17 Março 2020
O grande assunto do momento é se chegou o momento de o Brasil adotar restrições mais incisivas à circulação de pessoas. No sábado, vários especialistas defenderam que medidas como a suspensão de aulas, espetáculos esportivos e artísticos, cultos religiosos e qualquer reunião, além de restrições à presença física em locais de trabalho e trânsito nas cidades sejam tomadas, no máximo, em 20 dias. Para alguns, o ideal seria tomá-las em uma semana. Essa recomendação é feita olhando os exemplos de locais como China, Hong Kong, Singapura, Japão e, agora, Itália, França e Espanha. Servem para diminuir o ritmo de crescimento de casos, de modo a não colapsar o sistema de saúde com um boom de doentes ao mesmo tempo – como acontece na Itália.
A informação é publicada por Outra Saúde, 16-03-2020.
O xis da questão é que o crescimento da doença não é linear, mas exponencial. Quando o número de infectados se torna alto, ele rapidamente se torna… enlouquecedoramente alto porque vai dobrando ou triplicando em poucos dias. Sem nenhuma medida de contenção, o vírus não tem por que parar de se espalhar no curto prazo. Esta reportagem do Washington Post tem animações bem instrutivas, feitas a partir de simulações da transmissão de uma doença fictícia muito contagiosa em uma pequena população. O melhor cenário é o de um distanciamento social extensivo, quando só um oitavo da população segue se movimento normalmente – as pessoas continuam adoecendo, mas num ritmo menor, e enquanto outros doentes já vão se recuperando. Mas mesmo o distanciamento moderado (com um quarto da população se movendo) apresenta ótimos resultados e é melhor do que a quarentena total, justamente porque ela nunca consegue ser… total. E quando uma pessoa infectada fura o bloqueio, a contaminação do outro lado se espalha. Exponencialmente.
E uma cientista conseguiu achar o “lado bom” desse crescimento exponencial: o efeito das medidas de contenção também é sentido muito rapidamente. A matéria do New York Times fala das projeções de Britta Jewell, epidemiologista do Imperial College London. A partir dos casos confirmados nos EUA na manhã de sexta-feira, ela calculou como estaria a epidemia daqui a um mês mantendo o crescimento atual. Em seguida, calculou o que aconteceria se apenas uma dessas infecções fosse evitada no dia seguinte (com ações como promover aulas a distância, cancelar grandes eventos e impor restrições de viagens) e o que aconteceria se as mesmas ações fossem tomadas dali a uma semana. “A diferença é gritante. Se você agir hoje, terá evitado quatro vezes mais infecções no próximo mês: aproximadamente 2,4 mil infecções evitadas, contra apenas 600 se você esperar uma semana. Esse é o poder de evitar apenas uma infecção e, obviamente, gostaríamos de evitar mais de uma“, resume.
É claro que esse tipo de medida não pode durar para sempre e, depois que é encerrada, o vírus volta a circular. Uma matéria do site The Atlantic recupera dados da gripe espanhola e fala sobre o fechamento de locais públicos e a restrição aglomerações na época. Onde isso foi feito, as taxas de transmissão foram reduzidas e depois voltaram a crescer. A questão é que as medidas não impedem totalmente as infecções, mas atrasam o processo. “Quando as pessoas doentes chegam em um curto período, elas podem sobrecarregar hospitais e clínicas – e usar rapidamente suprimentos essenciais. Quando esse mesmo número de pessoas doentes se espalha por um período mais longo, é mais provável que os prestadores de serviços de saúde sejam capazes de lidar com a demanda“.
No Brasil, não sabemos direito como ou se o distanciamento social pode funcionar bem. No Rio, as favelas preocupam pela concentração de pessoas e pela escassez dos serviços de saúde.
E o Ministério da Saúde voltou atrás na única determinação (medida obrigatória) que havia anunciado na sexta-feira: a proibição de navios de cruzeiro circulando pelo nosso litoral. De acordo com a Folha, isso aconteceu por conta de pressão dentro do próprio governo, que teme efeitos negativos no setor de turismo. Caiu também a recomendação para que as pessoas que chegassem de viagens internacionais ficassem em isolamento domiciliar por até sete dias, mesmo sem apresentar sintomas. E não é só isso: recomendar o adiamento e o cancelamento de eventos de massa só vale, agora, para áreas com transmissão local do vírus (até agora, São Paulo e Rio de Janeiro) e não mais para todos os estados.
Por outro lado, Chile e Uruguai adotaram restrições a voos internacionais e isolamento para quem chega de fora. No Twitter, o presidente Sebastian Piñera respondeu a uma chilena que queria voltar ao país que, sim, ela poderia – desde que ficasse em isolamento por 14 dias se estivesse chegando de algum país “de risco”.
Até ontem à tarde, de acordo com dados divulgados pelo Ministério, o país tinha 200 casos confirmados (contra 121 no sábado), sendo 136 em São Paulo e 24 no Rio de Janeiro – locais com transmissão sustentada do vírus. Há outros 1.913 casos suspeitos.
Segundo a coluna de Lauro Jardim, no Globo, a estimativa do Ministério é que a taxa de letalidade no Brasil seja de 0,8%. Porém, não fica muito claro como ela foi calculada. Jardim afirma que isso foi feito a partir dos 3,6% encontrados na China. Mas, lá, o percentual é obtido pela divisão do total de mortos pelo total de atendidos – o que, como temos dito, provavelmente não se aproxima da realidade, já que exclui do cálculo os infectados que não procuram atendimento. Já o Ministério da Saúde inclui este número. É, assim, um valor próximo ao da Coreia do Sul (0,7%), que testou aleatoriamente milhares de pessoas com e sem sintomas e chegou à taxa de letalidade mais confiável até o momento.
Para termos em mente como anda a evolução: o primeiro caso aqui foi confirmado em 25 de fevereiro; uma semana depois, eram dois; em mais uma semana, eram 25; amanhã completaremos a terceira semana já com mais de 200. É uma escalada semelhante à dos Estados Unidos, que também começou devagarinho e, de repente, passou de 125 casos (03.03) para 1.004 (10.03) e, agora, tem 3.010. O Centro de Contingência para o Coronavírus do governo de São Paulo projeta para os próximos meses ao menos 460 mil infectados no estado, contando os casos assintomáticos. Se fizermos as contas com taxa de letalidade prevista pelo Ministério, serão 3,6 mil mortes no período.
Mas é o que é: estimativa, e num cenário de vírus novo entrando em um ambiente novo. “Muitos fatores são desconhecidos, principalmente qual a porcentagem de casos que pode ser assintomática e qual a capacidade de transmissão da doença que esses casos têm. A Covid-19 também tem se desenvolvido de formas diferentes em vários países, e isso depende muito da faixa etária da população, da capacidade de testagem e de assistência dos pacientes e também do comportamento da população”, explica a reportagem do Estadão.
Por falar no desconhecido… Ainda há incertezas sobre como se dá a transmissão do coronavírus. Há um debate entre cientistas sobre a possibilidade de ele não contaminar só pelas superfícies e pelo contato próximo, mas também ficando suspenso no ar por algum tempo.
Os números divulgados pelo Ministério da Saúde não têm sido muito exatos porque discrepâncias entre os dados do governo federal e aqueles anunciados pelos estados indicam uma grande defasagem, como explica a matéria do UOL.
E agora teremos cada vez menos certeza sobre o real número de infectados. Na coletiva da Pasta feita na sexta-feira, o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, disse que, nas cidades ou estados com mais de cem casos confirmados, os exames laboratoriais vão deixar de ser feitos em todos os pacientes com febre e outros sintomas respiratórios. Só pacientes internados com problemas respiratórios graves, como pneumonia, serão testados. Os casos leves vão ser confirmados apenas por diagnóstico clínico. Em São Paulo, o coordenador do centro de contingência contra a doença, David Uip, já anunciou a mudança. A matéria da Folha ressalta que a Pasta ainda não prevê quando isso deve ocorrer em todo o país, mas o ministro Mandetta já defendeu a medida. “Não vamos atravessar tudo isso com cada indivíduo fazendo testes. Chega a uma hora em que isso não tem de ser feito, não tem valor”.
A mudança, porém, não é aceita com unanimidade. No Twitter, o virologista Atila Iamarino chama a atenção para os problemas: com a sub-notificação, não vamos saber onde os casos e surtos estão acontecendo até que haja problemas sérios. “O que indica falta de pessoal além da falta de testes”, questiona. “Sugiro que você trate a situação na sua cidade como se o coronavírus já estivesse aí, porque não vai dar pra saber até alguém ser internado”. E conclui: “Tem uma dinâmica muito cruel na prevenção de problemas como uma pandemia e estamos tomando uma saída covarde. (…) No melhor dos cenários, se você antevê um problema muito sério e toma as medidas mais estritas de maneira a prevenir 100%, ninguém sabe do que foi salvo”.
A falta de testes tem sido apontada como um problema grave na condução da epidemia nos EUA. Lá, as autoridades sequer sabem informar quantas pessoas foram testadas até agora –mas estima-se que tenham sido menos de dez mil. Em contraste, a Coreia do Sul já testou mais de 260 mil pessoas e faz 20 mil exames por dia. Um dos problemas é que os EUA decidiram não usar um exame aprovado pela OMS, desenvolvendo um próprio, mas vários kits fabricados vieram defeituosos, levando a resultados inconclusivos. Para completar, houve problemas com a cadeia de suprimentos para kits. Na semana passada, o diretor do Centro de Controle de Doenças dos EUA reconheceu: “Não há equipamento suficiente, não há pessoas suficientes, não há capacidade interna suficiente (…). A verdade é que nós investimos pouco nos laboratórios de saúde pública“.
Não faz sentido que um sistema de saúde trabalhe com dezenas de milhares de leitos de internação sobrando, mas, no Brasil, eles estão em falta. A partir de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, o site Núcleo aponta que entre 2007 e o fim de 2019 foram fechados 28,3 mil leitos de internação no país (uma redução de 6,2%), sem contar os de UTI e unidades intermediárias. A boa notícia é que, considerando estes últimos, houve aumento (83%) no mesmo período.
É da UTI que os infectados pelo coronavírus em estado grave precisam, pela disponibilidade de equipamentos de respiração. Mas, mesmo com o aumento nos leitos, na maior parte dos estados brasileiros o Sistema Único não tem pernas para atender aos casos graves, segundo a reportagem da Folha. Em média, o SUS cumpre a recomendação da OMS de ter no mínimo um leito de UTI para cada dez mil habitantes, mas, em 17 dos 27 estados, não se chega a isso. E, segundo a Associação de Medicina Brasileira Intensiva, nos epicentros da crise a demanda chegou a 2,4 leitos por dez mil pessoas — mais que o dobro da média nacional. Contanto tanto os leitos do SUS como do setor privado, temos hoje uma taxa de 2,1. E o pior: antes do início da epidemia no país a taxa de ocupação das UTIs na rede pública já era de 95%. No setor privado não é muito diferente: 80%.
Um leito não é só uma cama– precisa de equipamentos e profissionais que o atendam. Segundo a mesma reportagem, a montagem de um leito básico de UTI custa R$ 100 mil e sua manutenção custa outros R$ 2 mil por dia. Entre as possibilidades para abrir espaço estão o bloqueio de cirurgias agendadas, a ampliação do tempo de trabalho de profissionais de UTIs, a adoção de tratamentos paliativos para pacientes terminais e o uso de outros espaços que tenham equipamentos respiratórios fora das UTIs, como salas de cirurgia e pós-operatório.
Se 1% da população for infectada, só as internações em UTI podem custar quase R$ 1 bilhão ao SUS, segundo um estudo do Instituto de Estudos de Política de Saúde.
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