem realizar o bem e identificam justificação e salvação, ou seja, o ato antecipatório do perdão divino com o ato final do juízo divino.

Paulo não é um pregador do ódio e da intolerância, nem o arauto do infortúnio da condenação universal dos homens por sua falta de fé em Jesus, mas anuncia o perdão escatológico de Deus oferecido por ele desde agora em Jesus àqueles que se abrem à justificação gratuita aceita na fé. Paulo é o arauto da misericórdia de Deus para com os pecadores (judeus e gentios) e está convencido de que “todos os seres humanos (judeus e gentios) estão ‘sob o domínio do pecado’” (Rm 3, 9), não que todos são condenados. Embora limitado, o livre arbítrio humano não foi destruído pelo pecado original: no dia do juízo Deus “renderá a cada um segundo as suas obras” (Rm 2,26 e passim)” (p. 222).

 

Um novo paradigma interpretativo

 

Segundo Boccaccini, as pesquisas recentes sobre Paulo fizeram enormes avanços, especialmente com o trabalho de E.P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, de 1977. Ele "resgatou os estudos paulinos dos elementos antijudaicos mais depreciativos, especialmente desmentindo que a oposição entre graça e lei fosse a linha divisória inconciliável entre cristianismo e judaísmo, pois no judaísmo pacto e lei não são meios de autojustificação, mas também instrumentos da graça divina” (p. 222).

Boccaccini, no entanto, também observa que as posições de Sanders devem ser atualizadas e revisadas. "Paulo não apresentou, como concluiu Sanders, ‘um tipo de religiosidade essencialmente diferente de qualquer outro tipo encontrado na literatura judaica palestina’, nem teve a intenção de excluir ‘que a aliança judaica possa ter eficácia para a salvação, negando assim conscientemente a base do Judaísmo’" (ibid).

Boccaccini argumenta que o momento é propício para um novo paradigma interpretativo de Paulo, cujos elementos principais são aqueles que mencionamos acima. Paulo permaneceu judeu e inserido no judaísmo do Segundo Templo. Ele estava convencido de que Deus tivesse chamado todos os seres humanos à justiça, revelando a eles sua vontade (o que é bom e o que é mal): aos judeus segundo a Torá, aos gentios segundo a lei natural escrita na consciência de cada um. O julgamento será para todos "segundo as obras de cada um" (Rm 2,1-11).

Com o evento de Damasco, Paulo passou de um grupo judaico para outro, mas sempre dentro do judaísmo. Não mudou seu ser judeu, mas sua maneira de ser: sua compreensão do judaísmo.

Tendo se tornado um judeu discípulo de Jesus, Paulo adquiriu o sentido da iminente vinda do fim e a fé em Jesus como o Messias, mas também sua visão do mundo, ou seja, aquela apocalíptica descrita em 1En 50,2. O mal tem uma origem cósmica e os homens pecadores também são vítimas do mal e precisam ser libertados do domínio do pecado por meio de uma intervenção da graça de Deus que, no final dos tempos, justificará aqueles que "se arrependem e abandonam as obras de suas mãos"(1En 50,2).

No "caminho de Damasco" Paulo não abandonou o judaísmo, mas "escolheu fazer parte daquela corrente ininterrupta de pensamento que desde a antiga apocalíptica do Livro dos Vigilantes leva à proclamação da misericórdia no Livro das Parábolas, ao convite aos pecadores à conversão na iminência do juízo de João Batista, até a boa nova de Jesus como "o Filho do homem [que] tem na terra autoridade para perdoar os pecados" (Mc 2,10; Mt 9, 6; Lc 5, 24)"(p. 224).

Em sua misericórdia, Deus contrabalançou o poder do mal sobre a terra através da missão de seu filho obediente, Jesus. “Paulo esperava que os pecadores (judeus e gentios) justificados por esse ato de graça e purificados de seus pecados passados, teriam preenchido a sua vida de boas obras e, com a ajuda de Deus, teriam permanecido "irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Cor 1, 8), incluídos entre os justos no juízo final. Jesus, ‘o Filho do homem [que] tem na terra autoridade para perdoar pecados’ (Mc 2,10; Mt 9,6; Lc 5,24), em breve voltará como juiz final [...] para realizar o juízo final ‘"segundo as obras de cada um’ (Rm 2,6), como salvador dos justos (judeus e gentios) e dos (ex) pecadores (judeus e gentios) que, arrependidos e justificados por sua fé, tenham permanecido irrepreensíveis em Cristo. Somente os impenitentes serão condenados” (pp. 224-225).

Paulo não aceitou a ideia de que os gentios batizados tivessem um status diferente ou inferior dentro da Igreja em relação aos judeus batizados. Ambos eram escravos do pecado e perdoados somente pela fé. Isso “não significa que Paulo tenha defendido a abolição da distinção entre judeus e gentios neste mundo; ao contrário, como no caso das distinções sociais e de gênero, aceitou-a como uma realidade inevitável (talvez até providencial) a ser mitigada em seus aspectos conflitantes, mas não a ser abolida até que, com a nova criação do mundo em devir, todas essas distinções acabassem desaparecendo. Tendo recebido como judeu o dom do perdão escatológico prometido por Jesus às ovelhas perdidas de Israel e a libertação do ‘domínio do pecado’ (Rm 3, 9), Paulo decidiu dedicar sua vida à busca das ovelhas perdidas entre as nações. Como apóstolo dos gentios, afirmou ter sido chamado por Jesus especificamente para ser o mensageiro dessa oportunidade de justificação aos pecadores gentios, enquanto outros apóstolos se concentravam nos pecadores judeus” (p. 225).

Paulo acreditava que a justificação, como dom escatológico de perdão a ser recebido somente pela fé, fosse independente da lei, mas segundo Boccaccini nunca a entendeu como um caminho exclusivo de salvação, pois o juízo universal será para todos (batizados e não batizados) segundo as obras de cada um. Obedecer a qualquer lei era difícil para o homem escravizado pelo domínio do pecado.

Paulo era um judeu observante da Torá, mas acreditava que o dom da justificação pela fosse um dom escatológico de perdão oferecido por Jesus, o Messias, independentemente da lei a todos os pecadores (não apenas aos gentios) na iminência do julgamento final.

Paulo nunca pediu aos judeus que abandonassem a Torá. Paulo pregava aos gentios, mas o mesmo evangelho era anunciado aos judeus e aos gentios - a boa nova do perdão concedido aos pecadores. Paulo concentrou-se no anúncio aos gentios, ciente, porém, de que os doentes incluem judeus e gentios igualmente, ainda que não todos: os justos (judeus e gentios) não precisam de médico (Mc 2,17; Mt 9,12-13; Lc 5, 31-32).

Paulo não implementa nenhuma exclusão, mas em seu anúncio inclui a todos: judeus, gentios, pecadores.

 

Inclusividade

 

Boccaccini almeja que seu livro ajude a fazer redescobrir a enorme importância da apocalíptica judaica para o estudo das origens cristãs, em particular aquela expressa no Livro das Parábolas.

Boccaccini pretende ajudar a manter vivas as boas relações entre cristãos e judeus. Paulo não acreditava que a Igreja poderia substituir os judeus; nunca entendeu justificação pela fé com um substituto do juízo de acordo com as obras de cada um ou um substituto para a Torá. "Ele esperava que todos os que haviam sido justificados e que agora viviam em Cristo teriam se salvados porque seus pecados passados haviam sido perdoados e sua vida, animada pelo Espírito, estava agora cheia de boas ações [...] a justificação pela fé era uma maneira de restaurar (não anular) a responsabilidade humana e reafirmar (não abolir) as alianças de Deus, incluindo a Torá Mosaica. A esperança - continua o autor - é que minha análise possa ajudar a redescobrir o lado judaico de Paulo como uma importante voz do judaísmo do Segundo Templo e, do lado cristão, adquirir e desenvolver uma visão mais articulada da complexa relação entre justificação e salvação, superando de uma vez por todas a pré-compreensão tradicional, por muito tempo compartilhada por judeus e cristãos, que vê em Paulo o inimigo implacável do judaísmo e da lei” (p. 228).

Uma nova compreensão de Paulo também tem implicações na relação entre cristãos e seguidores de outras religiões ou não crentes. Boccaccini escreve: “Afirmar que todos os seres humanos devem crer em Cristo para serem salvos é uma deturpação da pregação de Paulo, pois Deus é justo e misericordioso e não tem preferência entre pessoas, mas para todos o juízo final será de acordo com as obras de cada um. Também dizer que os judeus têm a Torá enquanto os gentios têm Cristo não representa fielmente a posição de Paulo. Cristo não é nem o caminho exclusivo de salvação oferecido somente aos gentios ao lado da Torá dada aos judeus. Pelo contrário, Cristo é o caminho de salvação oferecido especialmente aos pecadores (judeus e gentios, da mesma maneira), que "sob o domínio do pecado" (Rm 3,9) não conseguiram viver de acordo com a Torá e a lei natural, que Deus em sua graça deu respectivamente aos judeus e aos gentios como vias eficazes de salvação para os justos” (p. 229).

 

A misericórdia divina e as três vias de salvação

 

Boccaccini espera, portanto, que sua análise "possa ajudar a trazer o tema da misericórdia de Deus de volta ao centro da teologia paulina, a inclusividade - não a exclusividade - de sua mensagem, libertando-o das acusações recorrentes de ódio e de intolerância, que mal se aplicam ao seu pensamento embora pareçam apropriados a determinadas interpretações que delas foram posteriormente dadas. Do ponto de vista de Paulo, Cristo é um dom de Deus para os "muitos" pecadores, para que todos possam ser salvos. Os justos (judeus e gentios) serão salvos pela graça por meio de suas boas ações, pois também a lei e os mandamentos são um dom de Deus, criador de tudo” (pp. 228-229).

O autor lembra que Paulo não era agostiniano. O pecado de Adão não anulou o livre-arbítrio, apenas tornou mais difícil o caminho da justiça. “Paulo pregava as boas novas de que, na iminência do fim dos tempos, aos pecadores (judeus e gentios) era oferecida a extraordinária oportunidade de se arrepender e ser justificado em Cristo pela misericórdia de Deus, independentemente da justiça de Deus. Aos pecadores (judeus e gentios) era dada uma segunda possibilidade: renascer para uma nova vida através do perdão dos pecados passados e a libertação do "domínio do pecado" (Rm 3, 9).

Paulo não era luterano: como judeu, rejeitava qualquer jactância de autojustificação e acreditava que a salvação de todo homem sempre fosse um dom da graça de Deus. Mas nunca indicou na fé em Cristo o único e exclusivo caminho oferecido por Deus, quando anunciou aos pecadores a justificação (isto é, o perdão dos pecados passados) pela fé” (p. 229).

Nesse ponto Boccaccini conclui seu trabalho resolvendo o enigma do título de seu livro, que pode parecer provocativo para um pensamento tradicional: "Paulo não pregava dois caminhos separados para a salvação (um para os judeus, outro para os gentios), mas sim três: os judeus justos têm a Torá; os gentios justos têm sua própria consciência; e os pecadores, as ovelhas perdidas da casa de Israel e entre as nações que caíram sem esperança sob o domínio do pecado, têm o Cristo a cujo perdão podem se entregar com confiança (ibid.).

O livro termina com uma bibliografia (pp. 231-238), o índice de nomes (pp. 239-244) e dos textos citados (pp. 245-258).

Obra complexa, voltada principalmente para estudiosos já familiarizados com as problemáticas bíblicas, judaicas e paulinas, rica em ideias significativas, o volume de Boccaccini ajuda a enquadrar a pessoa e o pensamento de Paulo - e muitos de seus pontos difíceis - dentro do judaísmo do Segundo Templo (do qual o Apóstolo nunca saiu) e especialmente em relação à literatura apocalíptica enóquica. A ligação com esse campo particular da apocalíptica judaica aparece a Boccaccini como decisiva para a elaboração de um novo paradigma interpretativo de Paulo. Esse paradigma ainda não é conhecido e aceito por todos.

O livro também contribui para rejeitar as ideias errôneas sobre um suposto antijudaísmo de Paulo ou sobre um seu pensamento intolerante e propor, em vez disso, relações de harmonia e paz entre judeus, cristãos e crentes de outras religiões ou não crentes.

Afirmar que todos os seres humanos devem crer em Cristo para serem salvos é uma deturpação da pregação de Paulo, visto que Deus é justo e misericordioso e não tem preferências entre pessoas, mas para todos o juízo final será de acordo com as obras de cada um.

 

 

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