15 Mai 2020
“Vivemos e continuaremos vivendo na terra. Somos e continuaremos a ser mortais e frágeis. Tornemo-nos, portanto, cidadãos do mundo, cosmopolitas de uma pandemia metafísica. Qualquer outra atitude nos exterminará e nenhum virologista poderá nos salvar”, escreve Markus Gabriel, filósofo alemão, diretor do Centro Internacional de Filosofia de Bonn, em artigo publicado por El País, 24-03-2020. A tradução é do Cepat.
A ordem mundial está transtornada. Na escala do universo, invisível aos olhos humanos, propaga-se um vírus cuja verdadeira dimensão desconhecemos. Ninguém sabe quantas pessoas estão doentes pelo coronavírus, quantas ainda vão morrer, quando será desenvolvida uma vacina, entre outras incertezas. Ninguém sabe quais efeitos terão para a economia e a democracia as atuais medidas radicais de um estado de exceção que afetam toda a Europa.
O coronavírus não é uma doença infecciosa qualquer. É uma pandemia viral. A palavra pandemia vem do grego antigo e significa “todo o povo”. De fato, todo o povo, todos os seres humanos, somos afetados por igual. Mas é exatamente isso que não entendemos, se acreditarmos que faz algum sentido encerrar as pessoas dentro das fronteiras. Por que deveria causar impressão ao vírus que a fronteira entre a Alemanha e a França esteja fechada? O que nos faz pensar que a Espanha é uma unidade que deve ser separada de outros países para conter o patógeno? A resposta a essas perguntas será que os sistemas de saúde são nacionais e o Estado deve cuidar dos doentes dentro de suas fronteiras.
Certo, mas justamente aí reside o problema. É que a pandemia afeta a todos nós, é a demonstração de que estamos todos unidos por um cordão invisível em nossa condição de seres humanos. Diante do vírus, todos somos efetivamente iguais. Diante do vírus, nós, seres humanos, não somos mais que isso, seres humanos, ou seja, animais de uma determinada espécie que oferece um hóspede a uma reprodução mortal para muitos.
Os vírus, em geral, expõem um problema metafísico não resolvido. Ninguém sabe se são seres vivos. A razão é que não há uma definição única de vida. Na realidade, ninguém sabe onde começa. Para ter vida basta o DNA ou o RNA ou é necessária a existência de células que se multiplicam por si mesmas? Nós não sabemos, assim como não sabemos se plantas, insetos ou mesmo nosso fígado têm consciência. É possível que o ecossistema da Terra seja um gigantesco ser vivo? É o coronavírus uma resposta imune do planeta à petulância do ser humano, que destrói infinitos seres vivos pela ganância?
O coronavírus evidencia as fragilidades sistêmicas da ideologia dominante do século XXI. Uma delas é a crença equivocada de que somente o progresso científico e tecnológico pode impulsionar o progresso humano e moral. Essa crença nos encoraja a confiar que especialistas da ciência possam resolver problemas sociais comuns. O coronavírus deveria ser uma demonstração disso para todos. No entanto, o que ficará claro é que essa ideia é um erro perigoso. É verdade que temos que consultar os virologistas, somente eles podem nos ajudar a entender o vírus e contê-lo a fim de salvar vidas humanas. Mas quem os ouve quando nos dizem que todos os anos mais de 200.000 crianças morrem de diarreia viral, por não terem água potável? Por que ninguém se interessa por essas crianças?
Infelizmente, a resposta é clara: porque não estão na Alemanha, Espanha, França e Itália. No entanto, isso também não é verdade, pois estão em campos de refugiados localizados em território europeu, ao qual chegaram fugindo da situação injusta causada por nós, com o nosso sistema consumista. Sem progresso moral, não há verdadeiro progresso. A pandemia nos ensina isso com os preconceitos racistas que se expressam em toda parte. Trump tenta classificar o vírus como um problema chinês. Boris Johnson acha que os britânicos podem resolver a situação por meio do darwinismo social e provocar uma imunidade coletiva eugenista. Muitos alemães acreditam que nosso sistema de saúde é superior ao da Itália e, portanto, seremos capazes de dar a melhor resposta. Estereótipos perigosos, preconceitos estúpidos.
Estamos todos no mesmo barco. Isso, no entanto, não é novidade. O próprio século XXI é uma pandemia, o resultado da globalização. A única coisa que o vírus faz é manifestar algo que vem de longe: precisamos conceber um Iluminismo global totalmente novo. Aqui, cabe usar uma expressão de Peter Sloterdijk, dando-lhe uma nova interpretação, e afirmar que não precisamos de um comunismo, mas de um coinmunismo. Para isso, temos que nos vacinar contra o veneno mental que nos divide em culturas nacionais, raças, faixas etárias e classes sociais em mútua concorrência. Em um ato de solidariedade antes insuspeitado na Europa, estamos protegendo nossos doentes e idosos. Por isso, colocamos as crianças em casa, fechamos os centros educacionais e declaramos um estado de exceção de saúde. É por isso que bilhões de euros são investidos para reativar a economia.
Mas se, uma vez superado o vírus, continuarmos a agir como antes, surgirão crises muito mais graves: vírus piores, cuja aparição não podemos impedir, a continuação da guerra econômica com os Estados Unidos, na qual a União Europeia já está imersa, a proliferação de racismo e nacionalismo contra migrantes que fogem para nossos países porque fornecemos aos seus executores o armamento e os conhecimentos para fabricar armas químicas. E, não vamos esquecer, a crise climática, muito mais prejudicial do que qualquer vírus, porque é o produto da lenta autodestruição do ser humano. O coronavírus só a interromperá brevemente.
A ordem mundial anterior à pandemia não era normal, mas letal. Por que não podemos investir bilhões para melhorar nossa mobilidade? Por que não utilizar a digitalização para realizar pela Internet as reuniões absurdas, para as quais os chefes da economia viajam em aviões particulares? Quando entenderemos, enfim, que, comparado com a nossa superstição de que os problemas contemporâneos podem ser resolvidos pela ciência e pela tecnologia, o perigosíssimo coronavírus é inofensivo?
Precisamos de um novo Iluminismo, todo mundo deve receber uma educação ética para que reconheçamos o enorme perigo de seguir cegamente a ciência e a técnica. É claro que estamos fazendo a coisa certa, combatendo o vírus com todos os meios. De repente, há solidariedade e uma onda de moralidade. É bom que seja esse o caso, mas, ao mesmo tempo, não devemos esquecer que, em poucas semanas, passamos de um desdém populista, em relação a especialistas da ciência, a um estado de exceção que um amigo de Nova York descreveu apropriadamente como “Coréia do Norte cientificista”.
Temos que reconhecer que a cadeia infecciosa do capitalismo global destrói nossa natureza e atordoa os cidadãos dos Estados nacionais, para que nos tornemos turistas profissionais e consumidores de bens cuja produção acabará por causar mais mortes do que todos os vírus juntos. Por que a solidariedade se desperta com o conhecimento médico e virológico, mas não com a consciência filosófica de que a única saída da globalização suicida é uma ordem mundial que supere a acumulação de estados nacionais em conflito entre si, obedecendo a uma estúpida lógica econômica quantitativa? Quando passar a pandemia viral, precisaremos de uma pandemia metafísica, uma união de todos os povos sob o teto comum do céu, do qual nunca podemos escapar.
Vivemos e continuaremos vivendo na terra. Somos e continuaremos a ser mortais e frágeis. Tornemo-nos, portanto, cidadãos do mundo, cosmopolitas de uma pandemia metafísica. Qualquer outra atitude nos exterminará e nenhum virologista poderá nos salvar.
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Quando passar a pandemia viral, precisaremos de uma pandemia metafísica. Artigo de Markus Gabriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU