29 Janeiro 2021
Publicamos aqui o comentário de Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 4º Domingo do Tempo Comum, 31 de janeiro de 2021 (Marcos 1,21-28). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois do relato da vocação dos primeiros quatro discípulos (cf. Mc 1,16-20), Marcos sublinha que Jesus não está mais sozinho. Agora, existe uma pequena comunidade no seguimento desse rabi que foi à Galileia a partir das margens do Mar Morto, após a prisão do seu mestre e profeta João Batista, e essa comunidade crescerá e acompanhará Jesus, envolvida na sua vida até o fim.
O evangelista nos apresenta, então, um dia típico vivido por Jesus e pelos seus discípulos: o “dia de Cafarnaum” (cf. Mc 1,21-34), uma pequena cidade situada ao norte do Mar da Galileia, centro comercial, lugar de passagem entre a Palestina, o Líbano e a Assíria, cidade com pessoas heterogêneas, escolhida por Jesus como “residência”, como lugar onde ele e a sua comunidade tinham uma casa (cf. Mc 1,29,35, etc.), uma morada onde eles pousavam de vez em quando, nas pausas dos seus itinerários na Galileia e na Judéia.
Como um dia era vivido por Jesus? Ele pregava e ensinava, encontrava pessoas, libertando-as do mal e curando-as, rezava. Depois, certamente havia um tempo e um espaço para comer com os seus, para estar com a sua comunidade e para ensiná-la como era necessário viver para acolher o reino de Deus que vem.
Eis como o Evangelho nos narra essa jornada de Jesus. É um sábado, o dia do Senhor, em que o judeu vive o mandamento de santificar o sétimo dia (cf. Ex 20,8-11; Dt 5,12-15), e ele vai para a sinagoga para o culto. Jesus e os seus discípulos também vão à sinagoga de Cafarnaum, onde, depois da leitura de um trecho da Torá de Moisés (parashah) e de uma perícope dos Profetas (haftarah), um homem adulto podia tomar a palavra e comentar o que havia sido proclamado.
Jesus é um simples fiel do povo de Israel, é um leigo, não um sacerdote, e exerce esse direito. Vai ao ambão e faz uma homilia, cujo conteúdo Marcos não nos diz, ao contrário do que faz Lucas a respeito da homilia proferida por Jesus na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4,16-21).
E eis que “todos ficavam admirados com o seu ensinamento”, atesta o evangelista: sem manifestar o conteúdo preciso da sua pregação, no entanto, ele ressalta que os ouvintes ficaram tomados de estupor (exepléssonto) ao ouvi-lo. Certamente, naquele ensinamento, havia o anúncio do reino de Deus que vem, havia o chamado à conversão (cf. Mc 1,15), mas o leitor aqui é convidado sobretudo a captar a “autoridade” (exousía) de Jesus, bem diferente da dos escribas, dos especialistas das Sagradas Escrituras. Não que estes não tivessem autoridade, porque entre eles havia mestres que sabiam despertar discípulos e tocar o coração dos ouvintes. Mas a autoridade do escriba, habitualmente, era a de um mestre que havia recebido o ensinamento de outro mestre antes dele, em uma tradição, em uma transmissão que remontava a Moisés.
Jesus, por outro lado, tem uma autoridade semelhante à de Moisés, que lhe vem do fato de ter sido feito profeta por Deus e por ele enviado. Não se deve esquecer que Marcos acabou de apresentar Jesus como aquele sobre quem se abrem os céus e descem o Espírito de Deus e a sua Palavra, que o definiu como Filho amado, habilitando-o assim ao ministério profético (cf. Mc 1,10-11). João Batista, ao apresentar Aquele que vem como “o mais forte” (Mc 1,7), também havia indicado Jesus como um homem cheio do poder do Espírito Santo.
Jesus, portanto, mostra que tem uma autoridade inédita, rara. A sua palavra não é como a dos profissionais religiosos, dos muitos escribas encarregados de estudar e explicar as Escrituras. O que há de diferente na sua pregação? Podemos pelo menos dizer que nele há uma palavra que vem das suas profundezas, uma palavra que parece nascer de um silêncio vivido, uma palavra dita com convicção e paixão, uma palavra dita por alguém que não só crê naquilo que diz, mas que também o vive. Acima de tudo, é a coerência vivida por Jesus entre pensar, dizer e viver que lhe confere essa autoridade que se impõe e é performativa.
Atenção: Jesus não é alguém que seduz com a sua palavra elegante, erudita, literalmente cinzelada, rico em citações culturais; ele não pertence às fileiras dos pregadores que apenas impressionam e seduzem a todos, sem nunca converter ninguém. Pelo contrário, ele sabe penetrar no coração de cada um dos seus ouvintes, que são levados a pensar que o seu ensinamento é “novo”, sapiencial e profético ao mesmo tempo, uma palavra que vem de Deus, que sacode, “fere” e convence.
Nós sabemos bem disto: todos nós desejamos esse pregador nas nossas liturgias dominicais, mas às vezes ficamos decepcionados. Por outro lado, quem prega nas nossas assembleias não é o Filho de Deus que se fez homem, às vezes é alguém cansado e até frustrado na sua missão, às vezes é tão obrigado a repetir ritos e palavras que lhe faltam a convicção e a paixão.
Porém, eu creio que, mesmo nessa situação de pobreza de algumas assembleias litúrgicas, se alguém tem o coração aberto e desejoso de ouvir a palavra de Deus, algum fragmento dela sempre chega até ele... Já diziam os rabinos: se a Lei de Deus foi dada em meio a trovões, barulhos, sons, mas foi bem acolhida pelos fiéis, a pregação, que às vezes é apenas barulho, também pode transmitir a palavra de Deus a quem tem fome dessa palavra.
A autoridade de Jesus se mostra imediatamente depois em um ato de libertação. Na sinagoga, há um homem atormentado por um espírito impuro, um homem em quem o demônio está agindo. Não detenhamos a nossa atenção na violência e no barulho com que esse homem se expressa, segundo a descrição típica do estilo oriental imaginativo.
Vamos à substância: há um homem em quem o demônio atua de modo particular, em quem a força que se opõe à de Deus ocupou um grande espaço; nessa pessoa há um espírito impuro que se opõe ao Espírito Santo de Deus que habita em Jesus. A presença de Jesus na sinagoga é uma ameaça a essa força demoníaca, e então a verdade é gritada: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus!”.
Significativamente, esse espírito impuro fala de si mesmo no plural, apresentando-se como uma hoste de forças maléficas, demoníacas; como uma potência que, quando encurralada, reage gritando com violência, mas proclamando uma fórmula cristológica verdadeira: “Tu és o Santo de Deus” (cf. Jo 6,68-69). No entanto, isso visa a gerar escândalo e incredulidade, porque essa força plural não quer ter nada a ver com Jesus. Ele, porém, intima essa força: “Cala-te!”, impede-a de fazer uma proclamação sem adesão, sem seguimento; então, liberta o homem daquela presença devastadora e mortífera. O sinal da libertação ocorrida é um grande grito: “O espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu”.
Observe-se a imposição do silêncio por parte de Jesus: o grito do endemoninhado é formalmente uma confissão de fé, a identidade de Jesus não pode ser proclamada tão facilmente, como se fosse uma fórmula doutrinal ou, pior ainda, mágica. É diabólico confessar a fé correta sem se pôr no seguimento de Jesus!
Ao longo de todo o Evangelho segundo Marcos, testemunha-se essa preocupação de Jesus acerca da manifestação da sua identidade: não se deve divinizá-lo tão rapidamente, não se deve fazer isso por se estar encantado com os prodígios que ele realiza, nem se deve fazer isso por se entusiasmar com ele. Isso só poderá ser feito quando, tendo seguido Jesus até o fim, ele for visto pendurado na cruz. Só então – atesta o Evangelho – a confissão do leitor pode ser verdadeira, feita na verdade e com conhecimento profundo, junto com o centurião que, vendo Jesus pendurado no lenho, proclama: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus!” (Mc 15,39).
O melhor comentário é uma palavra de um monge do século XII, Guigo I, o Cartuxo: “A verdade deve ser adorada nua e pendurada na cruz”.
E eis que Marcos, criando uma inclusão com o início do relato (“Todos ficavam admirados com o seu ensinamento”), observa: “Todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: ‘O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!’”.
As pessoas presentes na sinagoga de Cafarnaum se interrogam cheias de temor: ouviram e viram que até mesmo as potências do mal são vencidas por Jesus graças à sua palavra nova, eficaz. O reino de Deus verdadeiramente se aproximou, e Jesus é cada vez mais reconhecido como uma presença por meio da qual o próprio Deus fala e age em toda a Galileia, a terra destinatária da sua pregação.
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Jesus nos liberta do poder do diabo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU