“Jesus sabe que um Cristo sem a Cruz seria um Anticristo. A Igreja sem a Cruz seria apenas mais uma das poderosas instituições deste mundo; o padre sem a cruz seria um mero oficial, agitador e ideólogo. Um cristão sem a cruz seria meramente um membro de uma instituição, simplesmente o proponente de uma ideologia ou cosmovisão. Quando Cristo começou a dizer que estava prestes a seguir o caminho da cruz, Pedro – a quem Jesus se referiu como a rocha sobre a qual construiria sua Igreja – tenta convencê-lo a desistir: está tudo bem; você pode evitar todo esse sofrimento, assegura-lhe. Nas palavras tranquilizadoras de Pedro, Jesus discerne um eco da tentação de Satanás no deserto: 'Fique longe de mim, Satanás!'”, escreve Tomáš Halík, em artigo publicado por The Tablet, 10-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Tomáš Halík é padre, psicoterapeuta, serviu ativamente na Igreja clandestina durante o controle soviético da Tchecoeslováquia, hoje leciona Sociologia da Religião na Universidade Carolina de Praga e é autor de diversos livros, como “Toque as feridas: Sobre sofrimento, confiança e a arte da transformação” (Ed. Vozes, 2016).
Um sermão deveria prover uma ponte entre o mundo do texto bíblico e o mundo dos ouvintes. Isso não é uma tarefa fácil em um mundo que, em tempos dramáticos, muda literalmente a cada dia. Eu não ouso prever o que pode acontecer entre os dias da composição deste sermão e o domingo quando eu irei o pregar.
A pouco tempo atrás, muitos poucos poderiam imaginar que a Europa estaria em guerra novamente; que a Rússia de Vladimir Putin se excluiria da família dos países civilizados; se comprometeria com crimes de guerra; violação do direito internacional; atacando desprezível e perfidamente seus vizinhos mais fracos; e procurando apagar um país democrático do mapa do mundo pelo assassinato brutal de seus cidadãos, incluindo mulheres e crianças. O sangue da Ucrânia clama ao Javé dos Exércitos.
Nós começamos a Quaresma com o rito da cruz de cinzas, acompanhado pelas palavras: “Lembre que você é pó e ao pó retornará”. Esse rito e essas palavras confrontam-nos com nossa mortalidade, nossa morte. Elas nos levam à maturidade e à responsabilidade adulta. Depois da Quaresma acabar, nós celebramos a Páscoa, o feriado da vitória gloriosa sobre a morte e o medo da morte. Então nós podemos perguntar: “Ó morte, onde está tua vitória?”. As Escrituras falam-nos que nós fomos escravizados pelo medo da morte. No entanto, nós somos chamados à liberdade, à libertação do medo. O propósito a Quaresma é a transformação interna. Ela representa uma oportunidade para a libertação e a re-criação.
A conta imaginativa da Criação que nós lemos na Bíblia nos fala que o ser humano é um grande paradoxo: tirado do nada, do pó da Terra, nós somos trazidos à vida pelo espírito de Deus. Pó e cinzas simbolizam o nada; alguma coisa que possa ser mudada num piscar de olhos. Deus sozinho pode criar coisas do nada. Deus sozinho pode dotar o nada com forma, rosto e significado; em suma, Deus sozinho pode dotar o nada com o espírito de Deus. E então, o ser humano, vulnerável e finito, torna-se – através do espírito de Deus – uma imagem e expressão da liberdade e criatividade de Deus.
Quando abusamos do dom da liberdade, quando nos encapsulamos na casca de nosso egoísmo para ficar longe do sopro do espírito de Deus – em linguagem teológica, esse auto-fechamento é chamado de “pecado” – voltamos ao nada. No Salmo 104, lemos: “Retiras deles a respiração, e expiram, voltando a ser pó”. Mas o salmo imediatamente fala de arrependimento, uma mudança transformadora de coração, como recriação: “Envias o teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra”.
Precisamos ter nossa fé, nosso amor e nossa esperança ressuscitados. Não zombemos do chamado de Deus transformando a Quaresma em um momento em que deixamos de comer chocolate. Os próximos anos trarão ascetismo mais do que suficiente. No tempo do coronavírus, Deus fechou nossas igrejas para nos dizer: “Se você pensava que sua fé cristã está em levar uma vida decente e frequentar a igreja no domingo, cuidado, isso não é suficiente”. O lema da Quaresma é: “Buscai ao Senhor enquanto ele se deixa achar”.
Deus quer que busquemos corajosa, criativa e generosamente maneiras novas, mais profundas e mais desafiadoras de pensar e viver nossa fé. O apelo do Papa Francisco para a reforma sinodal vai na mesma direção: transformar a Igreja em uma instituição onde todos caminhamos em sincronia em uma rede de comunicação mútua, num caminho de busca conjunta de respostas aos sinais dos nossos tempos; não de escapismo para o passado, nem modernização barata – mas uma jornada exigente da superficialidade à profundidade.
A leitura do Evangelho do primeiro domingo da Quaresma nos lembra que Jesus passou 40 dias de jejum no deserto. Quando ele saiu das sombras do anonimato e foi batizado no Jordão, ele foi reconhecido por João e pela voz divina como o tão esperado messias e o amado Filho de Deus. E, no entanto, sair correndo de seu batismo direto para as ruas do mundo não é o que ele faz. Em vez disso, ele vai sozinho para o deserto. Nos próximos 40 dias, ele será testado, como o povo de Deus foi testado durante sua jornada de 40 anos pelo deserto, da escravidão à liberdade.
O deserto não era considerado um lugar de contemplação pacífica, mas um lugar onde os demônios habitavam. Os eremitas não iriam ao deserto para desfrutar da solidão, mas para lidar com o espírito do mal em sua terra natal. Aqueles que se retiram para a solidão, silêncio e jejum não devem esperar nada agradável. Todas as três tentações que Jesus enfrentou no deserto se esforçaram para contrariar o papel de messias que ele havia aceitado em seu batismo e refinado no deserto.
De todas as imagens messiânicas familiares da época – muitas vezes apresentando a vitória sobre os ocupantes romanos e a restauração do poder e da glória do reino de Davi – Jesus se identifica com aquela descrita pelo profeta Isaías: o messias será um homem de sofrimento que suporta as transgressões de todos os povos e é morto como um cordeiro pascal: mas é por suas feridas e cicatrizes que muitos serão curados.
Habilmente usando passagens bíblicas fora de contexto, o diabo oferece a Jesus uma imagem completamente diferente do messias: um messias sem cruz, um messias de sucesso e milagres impressionantes, um messias de poder e glória que é reverenciado e goza de popularidade. Transforme essas pedras em pão e alimente a si mesmo e a todos aqueles que estão passando fome! Encontre soluções para problemas sociais! Estabeleça um reinado de riqueza! Delicie-se com a autoridade real sobre o mundo inteiro. É uma verdadeira pechincha – custará apenas um único arco diante do Senhor das Trevas. Nenhuma cruz, mas um trono de ouro!
Mas Jesus sabe que um Cristo sem a Cruz seria um Anticristo. A Igreja sem a Cruz seria apenas mais uma das poderosas instituições deste mundo; o padre sem a cruz seria um mero oficial, agitador e ideólogo. Um cristão sem a cruz seria meramente um membro de uma instituição, simplesmente o proponente de uma ideologia ou cosmovisão.
Quando Cristo começou a dizer que estava prestes a seguir o caminho da cruz, Pedro – a quem Jesus se referiu como a rocha sobre a qual construiria sua igreja – tenta convencê-lo a desistir: está tudo bem; você pode evitar todo esse sofrimento, assegura-lhe. É quando Pedro ouve as palavras mais duras que já saíram da boca de Jesus: “Fique longe de mim, Satanás!” Nas palavras tranquilizadoras de Pedro, Jesus discerne um eco da tentação de Satanás no deserto.
E a mesma tentação vem pela terceira vez na hora de sua morte: desça da cruz e todos creremos em você! O filme de Martin Scorsese “A Última Tentação de Cristo”, adaptado do romance de Nikos Kazantzakis, retrata a maior tentação na Cruz: renunciar ao seu caminho da Cruz! Viver uma “vida normal” como qualquer outra pessoa! Mas Jesus resiste à tentação, voltando à Cruz.
Jesus não usa de mágica para transformar pedras em pão. Em vez disso, ele dá a sua carne e sangue, seu ser por completo, tornando-se então o pão da vida. Jesus tem dado toda sua autoridade sobre a Terra e o Céu, mas isso não é um prêmio para adorar o diabo. Mais que isso, é um fruto da fidelidade à vontade do Pai Celestial.
“Dizer não ao diabo”. Essa é uma música que o pastor protestante tcheco Svát'a Karásek cantou depois da ocupação soviética na Tchecoeslováquia. Ele confrontou o regime policial, sua intimidação e suas tentações e promessas. Nosso mundo está novamente ameaçado pelos poderes da escuridão.
Do mesmo lugar que nos enviou um grande inverno em 1968 – um inverno que congelou o anseio pela liberdade em nosso país pelos 20 anos seguintes – está novamente vindo com mentiras, sangue e o fogo da destruição, tentando o mundo a dar uma forma de egoísmo, distanciamento e a crença tola que tudo está bem, que nós podemos evitar o sofrimento. Isso não é verdade. Não caíamos em uma falsa tranquilidade. Sejamos rebeldes, digamos “Não ao diabo”!