23 Novembro 2021
“O sigilo do sacramento da confissão é sagrado e inviolável. Um ponto que permanecerá firme e irrenunciável; para defendê-lo, estou disposto a colocar todo o meu peso magistral”. Com essas palavras, o Papa, durante o último encontro dos chefes de dicastérios, trouxe um clima grave à sala onde se estava se reunindo com os seus colaboradores mais próximos da Cúria. Francisco resumia o último confronto em andamento aos cardeais e bispos presentes.
A reportagem é de Franca Giansoldati, publicada por Il Messaggero, 20-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um assunto extremamente delicado, que desta vez encontra a Santa Sé e a França em contraposição, ainda que a França seja apenas o último país em que um movimento popular aflorou em favor da eliminação do segredo confessional. Há quem pense, de fato, que sem o sigilo confessional a que estão vinculadas os consagrados, sob pena de sua excomunhão, padres e bispos poderiam denunciar às autoridades civis com maior facilidade do que hoje acontece os casos de pedofilia de que se tornarem cientes durante a confissão.
Investigação
A publicação do chocante relatório sobre os abusos sexuais na Igreja francesa fez com que o caso explodisse. Confrontado com as estimativas devastadoras de cerca de 330.000 vítimas ao longo de um período de 70 anos, até o magistrado que chefiava a comissão de investigação independente, o juiz Jean Marc Sauvè indicou aos bispos que o caminho para conter a praga dos abusos passa também pela abolição do segredo confessional. Tema muito debatido e na origem de uma discussão sem precedentes, a ponto de levar o primeiro-ministro francês, Jean Castex, no dia 8 de outubro passado, a falar sobre o assunto durante uma conversa privada com o pontífice. Mas também naquela ocasião Francisco disse ao convidado que a questão poderia ser encerrada imediatamente, a Igreja jamais consentiria com um passo desse tipo. Romper o sigilo sacramental é um ato sacrílego, inclusive porque a confissão não é de forma alguma comparável ao segredo profissional, mas algo que pertence à fé e à relação estabelecida entre Deus e a Igreja. Em suma, o muro contra o muro.
Antes da França, outras nações em choque com a publicação de relatórios sobre a pedofilia haviam encaminhado pedidos semelhantes à Igreja. Austrália, Irlanda, Estados Unidos. A pergunta era basicamente a mesma: se por acaso um ministro de culto vier ao conhecimento de violências contra um menor durante uma confissão, não deveria ir imediatamente a um magistrado ou a uma delegacia para denunciá-lo?
De acordo com juristas e canonistas católicos, pressionar pela remoção do segredo da confissão levantaria inevitavelmente a questão da liberdade de religião e de consciência. O direito canônico, no cânon 983, impõe ao ministro de culto um comportamento muito claro: a inviolabilidade ("É absolutamente proibido trair o penitente de qualquer forma, por palavra ou por qualquer motivo"). Segue-se que nenhum sacerdote, para a Igreja, jamais poderá quebrar o sigilo, nem mesmo para salvar a própria vida, proteger o seu bom nome, salvar a vida de alguém ou entrar em um processo, caso contrário incorre-se na imediata excomunhão.
Colaboração
Para entender a determinação do Vaticano em defender a linha da firmeza, teria sido suficiente ouvir - tempo atrás - o Cardeal Vincent Nichols, Arcebispo de Westminster, que sentado diante da comissão de investigação independente sobre os abusos, resumiu assim: "Os padres prefeririam morrer ou ir para a prisão antes de quebrar o segredo da confissão”.
Em julho, três anos atrás, uma nota da Penitenciaria Apostólica escreveu que o sacramento da confissão é intangível. Essa posição foi depois reafirmada pelos bispos australianos que, perante a Comissão Real, garantiram a mais ampla colaboração na descoberta dos pedófilos, sem prejuízo do empenho absoluto com a proteção do caráter sagrado do sacramento. Nos últimos dias, o presidente dos bispos franceses, Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort, após a publicação do relatório choque, disse que agora era preciso trabalhar para conciliar a natureza da confissão com a necessidade de proteger as crianças. Enquanto isso, a audiência entre o Papa e o Presidente Macron foi marcada para 26 de novembro. É bem possível que o tema volte a ser discutido novamente.
Leia mais
- Abusos sexuais e confissão: o confessor deve denunciar um abusador? A reflexão e a proposta do Pe. Zollner
- Confissão: segredo de dois gumes
- Uma teologia da memória em tempos de abusos sexuais cometidos pelo clero
- “Minha alma dilacerada”. Nas mãos do Papa, a carta de uma vítima de abusos
- Segredo, confissão e abuso: Cardeal Federigo, o Inominado e Lúcia. Artigo de Andrea Grillo
- A Igreja novamente envergonhada pelos crimes de abusos. Teóloga moral fala sobre os aspectos positivos e negativos da vergonha
- Abusos na França, dor e vergonha. De Moulins-Beaufort: verdade, única forma
- É pedida a renúncia coletiva dos bispos franceses após o horror dos casos de pedofilia
- Para que o horror não volte a acontecer. Artigo de Enzo Bianchi
- Pedocriminalidade: “Para se reformar, a Igreja deve, o mais rapidamente possível, contar com os leigos que estão ao seu serviço”. Artigo de Anne Soupa
- "Fomos confrontados com o mistério do mal". Entrevista com Jean-Marc Sauvé, presidente da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na França
- “A Ti, Senhor, a glória; para nós, a vergonha. Este é o momento de vergonha”, diz o Papa sobre o relatório sobre abusos sexuais do clero francês
- O pesar do Papa pelo Relatório sobre os abusos na Igreja na França
- O relatório da Igreja na França: 13 abusos contra menores por dia durante 70 anos
- A amargura do presidente dos bispos: “Uma atrocidade, peço mil vezes perdão”
- Os abusos na igreja francesa demonstram que o silêncio sobre a pedofilia permitiu que fosse ocultada
- O conselheiro do Papa, Hans Zollner: “Agora cabe aos bispos italianos investigar a pedofilia”
- Abusos na Igreja: o massacre francês
- Abusos sexuais na Igreja católica: o balanço avassalador da comissão Sauvé
- França. Como confiar na Igreja à luz da chocante denúncia dos abusos sexuais?
- França. Pedocriminalidade: a Igreja precisa de um verdadeiro 'aggiornamento', afirma editorial do Le Monde
- “Com o coração triste”: o escândalo dos padres abusadores. Artigo de Tomáš Halík
- Relatório sobre abusos sexuais na França será “assustador”
- A França é responsável pelo horror da pedofilia clerical: 330.000 vítimas em centros católicos desde 1950
- Pedofilia: 10.000 vítimas em 70 anos na Igreja francesa
- Pedofilia no clero, o mea culpa no Sínodo dos Bispos: “Por muito tempo o grito das vítimas foi um grito que a Igreja não ouviu”
- França: religiosos em sintonia com bispos na luta contra a pedofilia
- A pedofilia é “uma grande monstruosidade”, disse o papa no novo documentário
- França. Consciência da Igreja sobre a pedofilia está aumentando, constata a presidente do Senado
- Pedofilia, a petição on-line do sacerdote que pede a renúncia do arcebispo de Lyon, França
- França. Pelo menos dez mil menores sofreram abusos dentro da Igreja desde 1950
- França. “Os fiéis têm a impressão de que a Igreja está enfrentando um enorme perigo”. Entrevista com Céline Béraud
- França: bispos esperam com apreensão os resultados de um relatório inédito sobre abusos sexuais na Igreja
- Bispos franceses se responsabilizam pelos escândalos de abusos sexuais
- Luta contra a pedofilia: dois cardeais com posturas opostas sobre as responsabilidades institucionais e pessoais
- Por que obrigar o clero a denunciar os abusos não vai resolver a crise. Artigo de Thomas Reese
- Acabar com o sigilo pontifício é um marco histórico. Mas a responsabilização precisa ser efetiva
- É hora de modificar o ''sigilo da confissão'' da Igreja Católica
- Abusos: “A denúncia é necessária. Quem fez isso contra um menor agrediu a Cristo”, afirma Francisco
- O arcebispo e o historiador. A Igreja é ouvida, mas não escutada? Entrevista com Eric de Moulins-Beaufort e Guillaume Cuchet
- Mudança epocal. Com a abolição do segredo pontifício, documentos mais acessíveis para os magistrados e transparência para as vítimas de abuso sexual
- Reforma histórica no Vaticano: Papa decidiu abolir segredo pontifício para casos de abuso sexual
- Papa à Igreja: entreguem os abusadores à justiça. Artigo de Thomas Reese
- Reforma do Código de Direito Canônico. Acabou qualquer tolerância com os crimes clericais
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa resiste à pressão: “O segredo confessional vale para os padres que cometeram abusos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU