13 Março 2021
"O volume de Marcheselli é quase um comentário sobre o Quarto Evangelho. São examinados quase todos os capítulos e suas partes mais exigentes. Um verdadeiro texto a ser consultado por muitos leitores, estudiosos, pregadores, pesquisadores e amantes do Quarto Evangelho, nem sempre de fácil compreensão em profundidade. Nem todos somos águias como João, filho de Zebedeu e Discípulo Amado", escreve Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 03-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma imersão total no volume do professor da FTER de Bolonha e do Pontifício Instituto Bíblico de Roma fez-me apreciar plenamente aquela particular teologia joanina e o esplendor de sua profundidade. Marcheselli expõe nesses dezessete relatos que abordam toda a riqueza do testemunho produzido pelo Discípulo Amado ao longo de todo o Quarto Evangelho. São estudos produzidos para várias circunstâncias e, em sua maioria, não revisados pelo autor. Conservam o teor coloquial, mas sempre firme, claro e consequente.
• MAURIZIO MARCHESELLI,
Il Quarto Vangelo. La testimonianza del
“discepolo che Gesù amava”.
Commenti scelti dal curatore ALDO PERI
(Sussidi Biblici s.n.), Edizioni San Lorenzo,
Reggio Emilia 2021, p. 526, € 23,80,
ISBN 9788880712398.
O estudioso está convencido de que o autor do Quarto Evangelho seja João, filho de Zebedeu, que coincide com o Discípulo Amado. Reelaborada em excelente grego pela escola joanina que se havia formado no ambiente de Éfeso, seu testemunho apareceu no final do primeiro século como testemunho maduro da identidade profunda da figura de Jesus, Verbo Encarnado.
O Discípulo Amado, assim chamado não porque Jesus o amou mais do que os outros, mas porque foi o mais completo, rápido e profundo acolhedor da revelação realizada por Jesus, o primeiro a saber reconhecê-lo em identidade profunda.
A sua função na Igreja, que permanecerá para sempre, é testemunhal. Ele é a testemunha que certifica por escrito a revelação sobre o Verbo preexistente (asarkos - sem a carne) e sobre o Verbo encarnado (sarkos - com a carne). No Verbo asarkos foi criado tudo e por isso todos podem testemunhar mais ou menos claramente sobre a sua identidade e ter vislumbrado e desfrutado de sua existência.
Depois dos capítulos importantes sobre a gênese do Quarto Evangelho, sua linguagem e estilo (muito importante de reconhecer para evitar mal-entendidos e aproveitar o fascínio e a ironia da escrita de João, a exposição "em ondas” sucessivas, além da importância das duplas expressões identificadas como hendíades), Marcheselli expõe a pneumatologia joanina (cinco ditos, em outro contexto reduzidos a quatro por ele), e a relação com a Sinagoga.
O Quarto Evangelho não é antijudaico, por ser composto por um judeu que fala aos judeus de dentro da família, e não é obra de alguém de fora que lança acusações contra o povo judeu como se fossem marteladas na cabeça. Os "judeus" do Quarto Evangelho não são todo o povo de ontem nem aquele de hoje, mas a parte (principalmente aquela dirigente da vida religiosa e social do povo) que se opõe a Jesus e rejeita sua revelação (= verdade).
Um capítulo é dedicado aos "sinais" que não apontam tanto para o milagroso, mas referem-se a uma realidade mais profunda à qual se abrir e acolher com fé. O sexto capítulo é dedicado à análise do Prólogo que, a título de introdução, foi composto no final, acolhendo várias expressões já presentes no restante do Evangelho. O Prólogo é indispensável para a compreensão do texto do Quarto Evangelho.
O capítulo 4 sobre Jesus e a mulher samaritana é construído de forma compacta em torno dos temas da água, do marido e da missão: o tema é o de um messias que vem dos judeus, é o Salvador, e atrai a si o povo dos samaritanos.
Jesus se revela como o salvador, o messias esperado, revela ser mais do que um profeta e insiste na adoração desvinculada dos lugares. Ela está ligada ao Espírito da verdade, que introduz a revelação do Pai trazida por Jesus, o Verbo Encarnado, ao coração do fiel e a atualiza e dá a força para cumprir a vontade do Pai.
Se o alimento de Jesus é realizar as obras do Pai e levar a cumprimento o seu projeto de salvação, não são os discípulos, mas a mulher samaritana que procura o alimento que ele busca: as pessoas, os samaritanos.
Os temas da água, da sede, da fome e do alimento também estão ligados ao tema do marido e da verdadeira adoração proposta pelo Salvador que vem dos judeus. Um capítulo compacto, no qual a mulher se torna testemunha entre seu povo e o leva para fora da cidade ao encontro de Jesus.
Depois de examinar as linhas fundamentais de cap. 6 sobre o pão da vida, Marcheselli aborda o espinhoso oitavo capítulo, contendo as disputas de Jesus com os judeus e a pesada invectiva profética do v. 44.
Um grupo de judeus dá algum crédito inicial a Jesus e se abre para ele, depois se perdendo no caminho. No v. 48 Jesus se dirige aos "judeus". O diálogo é intenso, em altíssimo nível de tensão, mas ainda é uma discussão dentro da família, com acusações que não se desviam das muitas revoltas na época pelos profetas para seu próprio povo incrédulo e adúltero em relação a YHWH.
Abraão sempre acolheu a palavra de Deus, abriu-se ao seu desígnio de salvação, depois se alegrou duas vezes, pelo nascimento de Isaque e por ter vislumbrado nele a grandeza do seu ilustre descendente, o Verbo Encarnado. Abraão foi capaz de fazer isso porque tudo foi criado no Verbo asarkos.
O capítulo sobre o cego de nascença permite repercorrer o esplêndido caminho de fé e o testemunho corajoso do doente curado que, depois de um duplo processo dos fariseus, paga o preço de ser expulso do templo (e portanto da sinagoga) devido à sua aceitação da revelação de Jesus como Senhor (ao contrário dos pais, que permanecem escravos das convenções sociais e religiosas).
O cego que crê passa a ter visão e fé. Os fariseus que acreditam que veem permanecem cegos e pecadores em sua livre rejeição da revelação de Jesus.
Um capítulo muito bem escrito pelo Discípulo Amado, com sutileza de ironia e duplos níveis de significados. Involuntariamente, os inimigos muitas vezes afirmam verdades profundas sobre Jesus, seu adversário que eles gostariam de derrotar e refutar ...
O contexto da festa das Tendas vai de Jo 7,1 a 10,21. O cap. 10 sobre o bom pastor deve, portanto, estar ligado ao cap. 9 sobre a cura do cego de nascença. O cego curado é expulso da área do templo (hieron), às vezes também chamada de aulē.
Jesus encontra o cego curado fora do templo e profere o discurso sobre o bom pastor que entra no recinto, chama as suas ovelhas e as coloca para fora, conduzindo-as aos pastos da vida. Ele também tem outras ovelhas que não vêm daquele cercado e deve chamá-las também, não para recolocá-las de volta, mas para que possam sair em liberdade. Um só rebanho, um só pastor (não "um só redil" como se pensava no passado!).
Jesus chama para fora do recinto um povo renovado, a Igreja, sem muros e sem fronteiras. O Bom Pastor é a porta por onde se passa para ter a verdadeira revelação de Deus e gratuitamente coloca à disposição a sua vida a favor das ovelhas, com o poder de retomá-la. Um discurso que antecipa o episódio do lava-pés e da morte na cruz e ressurreição do Bom Pastor (que dobra perfeitamente o pano da mortalha com habilidade e o coloca afastado dos outros panos fúnebres ...).
No cap. 14 Jesus anuncia que vai embora, mas voltará. A situação atual dos discípulos é então recapitulada, com os temas do caminho e do conhecimento-visão do Pai. Em Jesus presente é possível ver o pai. Nos v. 12-26 Jesus, ao invés, enuncia as quatro promessas que fundaram o futuro dos discípulos no mundo: as maiores obras (a continuação do ministério de Jesus em um nível universal), o outro Paráclito (o Espírito, além do primeiro Paráclito, Jesus), a vinda de Jesus depois da ressurreição (as aparições do Ressuscitado, em primeiro lugar), a vinda de Jesus e do Pai no coração do fiel.
Um capítulo é dedicado ao julgamento romano perante Pilatos, no qual Marcheselli distingue oito cenas, com saída e entrada de Pilatos do pretório para os judeus, primeiro sem Jesus e depois com Jesus. As três primeiras cenas e as três últimas são seguidas por um respectivo epílogo (19.1-3.16b-18).
Para além da possibilidade de Pilatos ter entronizado Jesus, o fato é que ele não o faz tirar suas vestes reais e Jesus aparece como o verdadeiro rei e juiz daqueles que o querem julgar.
A difícil expressão "Aqui está o homem" pode ser explicada com a teologia joanina, segundo a qual Deus se revela na carne.
Todo o texto joga com o papel de Jesus apresentado como rei dos judeus, com o não reconhecimento nele de qualquer culpa, com o desprezo irônico de Pilatos pelos judeus e com sua progressiva perda de controle da situação.
Jesus não fala de maneira geral da proveniência divina da autoridade humana (exousia, feminino em grego), mas apenas do fato de que Pilatos não teria aquele poder limitado (neutro em grego) para libertá-lo ou matá-lo se não lhe tivesse sido concedido pelo plano divino no qual ele exerce sua liberdade, de forma negativa.
Ninguém aceita a verdade proclamada por Jesus, ou seja, a revelação divina. Com forte ironia, o grupo dos poderosos entre os judeus é apresentado no final ao proclamar com trágica ironia joanina que não têm rei senão César (uma blasfêmia, idólatra, para eles que deveriam venerar apenas YHWH).
A cena de Maria ("mãe") e do Discípulo Amado sob a cruz, nunca chamada pelo nome, é uma cena de revelação (assim como da entrega filial de Maria aos cuidados do Discípulo Amado). Jesus com autoridade inclina a cabeça e depois entrega o Espírito ao núcleo germinativo da Igreja representado pela "mãe" e pelo discípulo que mais rápida e profundamente compreendeu e acolheu a identidade oculta de Jesus e de sua revelação. É o nascimento da Igreja que, aos tempos da composição do Quarto Evangelho, também inclui muitos discípulos da região de Éfeso, provenientes do paganismo e não apenas do seio do povo judeu.
O Discípulo Amado acolhe entre os seus entes queridos, na sua intimidade, a “mãe” que gera outros fiéis, convidando-os a fazer o que Jesus lhes disser. A Igreja permanecerá unida, não destroçada, assim como unida permanece a túnica não rasgada disputada pelos soldados sob a cruz e intacta permanece a rede cheia dos 153 grandes peixes puxados para a terra por Pedro após a pesca milagrosa no Mar de Tiberíades, na Galileia.
No Quarto Evangelho, o Ressuscitado aparece tanto em Jerusalém como na Galileia. No túmulo vazio, o Discípulo Amado não vê mais do que Pedro vê, mas consegue apreender o conjunto (o túmulo, a mortalha bem dobrada separada das outras bandagens e a memória da revivificação de Lázaro) como um sinal da ressurreição.
Na noite da Páscoa, Jesus ressuscitado visita seu grupo, no lugar de encontro nunca expressamente identificado (Jesus vem onde quer que haja fé nele ...). Ele é o mesmo Jesus de antes, com os sinais da Paixão bem impressos em seu corpo, mas com uma humanidade transfigurada. Ele insufla o Espírito nos discípulos, tornando-os homens recriados. Doa o poder do perdão, da paz e do dom-tarefa da missão.
Jesus vem e fica no meio dos seus, entregas seus dons pascoais e também vem oito dias depois da Páscoa, quando Tomé está presente. Ele deseja ter a mesma experiência de visualização desfrutada pelos seus condiscípulos, mesmo que tenha perdido a oportunidade de acreditar confiando apenas em seu testemunho. No entanto, sai com a mais bela profissão de fé do NT. Segue-se a bem-aventurança prometida àqueles que acreditaram/acreditarão mesmo sem terem visto o Jesus histórico e o Jesus ressuscitado (em grego há dois particípios aoristos).
O cap. 21 foi acrescentado a uma primeira edição do Quarto Evangelho porque o Discípulo Amado estava morto e isso causou um choque considerável e era necessário reposicionar as ênfases da Igreja joanina em relação à experiência das outras Igrejas.
Pedro tem um papel pastoral de guia, fundado no amor profundo a Jesus, mas o Discípulo Amado, por outro lado, tem a duradoura tarefa testemunhal de atestar por escrito, na memória perene, a revelação trazida por Jesus Verbo asarkos que se encarnou como Verbo sarkos. Ele, o Unigênito, Deus, revela o Pai e deseja conduzir todos os homens a ele.
O Espírito guiará os discípulos a toda a verdade, na implementação da palavra que tornará sempre a Igreja capaz de oferecer o testemunho ao Filho, para que todos os homens acreditem nele. Caminho, Verdade e Vida, o Verbo encarnado é o Salvador, o Revelador, o Doador (junto com o Pai) do Espírito. Ele, juntamente com o Pai e o Espírito, virá junto aos seus que o acolhem (judeus e gentios) e fará neles sua morada.
As páginas de Marcheselli são de louvável clareza didática, sem qualquer abstrusidade acadêmica. O volume não contém notas e bibliografia, mas é mérito do autor mencionar brevemente, nas passagens mais difíceis, as possíveis soluções alternativas exegéticas, e então indicar claramente sua posição, com a qual quase sempre me encontrei de acordo.
O volume de Marcheselli é quase um comentário sobre o Quarto Evangelho. São examinados quase todos os capítulos e suas partes mais exigentes. Um verdadeiro texto a ser consultado por muitos leitores, estudiosos, pregadores, pesquisadores e amantes do Quarto Evangelho, nem sempre de fácil compreensão em profundidade. Nem todos somos águias como João, filho de Zebedeu e Discípulo Amado ...
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O Evangelho do “discípulo amado”. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU