27 Abril 2020
O filósofo Rémi Brague nos convida a um exame da consciência. E, para além da pandemia da Covid-19, levanta a pergunta: “Não existem epidemias intelectuais, morais, espirituais, certamente mais discretas, mas mais deletérias em longo prazo?”.
O artigo foi publicado em La Croix, 21-04-2020. A tradução da versão italiana é de Moisés Sbardelotto.
Como todo mundo, eu fiquei confinado na minha casa por uma quinzena de dias. Tenho a grande sorte de estar em um apartamento parisiense calmo. Também tenho uma sorte ainda maior por estar na companhia de duas das seis mulheres da minha vida, minha esposa e minha mãe, enquanto as outras quatro, minha filha e netas, estão dispersas entre Madri, Mâcon e Frankfurt. Nós passamos muito tempo ao telefone ou no Skype, com parentes e amigos. Recebemos no WhatsApp vídeos de estudos e jogos dos nossos netos. E, é claro, também temos as tarefas domésticas, as compras, aquilo que nos mantêm ocupados e afasta o tédio.
Fora isso, o que fazer nas horas livres? Como um bom intelectual um pouco esnobe, eu poderia reler ou – sejamos honestos – ler alguns dos grandes escritores da peste, Tucídides, Lucrécio, Boccaccio, De Foe, Manzoni, Camus, Giono. Preferi aproveitar a oportunidade para me dedicar à redação dos meus próprios livros, que certamente não estão à altura dos deles. Só que eu prometi e já estou atrasado. Então, desde que acordei, e ainda de roupão, me sentei ao computador e respondi à pergunta: o que pensar dessa epidemia?
Como cristão, que, portanto, não age como se Deus não existisse, qual pode ser o lugar de Deus nesta história? Seria um castigo? Certos fundamentalistas estadunidenses já haviam sugerido isso na época da Aids. Eles retomam isso neste momento. Muçulmanos barbudos os seguem no mesmo caminho.
Isso é pouco demais para mim. Bater em um gongo gritando: “É o castigo!”, deixemos isso a Philippulus [o “profeta” das histórias de Tintin]. Um deus que zomba com a sua barba: “Bem feito, que aprendam!”, o deus de Panizza, que quer enviar a varíola, esse deus não é o dos cristãos, que aceita morrer na cruz pela salvação das suas criaturas.
Pensemos, antes, na lógica interna das nossas práticas. Há algumas que se abrem para um “mais” da vida; outras, para ser franco, levam à morte, em curto ou longo prazo. De fato, a Providência vigia sobre os vivos, não agindo em seu lugar, mas permitindo que eles possam alcançar por si mesmos aquele que é o seu bem. Os animais recebem o instinto de se alimentar, de se reproduzir, de evitar os perigos.
Para nós, seres humanos, a providência assume um aspecto particular. O instinto cede lugar à inteligência, ao uso racional da liberdade. A providência se torna, com um jogo de palavras que a etimologia latina confirma e que já estava presente nos romanos, prudência. Não apenas a prudência daqueles que olham bem antes de atravessar a rua, mas sim aquela sabedoria prática que escolhe os melhores meios para obter um bom fim, a phronēsis de Aristóteles, à qual o meu bom professor Pierre Aubenque, falecido no fim de fevereiro, havia consagrado o melhor dos seus livros.
Eu mencionei antes as grandes obras literárias, sobretudo romances, que têm por sujeito integral ou parcial, ou ainda como marco narrativo, uma epidemia. No entanto, o relato de uma epidemia, que me parece ser o mais significativo para o que ocorre conosco, não é a descrição clínica de uma doença real e a crônica da sua evolução, mas sim uma simples metáfora.
É o sonho de Raskolnikov no epílogo de “Crime e castigo”, de Dostoiévski (1867). O estudante que se tornou assassino por orgulho está na prisão, em via de redenção. Uma forte febre lhe faz ver em pesadelo uma peste inédita. A originalidade da doença imaginária da qual ele conta os resultados e, ao mesmo tempo, o que a torna tão perigosa reside na natureza dos micróbios, espécies de triquinas: eles são inteligentes e envenenam a alma dos homens, mais do que infectar seus corpos. Todos os afetados, isto é, quase toda a humanidade, combinam uma demência total com uma convicção inabalável de estarem na verdade e até de serem os únicos a possuir a verdade. Não há como se unir para uma obra comum. Derivam disso conflitos sangrentos. De tal infecção, só seria poupada uma pequena elite, eleitos destinados a produzir uma nova raça e uma nova vida, em uma terra regenerada e limpa – mas essas pessoas, acrescenta ironicamente o protagonista ou o romancista, ninguém as viu nem ouviu.
Isso se assemelha muito à nossa situação de hoje: um individualismo sensível, uma rejeição a crer que possa haver um bem comum, que possa haver um jogo no qual ambos ganham e, portanto, a convicção de que se deve absolutamente derrotar, destruir aquele cujos interesses não coincidem com os nossos ou que simplesmente não tem a nossa mesma opinião.
Veja-se o modo como são reenviadas as acusações: a culpa é dos chineses, diz Trump. E Xi começa a lançar a sua verdade oficial: foram os europeus que nos infectaram. Veja-se também o modo como os partidos se dividem, os grupelhos se dilaceram por dentro. E, acima de tudo, veja-se o modo como se joga a responsabilidade sobre... bem, sobre todo mundo: sobre o governo atual, sobre os governos anteriores, sobre a globalização, sobre a negligência deste, sobre a imprevidência daquele etc., sem falar das conspirações sempre fáceis de desmascarar. O que eu acho abjeto.
Nada mais do que uma elite de inencontráveis salvados e salvadores que não tem paralelos na nossa atualidade. Acreditar-se chamado a fazer a humanidade recomeçar a partir do zero, depois que alguma catástrofe tenha limpado a Terra dos maus, é um belo programa. Mas os maus são sempre os outros.
Para mim, em vez disso, esta pandemia é a oportunidade para um exame de consciência, individual, como cidadão e como acadêmico, mas também um exame de consciência coletivo, como parte da corporação dos filósofos da qual o fato de estar aposentado não me excluiu, como beneficiário dessa civilização que, tendo saído da Europa, conquistou boa parte do mundo.
Então, eu me pergunto: esta epidemia é a epidemia mais grave que existe? Não existem, talvez, epidemias intelectuais, morais, espirituais, certamente mais discretas, mas mais deletérias em longo prazo? Nem todas vêm do Oriente. A maioria tem como epicentro o Ocidente, senão até a França. Fiz tudo o que precisava ser feito para atenuar os seus efeitos?
Francamente, não descobri grandes coisas que ainda não soubesse, ou, pelo menos, que eu imaginava saber. Esse confinamento me impediu de partir para Madri e de lá para a costa leste dos Estados Unidos, onde eu devia passar 10 dias dando palestras. Sinto-me frustrado, por um lado, por não ter podido honrar os meus compromissos e, por outro, aliviado, mesmo que apenas por, assim, ter podido festejar com Françoise os nossos 50 anos de casamento.
“Porque, no fundo, tudo isso é obra da Providência. É ela quem arranja tudo, nós a pagamos para isso!”, eu digo, estufando o peito. Muito bem. Mas quem sabe como eu reagiria se fosse atingido no meu corpo ou no corpo dos meus entes queridos? É a pergunta que Satanás faz a Deus sobre Jó, que, porém, não falhou com ele.
Quanto a mim, tudo leva a crer que eu não seria tão presunçoso. Enquanto tudo vai bem, brincar de se colocar nas mãos do Pai nunca faz mal. Estou enclaustrado na minha biblioteca, com pessoas que eu amo e que se entendem maravilhosamente bem. Mas penso naqueles que vivem sozinhos em um pequeno quarto, como um dos meus ex-estudantes, ou em um lar de idosos como a minha madrinha: suas refeições são depositadas na frente da sua porta por um empregado, que depois vai embora.
Comparado ao destino deles, a minha solidão é confortável, e pregar o abandono à vontade divina não me custa nada. Mas, como São Pedro, no purgatório, diz a Dante, que acaba de recitar o Credo com perfeição: a sua moeda é forte, mas você a guarda na bolsa?
“Nesta moeda examinado metal e peso muito bem tem sido. Mas diz: na bolsa a tens arrecadado?” (Paraíso, Canto XXIV, vv. 83-85; trad. José Pedro Xavier Pinheiro – Pedro reconhece que o poeta demonstra conhecer o valor da fé, mas lhe pede que declare que a possui).
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Pandemia, uma oportunidade para um exame de consciência. Artigo de Rémi Brague - Instituto Humanitas Unisinos - IHU