Quaresma. Artigo de Tomáš Halík

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09 Março 2022

 

"Na preparação quaresmal está em jogo justamente este afastamento do nada, do pecado do fechamento como morte espiritual, e sobretudo a conversão e o perdão como ressurreição, como despertar para uma vida plena e livre, para entrar no drama pascal da vitória sobre morte, sobre a culpa e sobre o medo. É necessário fazer ressuscitar a nossa fé, o nosso amor e a nossa esperança".  

 

O filósofo e teólogo tcheco Tomáš Halík propõe este texto no início do caminho quaresmal, convidando-nos a não nos determos nas formas de culto, mas a viver a mensagem de morte e de vida contida no mistério pascal. Se não existe um Messias sem cruz, nem mesmo existe uma Igreja ou um cristão sem cruz. Dizer "não" a todas as formas do Mal.

 

O texto é publicado por Settimana News, 06-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis o artigo. 

 

A homilia deveria ser uma ponte entre o mundo do texto bíblico e o mundo dos ouvintes. Esta não é uma tarefa fácil hoje, porque nestes tempos conturbados e dramáticos o mundo do qual fazemos parte está literalmente mudando a cada dia. Não me atrevo a prever o que acontecerá nos próximos dias entre o momento em que preparo minha homilia e o domingo em que é previsto que seja apresentada na igreja.

 

Pouco tempo atrás, poucos poderiam imaginar que a Europa estaria novamente em guerra, que a Rússia de Putin seria excluída da família dos países civilizados, cometeria crimes de guerra, destruiria da noite para o dia a ordem mundial pacífica construída ao longo de décadas, pisotearia o direito internacional, atacaria seu vizinho mais fraco de forma insidiosa e desprezível, tentaria varrer do mapa um estado democrático, um grande país culturalmente próximo de nós, e também mataria brutalmente mulheres e crianças. O sangue da Ucrânia clama ao Senhor dos Exércitos.

 

Assim que a onda de contágio da pandemia diminuiu, a Rússia de Putin desencadeou uma pandemia ainda mais terrificante de injustiça, medo e violência, para a qual é difícil encontrar um remédio suficientemente eficaz.

 

As cinzas, iniciação à maturidade

 

Nas igrejas iniciamos o período de penitência pré-pascal com o rito das cinzas, acompanhado das palavras: "Lembra-te que és pó, e ao pó voltarás". Essa cerimônia e essas palavras nos confrontam com nossa transitoriedade, a nossa morte. Assemelha-se, portanto, aos antigos ritos de iniciação, nos quais o confronto com a morte significava a iniciação na idade adulta - talvez fosse esse, afinal, o significado do rito de sacrifício de Isaque.

 

Neste momento histórico nos deparamos com a morte que está destinada a nos conduzir à idade adulta, à maturidade, à responsabilidade.

 

Começamos a Quaresma com a consciência da morte e da transitoriedade. No final da Quaresma, celebraremos a grande noite do triunfo sobre a morte e sobre o medo da morte, quando podemos perguntar: "Morte, onde está a tua vitória?". A Sagrada Escritura nos diz: "Por medo da morte vocês foram mantidos em cativeiro." Mas somos chamados à liberdade, até mesmo à liberdade do medo. A tarefa da Quaresma é uma transformação interior, uma oportunidade de libertação, de re-criação.

 

O relato figurativo da criação do homem na Bíblia nos diz que o homem é um grande paradoxo: ele é tirado do nada, do pó da terra - e é animado pelo espírito de Deus.

 

O pó e as cinzas são um símbolo do nada: é uma substância que não tem forma, é logo soprada pelo vento, não serve mais para nada. Só Deus pode criar do nada. Só ele pode dar a algo tão insignificante uma forma, um rosto e um significado: o seu Espírito. Assim, pelo poder do Espírito de Deus, o homem, vulnerável e transitório, torna-se a imagem e a expressão da liberdade e da criatividade de Deus.

 

Quando o homem abusa do dom da liberdade, quando se fecha ao sopro do Espírito de Deus na concha de seu egoísmo - e chamamos esse fechamento de pecado - cai no nada. No Livro dos Salmos lemos: "Se o seu espírito lhes for tirado, voltam ao pó". Mas o salmista fala então de arrependimento, de conversão - como de uma re-criação: você lhes devolve o espírito e eles são criados.

 

Na preparação quaresmal está em jogo justamente este afastamento do nada, do pecado do fechamento como morte espiritual, e sobretudo a conversão e o perdão como ressurreição, como despertar para uma vida plena e livre, para entrar no drama pascal da vitória sobre morte, sobre a culpa e sobre o medo. É necessário fazer ressuscitar a nossa fé, o nosso amor e a nossa esperança.

 

Não tomemos levianamente este chamado quaresmal de Deus, transformando-o em uma renúncia ao chocolate e às muitas despesas. Os próximos anos levarão por si mesmos a uma renúncia às coisas materiais e a um estilo de vida mais sóbrio.

 

No tempo do coronavírus, Deus fechou as igrejas para nos dizer: se você pensava que seu cristianismo consistia em levar uma vida de bem e ir à igreja aos domingos, saiba que neste dia e nesta época, isso não é suficiente. "Buscai o Senhor já que Ele se deixa encontrar" é o lema da Quaresma.

 

Se respondemos a essa pedagogia divina apenas assistindo à missa na TV no domingo, então não entendemos nada. Deus quer que busquemos corajosa, criativa e generosamente outras maneiras mais profundas e estimulantes para refletir e realizar a nossa fé, em vez do consumo passivo do culto.

 

O apelo do Papa Francisco à reforma sinodal da Igreja tem o mesmo significado: transformar uma instituição rígida em uma rede de comunicação recíproca, uma forma de buscar juntos uma resposta aos sinais de nossos tempos revolucionários. Não uma fuga para o passado, nem uma modernização barata - mas uma viagem desafiadora da superficialidade à profundidade.

 

As três tentações

 

O Evangelho do primeiro domingo da Quaresma nos lembra que Jesus enfrentou o duro caminho de jejuar por quarenta dias no deserto. Em seu batismo no Jordão, saiu do anonimato e foi identificado por João - e pela voz de Deus do alto - como o tão esperado Messias e o amado Filho de Deus. Jesus embarca em seu mandato messiânico.

 

Mas não passa imediatamente do lugar do batismo para as ruas do mundo. Ele vai para a solidão, no deserto, para um lugar onde é refinado, assim como o ouro e a prata são refinados. Será testado naqueles 40 dias, como o povo escolhido foi testado nos quarenta anos no deserto no caminho da escravidão para a liberdade.

 

O deserto não é um lugar de tranquila contemplação; o deserto era visto como um lugar de demônios. Os eremitas não iam ao deserto para desfrutar da paz, mas para combater o espírito maligno em seu próprio campo.

 

Quem entra na solidão e no silêncio, e ali jejua, não deve esperar nada agradável. É no silêncio e na solidão que pode ressoar o que está escondido, aquela sombra da nossa natureza, aquilo que muitas vezes afogamos com barulho e reprimimos com a diversão. Quando nos sentimos tristes e sozinhos, muitas vezes nos jogamos na comida e na bebida para afugentar esses sentimentos; quando sentimos fome, conseguimos ficar irritados e ressentidos. Muitas tentações podem surgir na alma de uma pessoa cujas necessidades são frustradas. Até Jesus, quando estava com fome, foi posto à prova, foi tentado.

 

Todas as três tentações são dirigidas contra sua missão, que ele aceitou no batismo e que refinou na solidão do deserto. Todas as três tentações visam corromper seu papel messiânico.

 

Entre todas as ideias do Messias da época - triunfante sobre os ocupantes romanos e restaurador do poder e da glória do império davídico - Jesus abraça aquela retratada pelo profeta Isaías: o Messias será um homem de dores, que suportará a culpa de todo o povo, morto como o cordeiro pascal - mas é através de suas feridas, de suas cicatrizes, que muitos serão curados.

 

No deserto, o diabo - com seu uso hábil de passagens da Bíblia - oferece-lhe um papel completamente diferente de Messias - um Messias sem cruz, um Messias de sucesso, de milagres espetaculares, um Messias de poder e glória, que reúne admiração e popularidade.

 

Transforme pedras em pão, alimente a si mesmo e a todos os famintos, resolva os problemas sociais, estabeleça um reino de prosperidade! Jogue-se do telhado do templo e nada lhe acontecerá, pelo contrário: todos o aplaudirão! Dê a si mesmo poder real sobre o mundo inteiro por um pequeno preço; por aquela única reverência diante do Senhor das Trevas, vale a pena! Nenhuma cruz – mas, sim, um trono de ouro!

 

Mas Jesus sabe que o Cristo sem a cruz seria o Anticristo.

 

Uma Igreja sem cruz seria uma das instituições poderosas deste mundo; um padre sem a cruz seria um funcionário, um agitador, um ideólogo. Um cristão sem a cruz seria um membro de uma das tantas organizações e um apoiador de uma das tantas visões do mundo.

 

 

Quando Cristo começa a falar diante de Pedro sobre a cruz que o espera (depois de louvá-lo por sua confissão messiânica e de tê-lo declarado a rocha sobre a qual edificará sua Igreja), Pedro lhe fala familiarmente: é melhor para você se evitar todo sofrimento! E então Pedro ouve as palavras mais duras que saem da boca de Jesus: afasta-te de mim, Satanás! Jesus reconhece nas palavras de Pedro um eco da tentação de Satanás no deserto.

 

E pela terceira vez a mesma tentação chega na hora da morte: desça da cruz - e todos nós creremos em você imediatamente!

 

O filme de Scorsese A Última Tentação de Cristo, baseado no romance de Kazantzakis, representa a última tentação na cruz: renunciar à via crucis, viver uma "vida normal" como todos! O romance e o filme - escandalosos para muitos cristãos - terminam de maneira bastante verdadeira: Jesus resiste à tentação, volta à cruz.

 

 

Jesus não transforma magicamente pedras em pão: mas dá seu corpo e seu sangue, todo o seu ser - e assim se torna o pão da vida.

 

Jesus não se choca contra o fundo deste mundo, não se joga na rede de segurança dos anjos, mas bebe o cálice do sofrimento até o fim, não foge do peso do destino humano.

 

Jesus recebe todo o poder na terra e no céu - mas não é uma recompensa por se curvar ao diabo, mas o fruto da fidelidade à vontade do Pai Celestial.

 

Diga NÃO ao diabo

 

Say no to the devilDiga não ao diabo, cantava o pastor evangélico e dissidente tcheco Sváťa Karásek diante do regime policial com suas tentações, promessas e intimidações durante a ocupação russa da Tchecoslováquia.

 

Nosso mundo está novamente ameaçado pela escuridão que pensávamos nunca mais teria voltado do inferno do passado. Mais uma vez, do mesmo lugar de onde veio o gelo de 1968, que durante vinte anos corroeu o desejo de liberdade de nosso país, agora se derramam novamente mentiras, sangue e o fogo da destruição e, ao mesmo tempo, tenta-se o mundo ao egoísmo e à indiferença, à tola convicção de que o fim ainda não está próximo. Não é verdade. Não nos deixemos levar por uma falsa calma e não nos deixemos intimidar: digamos NÃO ao diabo.

 

 

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