23 Abril 2020
"O recado que o vírus nos traz aponta para a necessidade de cuidarmos da Casa Comum assim como estamos sendo orientados e obrigados a cuidar (limpar) a nossa própria morada. Porém, não podemos esquecer que muitos não têm casa, nem água, nem cama, nem comida, e até vivem dos/nos lixões. Seres também constituídos de dignidade, mas sem os direitos fundamentais garantidos", escreve Dirceu Benincá, professor na Universidade Federal do Sul da Bahia - UFSB.
Desde crianças aprendemos o poder revolucionário do cuidado. Ao ouvirmos o termo cuidado, paramos, repensamos, voltamos atrás, evitamos ir ou, dependendo da situação, saímos em disparada. Ele nos alerta sobre a importância e/ou necessidade de mudar de atitude. A expressão cuidado é polissêmica, ou seja, carregada de variados significados. Se, por um lado, nos indica um quadro de risco ou perigo, por outro pode retratar práticas e comportamentos de zelo consigo, com os outros e com o meio ambiente no qual nos inserimos.
Eis que de repente, não mais que de repente, um vírus oriundo provavelmente do morcego chega e nos diz: ‘Atenção galera mundial, estou aqui’. E agora, José, Maria, fulano, beltrano e sicrano? O que fazer de modo urgente e amplamente eficiente? O vírus responde: ‘Se não forem prudentes e não usarem os cuidados necessários, faremos uma boa parceria!’ Diálogo inusitado e incômodo que nos obriga a pensar no modo de vida que a sociedade capitalista, consumista, individualista, insensível, odiosa, intolerante e insustentável adotou.
Chegamos assim a esta situação limite e a outros limites. O Planeta Terra está a cada ano entrando mais cedo em déficit com sua capacidade de suportabilidade por conta das interferências humanas. De acordo com a Global Footprint Network, em 2019 o planeta atingiu o esgotamento de recursos naturais que poderiam ser renovados sem custo ao ambiente mais cedo da história, ou seja, em 29 de julho. Em situações limites – sejam pessoais, coletivas ou planetárias (como é o caso) – percebemos quão frágil é nossa vida. Vemos agora com mais clareza o quanto dependemos uns dos outros e como “tudo está interligado como se fossemos um”!
Enquanto estamos confinados em nossas casas pela ditadura virulenta, temos a oportunidade de refletir sobre o rumo da história humana. A propósito, por esses dias alguém pôs em circulação nas redes sociais uma declaração emblemática: “O mundo ficou doente por causa da baixa humanidade”. Dias depois um morador em situação de rua no Reino Unido ilustrou a afirmação: “Esse vírus não me preocupa porque ninguém precisa de mim mesmo”. Sociedade, a nossa, que adoeceu também pela sua baixa sustentabilidade.
Agora, além das medidas rigorosas no sentido de cuidar da saúde pessoal e coletiva, é hora de pensar concretamente maneiras de criar um mundo novo, possível e necessário. Isso significa: novas relações sociais, outro sistema econômico, outra forma de produzir, de consumir e de tratar os resíduos. Outra maneira de ver a vida, o meio ambiente e nossa relação com o transcendente. Enfim, fazer “novas todas as coisas”, tal como João ouviu do eterno e proferiu no Apocalipse (Ap 21, 5).
Novas relações sociais baseadas no respeito ao diferente, na tolerância, no amor ao próximo, na valorização do ser, do saber e do fazer dos outros. Novo sistema econômico, baseado na solidariedade, na justiça distributiva, na equidade, na diminuição das extremas desigualdades de renda e riqueza, no fortalecimento das estruturas de promoção e cuidado da saúde. Nova forma de produzir, com base na agroecologia, na agricultura familiar, orgânica, sintrópica e biodiversa. Nova forma de consumir, evitando o consumismo e priorizando a segurança e a soberania alimentar, etc.
O recado que o vírus nos traz aponta para a necessidade de cuidarmos da Casa Comum assim como estamos sendo orientados e obrigados a cuidar (limpar) a nossa própria morada. Porém, não podemos esquecer que muitos não têm casa, nem água, nem cama, nem comida, e até vivem dos/nos lixões. Seres também constituídos de dignidade, mas sem os direitos fundamentais garantidos. Contra esses excluídos, alguns seguem achando que eles não têm direitos porque não os merecem. Todavia, essa forma de pensar não ajuda em nada a mudar a situação da Casa Comum e de seus habitantes.
Associo-me a Eduardo Galeano, que defendeu o direito ao delírio, em texto publicado por ele com esse título na virada do milênio. Entre outros belos delírios/desejos, afirma: “O mundo já não se encontrará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza... e cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro”. Tal como o sonho não pode ignorar a realidade, não podemos deixar de aprender com as lições extremamente duras e doloridas trazidas pelo coronavírus. É hora de mudar. Depois poderá ser tarde demais. Adiante, pois, com o cuidado coletivo. Ele é revolucionário!
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A revolução do cuidado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU